Honorários contratuais em ações trabalhistas coletivas

Na última semana, circulou nos meios jurídicos a manifestação do ministro Flávio Dino no julgamento de recurso do Ministério Público do Trabalho (AO 2.417) contra decisão que negou ao parquet trabalhista o direito de atuar em um caso envolvendo a cobrança de honorários advocatícios em ações coletivas:

“Creio que ninguém no mundo pode dizer que isto constitui uma lesão ao patrimônio dos advogados: R$ 1 bilhão e 500 milhões de reais provavelmente de honorários sucumbenciais. Nós estamos aqui controvertendo sobre um plus. Como diz o povo da minha terra, um fora parte”.

Bom, esse valor foi arbitrariamente estipulado pelo ministro. É difícil dizer o valor exato ou até aproximado. Mas uma coisa é certa, segundo os advogados do processo: nem de longe é esse o valor; além disso, os honorários são divididos por mais de uma dezena de advogados que, frise-se, trabalha(ra)m no caso há dezenas de anos.  Tem advogado que começou na causa e seus filhos a estão finalizando. Parece bizarra essa demora e, mais ainda, se o desfecho culminar com o descumprimento do dispositivo do Estatuto da OAB que garante esse direito aos causídicos. Demonstrarei na sequência.

A manifestação do ministro deu-se no contexto de divergência com o voto do relator, ministro Nunes Marques, no âmbito de embargos de declaração, quanto à possibilidade de intervenção do MPT em autos de execução trabalhista, com o propósito de obstaculizar a cobrança de honorários advocatícios contratuais acordados entre os patronos da reclamatória, a entidade sindical e os trabalhadores beneficiados.

Explicando: no caso em exame, (1) houve a contratação de advogado para atuar em defesa dos interesses da entidade sindical e seus sindicalizados; (2) ato contínuo, a execução dos honorários contratuais pelos causídicos, nos autos da reclamatória originária; (3) e, em decorrência disso, a intervenção pelo MPT, alegando — manifestamente contra o que aduz lei federal — a impossibilidade de cumulação dos honorários contratuais aos assistenciais e/ou sucumbenciais. Como ocorre seguidamente, é o fiscal da lei a insurgir-se contra a lei porque com ela não concorda.

Pois bem. Ao julgar o mérito da ação, o Plenário do STF decidiu que

“o Ministério Público do Trabalho não possui legitimidade ativa para recorrer de decisão referente a honorários advocatícios que não surjam diretamente da relação de trabalho, por se tratar de direito individual disponível.”

Em face desse acórdão, o MPT opôs embargos de declaração buscando efeitos infringentes. Embargos é aquele recurso que, quando usado pelo advogado no processo criminal, por exemplo, recebe seguidamente a ironia do membro do MP dizendo “o réu quer revolver a prova e mudar o resultado”…

Leia também:  O Projeto de Lei 03/2024 e a (in)eficiência do processo falimentar

É nessa estreita via que o ministro Flávio Dino reabre a controvérsia: “não se trata apenas de direitos individuais disponíveis”. A questão seria a forma como esse contrato de honorários se desenhou: com anuência da categoria em assembleia geral, e não mediante contratos individuais. Problema: nem a Constituição nem a lei exigem contratos individuais.

Ao contrário: substituição processual existe exatamente para evitar a individualização. Todavia, o entendimento do ministro é de que são indevidos os honorários contratuais firmados pelo sindicato a serem arcados pelo associado, exceto nos casos de contratos individuais regularmente firmados. De novo: tratou-se de substituição processual. O que o ministro Flávio Dino reivindica na sua manifestação em sede de EDs é o contrário do que estabelece a lei. Ele ainda invoca Kelsen, para dizer que, provavelmente, um dos maiores juristas do século 20 não ganhou “tudo isso” ao longo de sua vida.

O caso à luz da teoria da decisão

Se Kelsen ganhou ou não ganhou “tudo isso” em sua vida, difícil dizer. Ou Dworkin. Importa dizer que Kelsen nunca se preocupou com o modo de como os juízes devem decidir. Para ele a decisão jurídica é uma questão de “política jurídica” (TPD, p. 470).

Permito-me dizer que esse problema da adoção de critérios — objetivos — para a decisão jurídica é uma verdadeira batalha epistemológica que se trava no âmbito da busca de decisões adequadas à Constituição — não só no Brasil. Nesse exato sentido, uma lei só pode deixar de ser aplicada em seis hipóteses:

1) quando for inconstitucional, ocasião em que deve ser aplicada a jurisdição constitucional difusa ou concentrada – não é o caso em discussão;

2) quando for o caso de aplicação dos critérios de resolução de antinomias — tampouco há que se falar em lex anteriores ou posteriores etc.;

3) quando for necessário aplicar a interpretação conforme à Constituição (verfassungskonforme Auslegung), ocasião em que se torna necessária uma adição de sentido ao artigo de lei para que haja plena conformidade da norma à Constituição. Nesse caso, o texto de lei (entendido na sua “literalidade”) permanecerá intacto; o que muda é o seu sentido, alterado por meio de interpretação que o torne adequado à Constituição — igualmente não se vislumbra hipótese de se dizer que uma conquista como a substituição processual possa ser confrontada e reintepretada;

Leia também:  Nova modulação do caso ICMS-ST na base de PIS e Cofins alivia contribuintes

4) quando for preciso aplicar a nulidade parcial sem redução de texto — muito menos estamos diante disso que, originalmente, chamou-se de Teilnichtigerklärung ohne Normtextreduzierung;

5) quando for o caso de declaração de inconstitucionalidade com redução de texto, ocasião em que a exclusão de uma palavra conduz à manutenção da constitucionalidade do dispositivo – da mesma forma, não há o que “cortar” do dispositivo da OAB;

6) quando — e isso é absolutamente corriqueiro e comum — for o caso de deixar de aplicar uma regra em face de um princípio, ocasião em que a regra perde sua normatividade em face de um princípio constitucional, entendido este como um padrão, do modo como explicitado em Verdade e Consenso [1] — aqui, não se vislumbra qualquer princípio que poderia ser um obstáculo ao dispositivo da OAB que dá direito aos honorários convencionados.

Fora dessas hipóteses, o juiz tem a obrigação institucional e constitucional de aplicar a lei, porque é um dever fundamental Se o Judiciário achar que a lei não vale, deve então a declarar dentro das seis hipóteses. O Judiciário, quando não aplica lei válida, está legislando na via contrária.

Vejamos os dispositivos envolvidos no caso em discussão: o inciso III do artigo 8º da Constituição é claro em estabelecer a conquista político-jurídica da substituição processual:

“ao sindicato cabe a defesa dos direitos e interesses coletivos ou individuais da categoria, inclusive em questões judiciais ou administrativas.”

Trata-se, assim, de um direito fundamental de acesso à justiça por meio de um atalho institucional que livra o trabalhador/cidadão não somente das agruras de ingressar individualmente com uma demanda, como também o desonera das pressões dos detentores do capital. Repita-se: estamos diante de um direito fundamental!

Esse direito fundamental também é procedimentalizado pelo Estatuto da OAB, no artigo 22, §§ 6º e 7º, ao se conferir à advocacia a garantia de que

“aplica-se aos honorários assistenciais, compreendidos como os fixados em ações coletivas propostas por entidades de classe em substituição processual, sem prejuízo aos honorários convencionais

e que

“os honorários convencionados com entidades de classe para atuação em substituição processual poderão prever a faculdade de indicar os beneficiários que, ao optarem por adquirir os direitos, assumirão as obrigações decorrentes do contrato originário a partir do momento em que este foi celebrado, sem a necessidade de mais formalidades.”

Essa lei federal é válida. E constitucional, até este momento. Lendo o que diz a lei, pergunta-se: qual é o fundamento para exigir a manifestação de vontade individual de cada sindicalizado antes da proposição de ações coletivas envolvendo direitos trabalhistas? Isso esvazia a substituição processual.

Leia também:  ADPF 743: o STF formulando políticas públicas?

O eventual excesso no valor de honorários é um argumento que perigosamente atinge o cerne do sistema de advocacia brasileiro. Imagine-se a advocacia ingressar em juízo contra o valor dos salários (e vantagens) do Poder Judiciário e do Ministério Público, com o argumento de que são elevados?

O instituto da substituição processual e o pagamento de honorários contratuais reveste-se de uma constitucionalidade chapada.  O dispositivo do Estatuto da OAB é claro. A Constituição alberga o poder de os sindicatos atuarem como substitutos processuais.

Mais: recentemente o STF entendeu que é constitucional restringir direitos trabalhistas por meio de acordos coletivos (Tema 1.046).  Então, a autonomia coletiva da vontade do sindicato o autoriza a celebrar acordos que restrinjam direitos trabalhistas, mas não o autoriza a ajuizar ações coletivas para os proteger?

A consequência previsível disso tudo é o enfraquecimento dos sindicatos. Dia a dia o poder dos sindicatos vem sendo fragilizado. Dificilmente causídicos vão se interessar em ajuizar ações coletivas para entidades sindicais. Preferirão ações plúrimas: teremos cem ações com dez pessoas em cada, em vez de uma ação do sindicato em nome de milhares de filiados.

Em síntese, inconstitucional é qualquer limitação a essas normas, pois violaria a decisão do STF sobre a autonomia coletiva da vontade. E, mais do que isso, colocaria um óbice absolutamente indevido ao direito de acesso à justiça, à tutela dos direitos trabalhistas pelo sindicato e à própria autonomia das entidades sindicais.

Logo, com toda lhaneza epistêmica com a qual sempre opero, insisto: a constitucionalidade do pagamento de honorários contratuais em ações coletivas trabalhistas diz respeito à autonomia do Direito. É sobre preservar a advocacia. É sobre proteger o trabalhador.


[1] STRECK, Lenio Luiz. Verdade e Consenso: Constituição, Hermenêutica e Teorias Discursivas. 6. ed. São Paulo: Saraiva, 2017. p. 633 e seg.

O post Kelsen e os honorários contratuais em ações trabalhistas coletivas apareceu primeiro em Consultor Jurídico.