Limitação de condenação solidária de empresa consorciada se há boa-fé

No boletim de jurisprudência do Tribunal de Contas da União nº 541 [1] há uma notícia relativa ao acórdão nº 1136/2025 [2], do Plenário daquela Corte de Contas que chama a atenção: “É possível a aplicação do artigo 944 do Código Civil para limitar a condenação solidária de empresa consorciada, se reconhecida a sua boa-fé, à proporção do débito equivalente à sua participação no consórcio, pois há espaço jurídico para tratamento diferenciado aos integrantes de consórcio, de forma a se atender ao princípio da isonomia e a se tratar de forma desigual os desiguais”.

No caso concreto, o Plenário do TCU analisava, por determinação de acórdão anterior (item 9.14.1 do acórdão nº 1361/2021, proferido no TC 027.542/2015-7) o sobrepreço de duas parcelas do Demonstrativo de Formação de Preços (DFP), a saber, “Fornecimentos” e “Subempreiteiros”, relativos ao contrato nº 0800.0053457.09.2, firmado pela Petrobrás e o Consórcio CNCC, cujo objeto era a realização de obras de implantação das Unidades de Coqueamento Retardado (UCR) da Refinaria Abreu e Lima (Rnest), localizada em Ipojuca (PE).

Tanto no acórdão anterior (nº 1.361/2021), como no acórdão ora analisado (nº 1.136/2025), aquele Plenário havia se pronunciado pela limitação da responsabilidade de uma das consorciadas ao limite de sua participação no consórcio (10%), porque: (i) tinha papel secundário no consórcio, contando somente com 10% de participação; (ii) os atos ilícitos que deram causa ao sobrepreço apurado foram de responsabilidade da parte predominante no consórcio, não havendo indicativos de sua participação nesses ilícitos; (iii) ausência de participação na licitação e na elaboração das propostas, pois integrou o consórcio em 2010, quando a execução do contrato já havia iniciado e (iv) inexistência de provas ou indícios de que a sucessão empresarial tenha ocorrido para acobertamento de ilícitos e/ou fuga de responsabilizações.

Os acórdãos, inclusive, defrontam uma possível responsabilização decorrente da inobservância do dever de diligência na análise dos contratos que a sucessora assumiria por consequência da incorporação empresarial, arrogando a si os riscos da contratação em questão. Contudo, foi consignado que o contrato era realmente complexo e a que própria Corte, ao examiná-lo, teve de partir de manifestações de inúmeros auditores para estimar o sobrepreço, de modo que não se deveria considerar da sucessora “que realizasse amplos e custosos estudos para que assumisse a contratação em andamento. Até porque, à época, não havia questionamentos em relação aos preços praticados”.

Nas fundamentações, ainda, ambos os acórdãos se respaldaram não apenas no art. 944, parágrafo único, do Código Civil, mas também no artigo 4º, § 1º da Lei nº 12.846/2013 (Lei Anticorrupção) e em fundamentos da decisão proferida pelo TRF-4 no julgamento do Agravo de Instrumento nº 5046411-08.2016.4.04.0000/PR.

Reflexões

Uma primeira leitura do acórdão pode trazer certo conforto, ante a sensibilidade com que os ministros consideraram as questões fáticas do caso. Entretanto, sob lentes mais questionadoras, parece haver necessidade de se depurar mais o entendimento e, então, arriscamos algumas linhas sobre ele, não para reprová-lo, obviamente, mas para suscitar reflexão.

No caso das contratações administrativas com consórcios de empresas, a solidariedade decorre da própria legislação. Desde a Lei nº 8.666/1993, vigente quando da contratação examinada pelo TCU, a regra da responsabilidade solidária das consorciadas está prevista (artigo 33, V da Lei nº 8.666/1993 e artigo 15, V da Lei nº 14.133/2021). Não bastante, o próprio Regulamento do Procedimento Licitatório Simplificado da Petrobras (Decreto 2.745/1998) também a prevê no item 4.10.1, letra e).

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Acerca da solidariedade, prescreve o artigo 264 do Código Civil que “há solidariedade, quando na mesma obrigação concorre mais de um credor, ou mais de um devedor, cada um com direito, ou obrigado, à dívida toda”. E segue o artigo subsequente: “a solidariedade não se presume; resulta da lei ou da vontade das partes”.

Trata-se, evidentemente, de instrumento que “facilita a vida” do credor. Como afirmado por Fabiana Barros de Martin, em sua dissertação de mestrado pela Universidade de São Paulo: [3] “(…) a existência de solidariedade em uma relação obrigacional cria uma maior proteção ao crédito, tornando-se, por consequência, um instrumento de extrema segurança para o credor” e o Tribunal de Contas da União decidiu por afastar essa proteção, em homenagem aos princípios da isonomia, equidade e justiça.

O problema é que a superação de regras por princípios não é tarefa fácil. Isso porque, as regras possuem prevalência sobre princípios, ao menos numa primeira vista, pois são preceitos gerais e abstratos cuja relação de sopesamento e limitação do espectro principiológico já foi realizado aprioristicamente pelo legislador e, portanto, na maioria dos casos, deve haver aplicação da regra em desfavor em desfavor da otimização do princípio, eis que ela se apresenta como limitação ou restrição desta otimização. [4]

É inegável que essa prevalência apriorística dá lugar à aplicação do princípio em algumas situações, como “quando a aplicação da regra […] produz um resultado extremamente indesejado e, até mesmo, incompatível com a ordem constitucional ou mesmo quando há dúvidas quanto à constitucionalidade da regra”. [5] Entretanto, invocar princípios para afastar regras incidentes no caso concreto demanda um esforço argumentativo muito superior àquele natural a qualquer decisão, considerando que a regra, por si só, é um instrumento de maior previsibilidade e estabilidade que os princípios. [6]

Era imprescindível que o TCU, através do exame da adequação, da necessidade e da proporcionalidade em sentido estrito, efetuasse a demonstração da desproporcionalidade da regra legal da solidariedade. [7] Contudo, os acórdãos percorrem a via acima mencionada, indicando dúvida se o TCU teria satisfatoriamente se desincumbido de seu ônus argumentativo para afastar a regra da solidariedade entre consorciadas e mesmo a do artigo 1.116 do Código Civil, segundo a qual a sucessora “herda” todos os direitos e obrigações da sucedida.

Se assim for, não estaria o instituto da solidariedade esvaziado? Afinal, a solidariedade possui alguma relação entre grau de culpa ou se trata de instituto que dá maiores garantias a um credor? Sigamos com as reflexões.

O parágrafo único do artigo 944 do Código Civil permite a redução equitativa da indenização quando o juízo se deparar com uma grande desproporção entre a gravidade da culpa e o dano. O dispositivo, tal como posto, não faz distinção entre a indenização por danos materiais ou imateriais. Tampouco se a redução pode ser aplicada a casos de responsabilidade negocial e/ou extra negocial, [8] subjetiva e/ou objetiva. Dessas particularidades cuidou a doutrina — e com divergência.

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Parece mesmo que a análise do grau de culpa sugere que a redução apenas pode ocorrer em casos de responsabilidade subjetiva, ao passo em que a responsabilidade objetiva dispensa a própria existência de culpa.

Quanto ao alcance do dispositivo em relação à espécie de dano causado, convence a tese de que tanto os danos materiais como os imateriais podem ser reduzidos, seja porque a lei não faz qualquer limitação a este respeito, seja porque os bens jurídicos tutelados na indenização por dano material e imaterial têm assento constitucional, revelando-se um nonsense permitir a redução da indenização de um, mas não do outro. Já no que tange aos danos decorrentes da responsabilidade negocial ou extra negocial, tem-se algumas ressalvas a serem formuladas sobre a ampla e irrestrita utilização do dispositivo para reduzir-se a indenização.

Como consignado em nota de rodapé, a responsabilidade negocial se origina no inadimplemento e a extra negocial nos atos ilícitos, propriamente ditos ou assim classificados pelo abuso de direito. Em geral, os negócios jurídicos, ainda que unilaterais, são previamente conjecturados e examinadas todas as suas condições e repercussões. Logo, devem, em regra, ser cumpridos (pacta sunt servanda). A partir dessa perspectiva, aparentemente, reduzir a indenização, cujos termos e razões de ser já estavam previamente ajustados e eram conhecido pelas partes do negócio parece inapropriado, principalmente quando esses termos decorrem da Lei e do Edital de Licitação.

Os acórdãos nos 1361 de 2021 e 1136 de 2025 do TCU examinavam a existência de danos ao erário e, consequentemente, a responsabilidade das consorciadas pelo ressarcimento desses danos. O contrato administrativo tido como pano de fundo do exame realizado pela Corte de Contas decorria de licitação pública realizada, em que as partes se submetem integralmente ao Edital e, obviamente, às normas de Direito Público.

Trata-se, portanto, de um contrato que se inicia com a resignação dos interessados aos termos e condições previstos na Lei e no Ato Convocatório e não nos parece que a sociedade sucessora desconhecia essas circunstâncias quando incorporou a consorciada originária.

Não é que se queira preservar intransigentemente a rigidez contratual, mas a própria segurança jurídica e o interesse do Estado enquanto lesado clamam pela observância da solidariedade, que era desde sempre conhecida por todos os envolvidos.

De outro lado, é apressado limitar a responsabilidade da sucessora no que tange ao ressarcimento do erário à sua participação no consórcio (10%), por força do artigo 4º, § 1º da Lei Anticorrupção. Isso porque, o dispositivo em questão diz: “Nas hipóteses de fusão e incorporação, a responsabilidade da sucessora será restrita à obrigação de pagamento de multa e reparação integral do dano causado, até o limite do patrimônio transferido (…)”.

Logo, a obrigação da reparação do dano ao erário é integral, desde que o patrimônio transferido seja superior a este montante a ser ressarcido, mas, se inferior, estará limitada ao valor deste patrimônio transferido. Porém, os acórdãos não identificam este patamar de limitação da indenização e, evidentemente, se o patrimônio transferido à sucessora tiver sido superior aos 10% do sobrepreço, o Estado está recebendo menos do que deveria receber e, se referido patrimônio tiver valor inferior aos 10% deste sobrepreço, a sucessora que foi responsabilizada por valor superior àquele fixado em lei.

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Por fim, acerca do julgamento do Agravo de Instrumento nº 5046411-08.2016.4.04.0000/PR, não há correspondência adequada entre os casos, pois que tratam de matérias distintas.

No paradigma invocado, o objeto de discussão era a prática de improbidade administrativa, cuja responsabilização é subjetiva e na exata medida da culpabilidade pelos atos praticados e, nesta hipótese, o ressarcimento do erário é muito mais uma consequência do ato ilícito doloso (pressuposto da improbidade) que causa lesão ao erário que uma sanção propriamente dita. Tanto assim que, mesmo que inexista o dano ao erário, é possível ser constatada improbidade administrativa e vice-versa. Entretanto, no caso examinado, a responsabilidade solidária é uma consequência do império da lei e da vontade das partes, e diz respeito exclusivamente a questões patrimoniais, que não se inserem nas relações de direito administrativo sancionador, que é o caso da improbidade.

Por todas as razões acima mencionadas, aparentemente o Tribunal de Contas da União afastou incidência de regras relativas à solidariedade entre as consorciadas e, com arrimo em princípios jurídicos, responsabilizou uma das consorciadas pelo ressarcimento ao erário até o limite de sua participação no consórcio (10%) sem, contudo, desincumbir-se de seu ônus de fundamentação, muito mais qualificado em razão desta superação.

Ainda, os dispositivos legais utilizados e o próprio julgado invocado para a limitação da responsabilização da consorciada são de incidência incerta da forma como foram aplicados ao caso e, por essas razões, é necessária a reflexão acerca de ser ou não adequado afastar a responsabilidade solidária em casos em que fique demonstrada a boa-fé de consorciadas em relação a fatos e/ou atos que causem danos ao erário.

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1 Disponível aqui.

2 Disponível aqui.

3 Das obrigações solidárias: relação com as obrigações indivisíveis no sistema jurídico romano e reflexo no direito brasileiro. Dissertação – Faculdade de Direito, Universidade de São Paulo, 2015. Disponível aqui.

4 Otimização de princípios, separação de poderes e segurança jurídica: o conflito entre princípio e regra. Dissertação – Faculdade de Direito, Universidade de São Paulo, 2012. Disponível aqui.

5 Ibid., p. 44.

6 Neste sentido, Rafael Scavone Bellem de Lima apud Bustamante: “a existência de uma regra implica, portanto, a existência de uma pretensão de estabilidade para o resultado das ponderações de princípios realizadas pelo legislador, isto é, uma pretensão de que esses resultados tenham caráter definitivo”. (Ibid. p. 68).

7 ÁVILA, Humberto. Teoria dos princípios: da definição à aplicação dos princípios jurídicos. São Paulo: Malheiros. 2021.

8 Segundo lições do Prof. Nelson Rosenvaldi: “Evita-se, aqui, a adoção do par responsabilidade contratual e extracontratual – usualmente adotada em doutrina e tribunais –, pela sua incompletude. O inadimplemento não é um fenômeno restrito aos contratos, mas se estende a qualquer obrigação, tenha ela origem em um contrato ou em um negócio jurídico unilateral. […] Não obstante a consagração pelo uso da expressão responsabilidade contratual, pelas razões técnicas ora suscitadas, optamos pela decomposição do fenômeno da responsabilidade em negocial e extranegocial”.

(Disponível aqui)

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