De cada dez processos, nove terminam na primeira instância

A última palavra é dada pelo Supremo Tribunal Federal, as grandes teses são definidas nos tribunais superiores, mas onde a Justiça acontece de forma mais vívida e concreta é nas varas e juizados de primeiro grau espalhados pelo país. É na base do sistema que são dadas as respostas de oito de cada dez processos que ingressam na Justiça a cada ano. E é na primeira instância que está o maior gargalo da prestação jurisdicional: é lá que jazem, também, nove de cada dez processos pendentes de julgamento.

 

Quando se fala do acervo de processos em tramitação em todo o sistema, os números são alarmantes: em dezembro de 2023 eram 82 milhões de casos. A má notícia é que a demanda continua crescendo: em 2023 foram protocolados 35 milhões de casos novos, 32% a mais do que em 2020.

A boa notícia é que o potencial de solução de demandas também aumentou: a evolução do número de processos julgados vem apresentando um crescimento anual de 10% desde 2020, passando de 24 milhões para 32 milhões em 2023. A despeito de ainda julgar menos processos do que os casos novos ingressados a cada ano, o fato é que o acervo tem crescido em um ritmo bem mais lento do que a demanda, passando de 79,5 milhões de processos pendentes de julgamento para 82,6 neste período. Entre 2020 e 2023 o aumento registrado foi de meros 4%. Mas aumento, enfim. O acervo só começará a diminuir quando os juízes passarem a julgar um número maior de processos do que o de casos novos que ingressam a cada ano no sistema.

Varas e juizados especiais são a porta de entrada do sistema de Justiça e, portanto, nada mais natural que concentrem o maior volume de novos processos a cada ano. Isto quer dizer que, em 2023, enquanto chegavam 28 milhões (81% do total) de casos novos às varas e juizados especiais, no protocolo dos tribunais de segundo grau eram registrados cerca de seis milhões (17%) e menos de um milhão (2%) nos tribunais superiores.

Quando falamos de Supremo Tribunal Federal, que não entra nessa soma, a relação é ainda mais extrema. Os cerca de 80 mil novos processos ingressados na Suprema Corte em 2023 representam apenas 0,2% do total de casos novos de todo o Judiciário. Em outras palavras, a cada processo que ingressa na mais alta corte, 500 chegam nas instâncias anteriores. Evidentemente, a relevância fundamental do Supremo não se mede por quantidade, mas por qualidade. São estes relativamente poucos processos que irão balizar os milhões de decisões exaradas pelo país afora, em todas as instâncias e em todos os ramos da Justiça.

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Comparativamente falando, por sinal, esta quantidade está muito acima do padrão internacional para uma corte constitucional, como é o caso do STF. A Suprema Corte dos Estados Unidos, por exemplo, costuma julgar, em média, 80 processos por ano. Segundo o advogado da União Rodrigo Becker, um estudioso da Suprema Corte americana, chegam àquele tribunal oito mil processos por ano, mas só 1% vai a julgamento do Plenário.

Os números acima falam sobre a distribuição dos processos por instância. Se formos tratar de recorribilidade, ou seja, do volume de recursos de uma instância anterior para a seguinte, os números diferem levemente. Isso porque temos de considerar apenas os recursos que foram apresentados e julgados, deixando de lado os processos originários, que chegam diretamente aos tribunais de segunda instância e superiores. Tomando como exemplo o STF, pouco mais da metade dos processos julgados na corte são de natureza recursal: de cada dez processos analisados, seis são recursos e quatro são originários.

Feita a ressalva e tomando como base o ano de 2023, pode-se dizer que, dos 26 milhões de processos julgados nas varas e juizados do país, 5,6 milhões (20%) chegaram aos tribunais de segundo grau e 650 mil (2%) aos tribunais superiores. No mesmo ano, o STF julgou 65 mil recursos, o equivalente a 0,3% dos processos julgados em primeiro grau. Considerando a instância anterior, menos de 0,1% dos casos julgados pelos tribunais superiores foram julgados pelo Supremo em grau de recurso.

Os números mostram, com eloquência, que os grandes gargalos da Justiça brasileira estão na primeira instância, de modo geral. Assim, enquanto o tempo médio entre o início do processo e a primeira baixa no órgão julgador é de menos de um ano (331 dias) no segundo grau, no primeiro grau a espera passa de três anos (1.146 dias). A taxa de congestionamento, que mostra a porcentagem de processos julgados em relação aos processos em tramitação em um ano, repete o mesmo quadro: no segundo grau é de 46%, já no segundo é de 70%.

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Indicadores de desempenho servem também para colocar em destaque a diversidade no Judiciário a partir dos ramos da Justiça. Embora seja sempre uma mesma Justiça, temos uma Justiça Estadual e outra Federal, e temos as várias justiças especializadas – do Trabalho, Eleitoral e Militar – , cada uma com o seu jeito diferente de ser. Assim, pode-se afirmar que os maiores gargalos do movimento processual estão na Justiça Estadual (três anos e cinco meses de espera por uma decisão e 70% de taxa de congestionamento em 2023) e na Justiça Federal (dois anos e nove meses de espera e 69% de congestionamento).

 

A explicação é simples: a dita Justiça Comum, tanto a que trata da legislação federal, quanto a que cuida das legislações municipal e estadual, congrega o maior número de processos e de julgadores do sistema. Dos 34 milhões de processos protocolados em 2023, 73% o foram na Justiça estadual e 15% na Federal. A Justiça do Trabalho, que também é federal, captou mais 12% dos novos casos. Em termos de quantidade de processos, portanto, Justiça Estadual, Justi-ça Federal e Justiça do Trabalho dão conta do recado na resolução de litígios, cada um com sua própria pauta temática.

E o ramo do Direito que mais trabalho dá ao Judiciário é justamente o Direito do Trabalho. De 60 milhões de demandas recebidas pela Justiça em 2023, 17 milhões tratavam de questões trabalhistas, o equivalente a 29% do total. Além de justificar a existência de um ramo do Judiciário dedicado exclusivamente ao Direito do Trabalho, o número revela que a legislação trabalhista parece ter chegado a um ponto de impasse: na hora do encerramento do contrato de trabalho, os trabalhadores cobram mais do que têm direito, os patrões pagam menos do que devem e sobra para a Justiça arbitrar a disputa. Enquanto a cúpula do Judiciário se empenha na busca de soluções para os desafios das novas formas de relação de trabalho e emprego, a base continua julgando ações trabalhistas sobre verbas rescisórias.

 

Em segundo lugar no ranking dos ramos do Direito com maiores demandas, aparece o Direito Civil, que na tabela processual de assuntos do CNJ engloba obrigações (contatos e cobranças), Direito de Família e responsabilidade civil (indenização por dano moral e por dano material). São temas muito próximos ao dia a dia do cidadão e de competência da Justiça Estadual, peculiaridades próprias também do terceiro colocado no ranking, que é o Direito do Consumidor.

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Outra peculiaridade do Direito do Consumidor é que foi o ramo que mais cresceu em número de demandas desde 2020, passando de 4,2 milhões de pedidos para 7,3 milhões, crescimento de 72%. São do Direito Civil e do Direito do Consumidor que surge a maioria das demandas por indenização por dano moral e material que chegam aos milhões aos tribunais.

Em sexto lugar no ranking aparece o Direito Penal, que também tem grande incidência na pauta temática da Justiça Estadual. Ao contrário do Direito do Consumidor, as demandas criminais estão entre as que menos cresceram desde 2020 – apenas 25%. Na área penal, a grande surpresa é que as demandas mais recorrentes são as relacionadas com a violência contra a mulher, que em diferentes modalidades de crimes somaram quase 900 mil pedidos em 2023 (leia reportagem à página 32). O número de demandas relacionadas a este tipo de crimes teve um aumento de 46% nos últimos quatro anos, superando até mesmo os crimes relacionados ao tráfico de drogas ilegais, que sempre lideraram em matéria penal.

Para a Justiça Federal vão majoritariamente as demandas relacionadas ao Direito Tributário (7% do total de demandas), do Direito Previdenciário (7%) e grande parte do Direito Administrativo (6%), principalmente aquela que trata das relações do Estado com os seus servidores.

O custo para fazer funcionar a máquina da Justiça no país é de R$ 116 bilhões, em valores de 2022, de acordo com dados divulgados pelo CNJ. Corresponde, segundo o Ministério da Fazenda, a 1,6% do PIB, e segundo dados do CNJ, a R$ 14 mil por habitante/ano. Noventa por cento desse total é consumido com o pagamento de pessoal, o que se entende por se tratar de um serviço de mão de obra intensivo. Neste mesmo ano, o Judiciário gerou receitas no valor de R$ 63 bilhões, metade delas referente à arrecadação com execuções fiscais e o restante com impostos e outras taxas. Em 2022, a Justiça empregava 438 mil pessoas, dos quais 18 mil são juízes.

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