Quem não conhece o Tio Patinhas? Originalmente ”Scrooge McDuck”, é considerado o pato mais rico do mundo. E o mais “pão-duro”, mantendo grande parte de sua riqueza em uma enorme caixa-forte na cidade de Patópolis.
A imagem do Tio Patinhas, assim como de outros personagens de desenhos animados da Walt Disney Company, não raramente são utilizadas para fomentar vendas de roupas ou vestimentas.
Mais precisamente, determinadas indústrias têxteis costumam estampar esses clássicos personagens dos conhecidos desenhos na produção de seus vestuários. E como não poderia deixar de ser, o uso dessas imagens não é livre e gratuito, mas sim regulado e oneroso.
Para utilização das imagens, as indústrias brasileiras valem-se de contratos de licenciamento na forma de cessão de direito autoral, regidos pela Lei nº 9.610/98, os quais são celebrados com as pessoas jurídicas titulares do direito de uso dos personagens, as licenciadoras, que normalmente estão domiciliadas no exterior.
Na prática, tais empresas licenciadoras, embora já detentoras dos direitos inerentes aos autores das obras cujo uso é cedido, também acabam registrando os personagens no Instituto Nacional de Propriedade Intelectual (INPI) como “marcas”, na forma prevista na Lei nº 9.279/96.
A dúvida que se coloca, portanto, é a seguinte: qual a natureza dos royalties pagos pelo uso da imagem do Tio Patinhas pelas indústrias têxteis? De cessão de direitos autorais ou de uso de marca?
Contornos do litígio levado ao Carf
Os litígios levados ao Carf têm como ponto nevrálgico justamente essa dúvida, sendo que os contribuintes defendem que o Tio Patinhas é direito autoral, enquanto o Fisco entende que deve ser remunerado como uso de marca.
Essa discussão — cujos detalhes da legislação que conceitua as figuras em questão já foram muitíssimo bem explorados nessa coluna anteriormente [1] — possui reflexos tributários relevantes, uma vez que a dedutibilidade de pagamentos a título de remuneração de direitos autorais está sujeito “apenas” ao cumprimento dos requisitos de necessidade e normalidade previstos no artigo 311 do RIR/18, ao passo que dispêndios com royalties pelo “uso de marca”, para serem deduzidos do Lucro Real, estão sujeitos ao registro dos respectivos contratos no INPI e Banco Central (Bacen).
Nesse contexto, e considerando que o citado requisito quanto ao registro dos contratos no INPI e Bacen nem sempre é atendido pelas partes, a Receita Federal do Brasil já formulou autos de infração fundados na glosa de dedução das despesas correspondentes, justamente por entender que o registro do Tio Patinhas (e demais personagens, afinal o rico pato tem muitos amigos, bem como concorrentes nos cartoons) como marca determina a relação jurídica como cessão pelo uso de marca, e não cessão de direito autoral.
Os registros no INPI e no Bacen fazem diferença?
E nesse ponto percebe-se que a segunda questão nodal que é enfrentada pela jurisprudência administrativa é se o fato de uma imagem ter sido registrada junto ao INPI e/ou Bacen faz com que, inevitavelmente, esse registro dite o destino da tributação do direito, independentemente do contrato firmado entre as partes para o seu uso.
No Acórdão nº 1201-001.248, por exemplo, reconheceu-se a natureza contratual de cessão de direitos autorais. O voto vencedor destaca que a operação “efetivamente se realizou sob o manto dos direitos autorais”, não sendo possível “imaginar que o escopo e a razão de ser de tais acordos tenha qualquer vinculação com o conceito de marca, até porque os produtos resultantes em nada reverberam a imagem, nome ou negócio dos titulares no exterior, mas apenas a de criações artísticas (personagens) a eles pertencentes”.
Nesse mesmo sentido caminhou o Acórdão nº 1402-002.741, o qual, sob a premissa de que “os artigos têxteis produzidos, estampados com imagens de personagens, trazem, em sua essência, traços próprios de seus mais variados autores, formas, cores e intelectualidade própria de cada desenhista, protegidas pelo direito autoral, não se confundindo com uma marca”, concluiu “que as despesas com royalties, pagas em razão dos contratos de licenciamento de direito autoral, são dedutíveis”.
Já no Acórdão nº 1302-003.001 — caso que julgou autuação emitida contra o mesmo contribuinte do processo julgado por meio do Acórdão nº 1402-002.741, referido acima —, saiu vitoriosa a tese fazendária de que “o aproveitamento comercial das ideias contidas em obras artísticas não é objeto de proteção a título de direito autoral, mormente quando se trata de figuras de personagens já registrados como marca no Instituto Nacional de Propriedade Industrial INPI. Os valores pagos a esse título ao licenciador consubstanciam royalties pela exploração de marcas comerciais, e sua dedutibilidade sujeita-se às condições estatuídas na legislação”.
Solução da controvérsia pela CSRF
Considerando essa divergência jurisprudencial, a 1ª Turma da Câmara Superior de Recursos Fiscais (CSRF) foi instada a se manifestar sobre a matéria, o que ocorreu por intermédio do Acórdão nº 9101-006.889, precedente no qual, por unanimidade de votos, restou decidido que “o valor pago pela utilização comercial de desenhos artísticos de personagens, em conformidade com os contratos de licenciamento de direitos autorais que foram firmados, constitui despesa operacional (dedutível, portanto) independente de registro no INPI. O fato das licenciadoras registrarem tais desenhos como marca não desnatura a relação firmada entre as partes, que se deu, à luz da legislação de regência, sob a tutela da proteção de direitos autorais”.
O racional do voto condutor do acórdão citado parte da premissa de que os vestuários são produzidos pela contribuinte utilizando imagens de personagens que possuem características únicas, criadas por seus respectivos autores, os quais são contratados e protegidos pelos direitos autorais, independentemente de haver ou não registro como marca. Por isso é que, diferentemente do que foi sugerido na decisão contestada perante a CSRF, não se trata de uma exploração comercial das ideias contidas nas obras, o que comprometeria a proteção dos direitos autorais conforme o artigo 8º da Lei nº 9.610/98. O que ocorre, na verdade, é a cessão do uso do próprio desenho artístico, protegido pela lei de direitos autorais, o qual é transferido às licenciadoras, que, por sua vez, autorizaram contratualmente a sua reprodução nas roupas produzidas em troca de uma remuneração.
Segue o acórdão no sentido de que o simples registro de uma marca no INPI não invalida a qualificação do uso autorizado dos personagens como uma cessão de direitos autorais, os quais podem ser legalmente transferidos pelo autor. Em outras palavras, o fato de as licenciadoras registrarem os personagens como marca não as transforma automaticamente nisso, especialmente em uma relação na qual o titular dos direitos autorais registrados como tal autorizou o uso da obra em questão, um personagem de desenho animado específico, para ser estampado em produtos têxteis comercializados sob outra marca (aquela da empresa autuada).
No caso analisado pela CSRF, registre-se, as partes demonstraram que se trata de uma remuneração legítima pela cessão de um direito expressamente previsto na Lei de Direitos Autorais.
Decidiu-se, então, no Acórdão nº 9101-006.889, que esses desenhos infantis não caracterizam marcas na relação jurídica analisada. Ao contrário. Entendeu a CSRF que eles representam, isto sim, verdadeiros direitos autorais que constituem parte do custo de produção, com o objetivo de impulsionar a venda dos produtos têxteis comercializados pela contribuinte sob sua própria marca. Assim, o registro da marca, no caso concreto, tem a função precípua de proteger os licenciadores contra o uso indevido do desenho, obra ou ideia por terceiros não autorizados.
Como se vê, prevaleceu na CSRF o entendimento de que, considerando que o sistema jurídico qualifica os desenhos dos personagens como obra intelectual protegida pelos direitos autorais, podendo esses serem cedidos para empresas licenciadoras, não caberia ao Fisco desqualificar a natureza do contrato. Daí o afastamento da glosa ante a operacionalidade das despesas incorridas com os pagamentos pela cessão dos direitos autoriais em questão.
Então, ainda que o Tio Patinhas tenha sido registrado como marca — registro esse que, na verdade, é feito pela licenciadora para proteger seus direitos em face do uso não autorizado por terceiros —, a natureza remuneratória estabelecida no contrato de cessão de direito autoral não resta prejudicada. Por conseguinte, fica garantida a dedutibilidade dos gastos relacionados aos pagamentos como contraprestação pelo uso do direito autoral na apuração do lucro real, mediante simplesmente o cumprimento do requisito de necessidade e normalidade da referida despesa (artigo 311 do RIR/18). Patópolis está segura sobre sua natureza jurídica e tratamento tributário agora.
[1] https://www.conjur.com.br/2023-mar-15/direto-carf-limitacao-dedutibilidade-royalties-direitos-autorais/
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O post Natureza jurídica do <i>uso do Tio Patinhas</i>: cessão de direito autoral ou cessão de marca? apareceu primeiro em Consultor Jurídico.