O artigo 24-A do Estatuto da Ordem dos Advogados do Brasil (Lei 8.906/94) garante ao advogado o recebimento de até 20% dos bens universalmente bloqueados do cliente como forma de pagamento dos honorários advocatícios, exceto em crimes da Lei de Drogas.
Esta ressalva, alvo de crítica neste artigo, fere princípios fundamentais da CRFB/88 como da dignidade humana e devido processo legal. A análise se dá com base em um estudo jurídico, histórico e político, visando demonstrar a inconstitucionalidade da exceção contida no dispositivo aplicada aos delitos da Lei 11.343/06.
Direito de constituir advogado como instrumento do processo democrático
A Constituição (artigo 133) assegura que o advogado é indispensável à administração da justiça, e a constituição do defensor é parte inegociável do devido processo legal (artigo 5º, LIV e LV). A limitação imposta pelo artigo 24-A do EOAB nega ao acusado o direito de constituir advogado com recursos próprios. A norma, ao excluir a Lei de Drogas, afronta os pilares da processualidade democrática.
O Código de Processo Penal estabelece, em seu artigo 261, que ninguém poderá ser acusado sem a presença de um defensor. Já o artigo 263 dispõe que, caso o acusado não tenha um defensor constituído, o juiz deverá nomear um, ressalvando-se o direito do acusado de indicar outro de sua confiança.
Assim, a marcha processual depende não apenas da atuação de um defensor, mas daquele de livre escolha e confiança do acusado. Portanto, o direito de constituir advogado de sua confiança é uma garantia constitucionalizada, irrenunciável e indisponível. Se não há advogado legitimamente constituído, não há processo.
Autobiografismo político como gestador do dispositivo do EAOAB
O artigo 24-A do EAOAB tem origem legislativa no Projeto de Lei nº 5284/2020, de autoria do deputado Paulo Abi-Ackel (PSDB-MG), que propunha alterações em diversos dispositivos do Estatuto da Advocacia. No entanto, o referido projeto, em sua proposição inicial, não continha o dispositivo em discussão.
Posteriormente, o PL recebeu diversas alterações propostas pelo deputado Lafayette de Andrada (REP-MG), que, entre os anos de 2020 e 2022, introduziu o dispositivo e realizou modificações em sua redação. Em um primeiro momento, acertadamente, previa-se o direito da parte ré, nos casos de bloqueio universal, à destinação de até 20% do montante ao advogado constituído, para pagamento de honorários advocatícios e custas da defesa, mediante autorização judicial.
Entre o ano de 2020 e a apresentação do Parecer Preliminar de Plenário nº 10, às 11h38 do dia 15 de fevereiro de 2022, o projeto de lei não continha qualquer ressalva à Lei de Drogas. Contudo, ao anoitecer da mesma data, às 19h40, foi apresentado o Parecer Preliminar de Plenário nº 11, pelo relator, deputado Lafayette de Andrada, já incluindo a controversa — e inconstitucional — ressalva ao referido dispositivo, sem que houvesse qualquer emenda parlamentar que justificasse tal modificação.
Não bastasse a inclusão realizada ao final do expediente, momento em que muitos parlamentares já não se encontravam na Casa, chama atenção o fato de que, já na manhã do dia seguinte, 16 de fevereiro de 2022, o projeto foi submetido à votação e aprovado pela maioria. E menos de cinco meses depois, foi sancionado pelo então presidente Jair Bolsonaro, cuja retórica política sempre esteve fortemente pautada no combate ao tráfico de drogas.
Faz-se imprescindível delinear a trajetória do deputado Lafayette de Andrada, relator do projeto de lei e responsável pela apresentação da redação do artigo 24-A. Lafayette é deputado federal, advogado, professor de Direito e Ciência Política; filho, neto e sobrinho de deputados; além de descendente do jurista e patriarca da Independência, José Bonifácio de Andrada e Silva, e do inconfidente mineiro José Aires Gomes. Suas principais atuações incluem os cargos de vice-líder do Partido Republicanos, vice-presidente da Comissão de Constituição, Justiça e de Cidadania da Câmara dos Deputados, e presidente da Frente Parlamentar Mista em Defesa da Advocacia Pública no Congresso. Verifica-se, portanto, que a “ciência” do Direito, a prática da advocacia e sua relação ancestral com a política não são meros detalhes.
Ocorre que Lafayette de Andrada foi também o autor da inclusão, no “pacote anticrime” (Lei nº 13.964, de 24 de dezembro de 2019), do artigo 316 do Código de Processo Penal, que dispõe que o juiz poderá, de ofício, revogar ou novamente decretar a prisão preventiva, desde que presentes os requisitos legais.
Em 10 de outubro de 2020, com base no artigo 316 do Código de Processo Penal — incluído no “pacote anticrime” por iniciativa de Lafayette de Andrada —, o ministro do STF Marco Aurélio Mello concedeu liberdade a André Oliveira Macedo, conhecido como “André do Rap”, apontado como um dos líderes do Primeiro Comando da Capital (PCC). Após a expedição do alvará de soltura e a ampla repercussão midiática, o Supremo Tribunal Federal foi alvo de duras críticas. No mesmo dia, o então presidente do STF, Luiz Fux, revogou a decisão e determinou novamente a prisão de André do Rap. No entanto, ele já havia fugido e, até o momento (2025), permanece foragido.
O decisum do ministro Marco Aurélio, em 2020, gerou intenso debate sobre a soltura de um conhecido membro do crime organizado e levantou críticas ao artigo 316 do CPP, incluído por iniciativa do deputado Lafayette de Andrada, bem como de sua pessoa [1].
As críticas vieram, em grande parte, de eleitores da direita, apontando uma incompatibilidade político-ideológica entre a família Bolsonaro e o deputado. Isso porque, além de ser o autor do dispositivo utilizado para fundamentar a soltura, de ofício, de um narcotraficante por um magistrado, Lafayette de Andrada dividia com Flávio Bolsonaro o mesmo partido político.
A controvérsia ganhou ainda mais repercussão quando os eleitores passaram a ver Lafayette não apenas como desalinhado aos ideais do ex-presidente, mas como o responsável pela medida que resultou na impunidade de um narcotraficante. Em contrapartida, o deputado declarou que:
“Repudio com veemência as reportagens veiculadas na imprensa que, por desconhecimento ou malícia, associam a soltura do traficante André de Oliveira Macedo, o André do Rap, a meu nome” […] “Não havia motivo para a soltura de André do Rap. Sou contrário à liberdade para criminosos. Fui autor de várias modificações que endureceram o texto do pacote anticrime. Entre eles, o que dificulta a progressão de regime, o que proíbe a ‘saidinha’ para crimes hediondos, o que amplia a pena para crimes cometidos com armas de uso proibido, entre outros. Esclareço, por fim, que sou daqueles que pensa que lugar de bandido é na cadeia” (UOL, 2020).
O deputado Lafayette de Andrada, ainda que sem intenção, acabou simbolizando, por alguns anos, a figura de um político contrário às causas defendidas pela “direita” e conivente com a perpetuação do crime de tráfico de drogas no país. Esse episódio parece ter abalado sua relação com a família Bolsonaro e com os eleitores então no “poder” — especialmente quando se observa, neste trabalho, que a criação do artigo 24-A do EOAB teria representado, supostamente, sua principal tentativa de defesa ou reafirmação política.
Curiosamente, desde a soltura de “André do Rap”, em 10 de outubro de 2020, até a tarde do dia 15 de fevereiro de 2022, o artigo 24-A apresentava apenas a redação que assegurava a destinação de até 20% do patrimônio universalmente bloqueado ao advogado regularmente constituído.
Contudo, na 11ª versão do parecer — apresentada às 19h40 do dia anterior à votação do projeto — foi incluída, sem qualquer justificativa jurídico-democrática plausível ou emenda parlamentar, a ressalva inconstitucional referente aos procedimentos regidos pela Lei de Drogas. Menos de cinco meses depois, o projeto seria sancionado pelo então presidente Jair Bolsonaro.
Após o deputado federal Lafayette de Andrada — que, à época, integrava o mesmo partido de Flávio Bolsonaro — ter sido publicamente apontado por eleitores de Jair Bolsonaro como um parlamentar que contribuiu, por meio do artigo 316 do Código de Processo Penal, para a soltura de um notório traficante internacional e líder do PCC, sua aparente decisão de incluir, no artigo 24-A, uma exceção excessivamente combativa — e flagrantemente inconstitucional — ao tráfico de drogas, na noite anterior à votação do projeto e a apenas cinco meses da sanção presidencial, sugere um possível gesto de realinhamento político com o então presidente da República e sua base eleitoral.
A inserção tardia e silenciosa da medida sugere uma possível tentativa de evitar questionamentos midiáticos que pudessem barrar o sancionamento da redação. Ao mesmo tempo, o deputado ainda teria, durante o governo Bolsonaro, uma espécie de “trunfo” nas mãos, caso sua posição político-criminal voltasse a ser questionada.
Por que a ressalva para a Lei de Drogas?
O artigo 24-A, visa garantir o direito à defesa mesmo em caso de bloqueio total de bens, mas negar essa garantia em crimes de drogas, fere diametralmente a Constituição. Ainda que o tráfico de drogas seja tratado de forma mais rigorosa em diversas normas e tratados, não há base constitucional para a supressão de direitos fundamentais.
Ademais, sustentar que a Defensoria Pública poderia suprir essa lacuna também não possui cabimento e previsão legal: a Defensoria é voltada apenas aos hipossuficientes e não possui estrutura equiparada (isonômica) ao Ministério Público.
A exclusão aos crimes da Lei de Drogas prejudica milhares de advogados criminalistas e atinge de forma desproporcional populações vulneráveis, principalmente negras e pobres. Ao impedir o exercício pleno do direito de defesa nesses casos, cria-se uma distorção inaceitável do processo penal democrático.
Direito penal do inimigo estrutural como garantia do direito penal do amigo
Surge a seguinte questão: qual seria a razão de não incluir, nessa ressalva, crimes como organização criminosa, prevaricação, corrupção, terrorismo, homicídio, comércio ilegal de armas de fogo, crimes ambientais, lavagem de dinheiro e outros delitos financeiros e fiscais, considerando que muitos, de alguma forma, estão conectados ao narcotráfico ou garantem a sua perpetuação?
A resposta está no fato de que o Direito Penal do Inimigo garante, por sua vez, o direito penal do amigo. Os crimes geralmente associados às classes desfavorecidas ganham os holofotes, enquanto os crimes que ameaçam a ordem financeira, o meio ambiente e a administração pública — em grande parte cometidos pela alta sociedade burguesa — permanecem sob o próprio controle dos holofotes: ninguém os vê. Assim, resta a esses grupos a alternativa de, inteligentemente, adequar, burlar e instrumentalizar o Direito para atender às suas próprias vontades. O Direito Penal do Inimigo, ao reforçar uma ordem social desigual, acaba por perpetuar essa desigualdade.
Conclusão
A razão para a flagrante inconstitucionalidade de parte do artigo 24-A insere-se no contexto do Estado de Coisas Inconstitucional, em que tudo parece diametralmente oposto à proposta da Constituinte de 1988. Diversos motivos se apresentam para justificar a inclusão da ressalva relativa aos crimes previstos na Lei de Drogas e, embora aparentemente dispersos, eles não são desconexos. De um lado, é possível que a ressalva tenha se originado de uma manobra política voltada à reaproximação do relator do projeto com figuras no poder e à proteção contra acusações de suposta leniência com o tráfico de drogas. De outro, ela reflete um processo histórico de enfrentamento ao narcotráfico na América Latina, frequentemente marcado pela ausência de limites legais.
Entretanto, há algo ainda mais profundo: a presença do direito penal estrutural do inimigo em diversas instituições públicas, autarquias e fóruns. Esse direito penal estrutural, claramente voltado para o desvio de atenção dos ilícitos praticados pelos “amigos”, contaminou até mesmo a instituição que deveria ser a maior defensora da processualidade democrática: a Ordem dos Advogados do Brasil.
Por fim, este trabalho propõe um debate técnico, com a participação dos legitimados do processo, da comunidade jurídica e acadêmica, para sustentar a inconstitucionalidade parcial do artigo 24-A do EAOAB perante o STF, em defesa dos princípios do Estado democrático de Direito.
Referências
BRASIL. Decreto-Lei nº 3.689, de 3 de outubro de 1941. Código de Processo Penal, disponível aqui
BRASIL. Lei Nº 11.343, de 23 de agosto de 2006. Institui o Sistema Nacional de Políticas Públicas sobre Drogas. Disponível aqui.
BRASIL. Lei nº 13.964 de 24 de dezembro de 2019, aperfeiçoa a legislação penal e processual penal, acesso em: 28 de novembro de 2024, disponível aqui.
BRASIL. Lei Nº 8.906, de 4 de julho de 1994. Dispõe sobre o Estatuto da Advocacia e a Ordem dos Advogados do Brasil, disponível aqui.
CÂMARA DOS DEPUTADOS. PL 5.284/2020. Projeto de Lei. Altera a Lei no 8.906, de 4 de julho de 1994, que dispõe sobre o Estatuto da Advocacia e a Ordem dos Advogados do Brasil – OAB, para incluir disposições sobre a atividade privativa de advogado, a fiscalização, a competência, as prerrogativas, as sociedades de advogados, o advogado associado, os honorários advocatícios e os limites de impedimentos ao exercício da advocacia.
FÓRUM. Deputado bolsonarista é o autor de artigo usado para libertar chefe do PCC: Lafayette de Andrada é deputado federal por Minas Gerais e pertence ao Republicanos, mesmo partido de Flávio Bolsonaro e Celso Russomanno, mas passou maior parte de sua vida política no PSDB. 12 out. 2020. Disponível aqui. 2024.
GUNTHER, Jakobs. Direito Penal do Inimigo. 1. ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris. 2008.
UOL. Autor de artigo que baseou saída de André do Rap se exime e critica soltura. 12 out. 2020. Disponível aqui.
WIKIPÉDIA. Lafayette Andrada. Disponível em: https://pt.wikipedia.org/wiki/ Lafayette_Andrada. Acesso em: 28 de nov. 2024.
[1] FÓRUM. Deputado bolsonarista é o autor de artigo usado para libertar chefe do PCC: Lafayette de Andrada é deputado federal por Minas Gerais e pertence ao Republicanos, mesmo partido de Flávio Bolsonaro e Celso Russomanno, mas passou maior parte de sua vida política no PSDB. 12 out. 2020. Disponível aqui. 2024
Fonte: Conjur