Uma recente decisão do Tribunal de Justiça de Mato Grosso despertou a atenção do setor produtivo no agronegócio. O TJ-MT autorizou que uma credora continuasse a execução contra uma empresa em recuperação judicial, mesmo com o processo de reestruturação ainda em curso. O motivo? A dívida estava garantida por uma Cédula de Produto Rural (CPR) com entrega física, firmada por meio de uma operação de barter — um tipo de contrato bastante comum no agro, em que o produtor recebe insumos antecipadamente e, em troca, se compromete a entregar parte de sua safra futura.
O núcleo da controvérsia estava nos grãos de soja dados em garantia. A defesa da empresa alegou que esses grãos seriam essenciais para a manutenção da atividade produtiva e, portanto, estariam protegidos pelos efeitos da reestruturação. O tribunal, porém, foi firme: grãos como soja ou milho não são bens de capital e tampouco podem ser considerados automaticamente essenciais à continuidade da atividade econômica. São mercadorias fungíveis, produzidas com a finalidade de venda ou troca — e, neste caso, com destinação específica já contratualmente estabelecida. E mais: como o crédito está garantido por CPR com entrega física — e não financeira — ele não se submete à recuperação judicial. Está na lei.
A decisão invocou o artigo 11 da Lei 8.929/94, com a redação dada pela Lei 14.112/20, que exclui dos efeitos da recuperação os créditos e garantias vinculadas à CPR com liquidação física ou oriundos de operações barter. Em outras palavras: trata-se de crédito extraconcursal. Portanto, não entram na “proteção” da recuperação judicial. Além disso, o risco de dissipação dos bens (os grãos), foi considerado real, uma vez que a dinâmica do setor permite o rápido escoamento da produção, o que poderia tornar a execução da garantia inviável no futuro.
O que parece uma questão técnica, na verdade, é um recado claro: contrato é para ser cumprido. E garantias, quando pactuadas legalmente, devem ser respeitadas. A decisão do TJ-MT reafirma um princípio essencial para o mercado: o da segurança jurídica, em especial no agronegócio, onde as operações de barter são uma das principais formas de custeio da safra.
A jurisprudência que se desenha a partir desse julgamento poderá ter impacto sobre outros bens, que podem ser considerados “não essenciais” ou “extraconcursais”, como rebanhos bovinos, madeira, algodão, cana-de-açúcar, café e demais commodities. Reconhecer esses ativos como não essenciais, quando utilizados como garantia, pode alterar o entendimento sobre quais bens estão sujeitos à execução imediata mesmo durante o curso de uma recuperação judicial.
Permitir que empresas em dificuldade utilizem a recuperação judicial como escudo para descumprir obrigações previamente assumidas, é uma brecha perigosa e representa uma ameaça ao crédito. Nenhum investidor sério quer correr o risco de financiar uma operação para, depois, ser empurrado ao fim da fila, mesmo dispondo de garantias formais. Se isso se torna regra, o crédito seca e, com ele, a produção.
Equilíbrio
O TJ-MT, nesse caso, manteve o equilíbrio entre a recuperação da empresa e o direito do credor. Reconheceu que preservar a atividade econômica é importante, sim, mas sem passar por cima das regras do jogo. Afinal, não existe recuperação viável se o ambiente de negócios se torna imprevisível.
Se os grãos já haviam sido oferecidos como garantia, não é admissível que a empresa, depois, alegue necessidade desses mesmos bens para continuar operando. Isso fere a confiança entre as partes e mina a credibilidade do sistema. No fim das contas, a confiança é o maior ativo de qualquer economia saudável.
É claro que não se pode ignorar os impactos das decisões judiciais no mercado e na economia do país. No entanto, a recuperação judicial e outros mecanismos pré-processuais têm como objetivo principal a equalização do passivo para garantir a permanência das atividades, sempre que possível. O diálogo é um fator essencial na construção de soluções sofisticadas entre as partes envolvidas. Não é à toa que, em respeito ao artigo 47 e a prevalência principiológica prevista no artigo 189 da Lei 11.101/05, a instauração de mediação com credores extraconcursais têm sido cada vez mais admitida no curso da recuperação judicial.
Por fim, é imprescindível comentar a importância de se respeitar o devido processo legal e as fases próprias dos procedimentos estabelecidos pela Lei 11.101/05, sem suplantar etapas, sob pena de nulidades. Declarações unilaterais de classificação de crédito, com pleito de tutela de urgência, não podem afastar o prazo legal próprio da Lei 11.101/05 de análise administrativa do crédito e todos os contratos e documentos correlatos, em toda sua cadeia documental, com evidente e clara prova da natureza declarada, ainda com respeito ao contraditório administrativo.
A jurisprudência relacionada aos diversos temas pertinentes ao empresariado rural está em processo de sedimentação e conta com o acompanhamento atento e cuidadoso de toda a sociedade.
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