Autonomia patrimonial, desconsideração da personalidade jurídica e redirecionamento da execução

A autonomia patrimonial é um princípio fundamental do Direito Empresarial brasileiro, consagrado no Código Civil e reforçado pela Lei da Liberdade Econômica. Esse princípio assegura que o patrimônio da pessoa jurídica não se confunda com o patrimônio pessoal dos seus sócios, associados ou administradores.

Na prática, isso significa que as obrigações da empresa, em regra, não podem atingir os bens pessoais dos sócios, garantindo a separação e a proteção dos respectivos patrimônios. O objetivo desse mecanismo é criar um ambiente seguro para o empreendedorismo, incentivando a criação de negócios, a geração de empregos, inovação e tributos, sem que o risco empresarial recaia automaticamente sobre os bens pessoais dos empreendedores.

Desconsideração da PJ

Entretanto, em casos excepcionais, essa autonomia pode ser afastada. A desconsideração da personalidade jurídica, prevista de forma geral no artigo 50 do Código Civil, é a principal exceção ao princípio da separação patrimonial. Esse dispositivo legal estabelece que, em situações de abuso da personalidade jurídica, como desvio de finalidade ou confusão patrimonial, o juiz pode desconsiderar a separação entre os bens da empresa e os dos sócios ou administradores, permitindo que os credores da pessoa jurídica alcancem o patrimônio pessoal dos envolvidos.

Essa regra geral, no entanto, possui exceções e variações, dependendo do ramo do Direito em que for aplicada, como nas regras menos rígidas previstas na Consolidação das Leis do Trabalho (CLT) e no Código de Defesa do Consumidor (CDC), em que o intuito de proteção social demanda menos rigor para atingir o patrimônio pessoal dos sócios.

No campo doutrinário, a teoria maior e a teoria menor se apresentam como formas distintas de aplicação da desconsideração da personalidade jurídica. A teoria maior é mais rigorosa, exigindo a comprovação de abuso de direito, como o desvio de finalidade ou a confusão patrimonial, para que o patrimônio dos sócios e/ou administradores seja atingido. Essa teoria é amplamente aplicada nas relações civis e empresariais, onde a proteção da autonomia patrimonial é um valor crucial. Já a teoria menor é menos exigente, sendo aplicada em áreas como o direito trabalhista, ambiental e consumerista, em que basta a insolvência ou a incapacidade da empresa em cumprir suas obrigações para permitir a desconsideração.

Com efeito, essa distinção entre as teorias não é isenta de críticas. Parte da doutrina argumenta que a divisão pode gerar insegurança jurídica e que o foco deve estar na preservação da autonomia patrimonial, sempre que possível, respeitando a importância dessa proteção nas relações empresariais.

Além disso, a desconsideração não se limita apenas à possibilidade de os credores atingirem o patrimônio pessoal dos sócios. Existem situações, consagradas tanto na doutrina como na jurisprudência, em que o patrimônio da própria pessoa jurídica, ou até de outras sociedades, pode ser alcançado. Isso ocorre, por exemplo, na desconsideração inversa, quando o patrimônio da empresa é utilizado para satisfazer dívidas pessoais dos sócios, e na desconsideração expansiva, que ocorre quando o patrimônio de outras pessoas jurídicas do mesmo grupo é atingido em razão de confusão patrimonial. Também há a desconsideração indireta, em que se observa a criação de uma nova empresa para evitar o pagamento de dívidas da pessoa jurídica original.

Redirecionamento da execução

Em contrapartida, o redirecionamento da execução fiscal, permitido pelo artigo 135 do Código Tributário Nacional (CTN), não implica a desconsideração da personalidade jurídica nem o rompimento da autonomia patrimonial da empresa. Esse instituto é utilizado para responsabilizar pessoalmente os sócios ou administradores que, no exercício de suas funções, agiram com excesso de poderes ou infringiram a lei, o contrato social ou os estatutos da empresa. Nesse caso, a responsabilidade é pessoal e decorre de atos ilícitos praticados pelos gestores, sem que se afete a separação patrimonial entre a empresa e seus sócios. O redirecionamento pode ser aplicado, por exemplo, em casos de dissolução irregular da pessoa jurídica, conforme prevê a Súmula 435 do Superior Tribunal de Justiça, que presume a dissolução irregular quando a empresa deixa de funcionar no seu domicílio fiscal sem comunicar aos órgãos competentes, legitimando o redirecionamento da execução fiscal para o sócio-gerente.

No julgamento do Tema Repetitivo 962, o STJ estabeleceu que o redirecionamento da execução fiscal deve recair sobre o administrador que deu causa à dissolução irregular, e não sobre o sócio ou administrador que exercia a gerência à época do fato gerador do tributo, desde que este tenha se afastado regularmente e não tenha contribuído para a dissolução irregular. Essa decisão é essencial para delimitar a responsabilidade dos administradores e proteger aqueles que, embora tenham exercido funções gerenciais, não participaram de atos que levaram à dissolução irregular.

Ademais, o STJ, no Recurso Especial 1.786.311-PR, decidiu que o redirecionamento da execução fiscal, com base no artigo 135 do CTN, não exige a instauração do Incidente de Desconsideração da Personalidade Jurídica (IDPJ), pois trata-se de uma responsabilização pessoal dos sócios ou administradores por atos ilícitos, sem que haja qualquer tentativa de romper a autonomia patrimonial. Assim, o redirecionamento é um mecanismo distinto da desconsideração da personalidade jurídica e pode ser aplicado diretamente em casos de infração à lei ou ao contrato social.

Considerações finais

Conclui-se, portanto, que a desconsideração da personalidade jurídica e o redirecionamento da execução fiscal, embora possam atingir o patrimônio pessoal dos sócios ou administradores, possuem naturezas jurídicas diferentes. A desconsideração rompe a autonomia patrimonial quando há abuso da personalidade jurídica ou insolvência da pessoa jurídica, enquanto o redirecionamento apenas responsabiliza os administradores por suas práticas ilegais, sem afetar a separação entre os bens da empresa e os dos sócios. Apesar de sua aplicação ampla na jurisprudência, esses mecanismos devem ser utilizados com cautela para garantir que o princípio da autonomia patrimonial continue sendo um pilar de segurança nas relações empresariais e de incentivo ao empreendedorismo.


Referências bibliográficas:

  • COELHO, Fábio Ulhoa. Manual de Direito Comercial. 27. ed. São Paulo: Saraiva, 2022.
  • CUNHA, Leonardo José Carneiro da. A Fazenda Pública em Juízo. 12. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2021.
  • FARIAS, Cristiano Chaves de; ROSENVALD, Nelson. Curso de Direito Civil: Teoria Geral. 10. ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2023.
  • NEVES, Daniel Amorim Assumpção. Manual de Direito Processual Civil. 14. ed. Salvador: JusPodivm, 2023.
  • STJ. Recurso Especial 1.786.311 – PR. Brasília, DF, 2019.
  • STJ. Tema Repetitivo 962. Disponível em: https://www.stj.jus.br. Acesso em: 2024.
  • Código Tributário Nacional, Lei nº 5.172, de 25 de outubro de 1966.
  • Lei nº 13.874, de 20 de setembro de 2019 (Lei da Liberdade Econômica).

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