O foro privilegiado e a volatilidade da jurisprudência do STF

Em 16/7/2025, foi publicado o acórdão do julgamento em que o Plenário do Supremo Tribunal Federal alterou o posicionamento acerca da extensão do foro por prerrogativa de função. Em decisão sob a relatoria do ministro Gilmar Mendes, nos autos do Habeas Corpus 232.627/DF, restou fixada a tese de julgamento por maioria:

“A prerrogativa de foro para julgamento de crimes praticados no cargo e em razão das funções subsiste mesmo após o afastamento do cargo, ainda que o inquérito ou a ação penal sejam iniciados depois de cessado seu exercício.”

Em complemento, constou o comando de “aplicação imediata da nova interpretação aos processos em curso, ressalvados todos os atos praticados pelo STF e pelos demais Juízos com base na jurisprudência anterior”.

A tese modificou o entendimento até então vigente, ao ampliar a incidência do foro especial para além da desinvestidura do cargo, expandindo significativamente a aplicação da regra e provocando efeitos práticos imediatos e diretos em processos em trâmite em todos os graus de jurisdição.

A jurisprudência do Supremo Tribunal Federal, ao longo de sua história, é vacilante, ora ampliando a prerrogativa de foro, ora restringindo-a, levando em conta dois critérios: a regra da atualidade e a regra da contemporaneidade.

A regra da atualidade vincula o foro por prerrogativa de função ao atual exercício do cargo público. Dessa forma, a competência originária dos tribunais tem início com a diplomação (ou posse) e abrange todas as ações penais movidas contra o agente, independentemente do tipo de crime imputado.

Já a regra da contemporaneidade concentra-se na natureza do delito imputado ao agente. Segundo essa orientação, os tribunais têm competência para julgar os crimes cometidos durante o exercício do cargo e que guardem relação com as funções por ele desempenhadas.

Inicialmente, o Supremo Tribunal Federal adotou a regra da contemporaneidade, reconhecendo a prerrogativa de foro para todos os crimes praticados no período em que o agente ocupava o cargo, ainda que o inquérito ou a ação penal fossem propostos após o término do mandato ou da função.

Assim, a partir de precedentes da corte à época — fruto da interpretação da Constituição Federal de 1946, e, ainda, das Leis 1.079/50 e 3.258/59 —, a orientação se firmou no sentido do enunciado da Súmula 394, editada em 1964: “Cometido o crime durante o exercício funcional, prevalece a competência especial por prerrogativa de função, ainda que o inquérito ou a ação penal sejam iniciados após a cessação daquele exercício” [1]. Esse foi o posicionamento da corte ao longo de décadas [2].

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A Súmula 394 foi cancelada com o julgamento de questão de ordem no Inquérito nº 687, em 1999 [3]. Na ocasião, o ministro relator Sydney Sanches propôs a revisão do entendimento, argumentando que a edição da súmula ocorreu sob a égide da Constituição de 1946, que não atribuía competência originária à Corte Suprema para processar e julgar deputados federais e senadores por crimes comuns. Sustentou, ainda, que essa tese não se manteve na Constituição de 1988, ao menos de forma expressa, uma vez que o artigo 102, inciso I, alínea “b”, passou a estabelecer competência originária para processar e julgar “os membros do Congresso Nacional”.

Argumentou que a prerrogativa de foro, por representar um privilégio, não deve ser interpretada de forma extensiva, sobretudo em face de uma Constituição que consagra a igualdade entre todos os cidadãos, inclusive aqueles que já não exercem cargos ou mandatos públicos.

O ministro relator também destacou a ampliação excessiva da competência do foro especial, observando que, à época da edição da Súmula 394, eram raros os casos de exercício da prerrogativa de foro perante a corte. Realidade essa que, em 1999, já era distinta, com inquéritos, queixas e denúncias multiplicando-se contra ex-parlamentares, ex-ministros de Estado e até ex-presidente da República.

Em seu voto, questionou: “É de se perguntar, então: deve o Supremo Tribunal Federal continuar dando interpretação ampliativa a suas competências, quando nem pela interpretação estrita, tem conseguido exercitá-las a tempo e a hora?”

A partir desse precedente, a Suprema Corte consagrou a regra da atualidade em sua forma mais estrita, sem admitir exceções.  A prerrogativa de foro surgia com a assunção ao cargo e se extinguia automaticamente com o fim do exercício da função, independentemente da natureza do crime imputado.

Por um longo período, de 1999 a 2018, o tema ficou pacificado e prevaleceu a regra da atualidade. A competência por prerrogativa começava com a posse no cargo e envolvia todas as investigações e ações penais contra o agente público, até mesmo aquelas relacionadas a fatos anteriores à nomeação ou sem vínculo com as funções desempenhadas. No entanto, ao deixar o cargo — seja por término do mandato ou renúncia —, o agente perdia automaticamente o foro, em qualquer fase em que o processo se encontrasse.

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Percebendo uma necessidade de brecar eventuais desvios de competência por iniciativa do agente, a Primeira Turma aprofundou o tema em busca de um critério geral para a manutenção: “a renúncia de parlamentar, após o final da instrução, não acarreta a perda da competência do Supremo Tribunal Federal”. Serviria, portanto, para inibir a manipulação da regra da atualidade (AP 606-QO, rel. min. Roberto Barroso, DJ 18/6/2014).

Em 2018, a corte novamente revisou o posicionamento, tornando a adotar a regra da contemporaneidade. Na AP 937-QO, sob a relatoria do ministro Roberto Barroso [4], a prerrogativa de foro passou a ser restrita aos crimes cometidos durante o exercício do cargo e em função das atribuições a ele inerentes:

“(i) O foro por prerrogativa de função aplica-se apenas aos crimes cometidos durante o exercício do cargo e relacionados às funções desempenhadas; e (ii) após o final da instrução processual, com a publicação do despacho de intimação para apresentação de alegações finais, a competência para processar e julgar ações penais não será mais afetada em razão de o agente público vir a ocupar cargo ou deixar o cargo que ocupava, qualquer que seja o motivo”.

A partir de então, o Supremo Tribunal Federal estabeleceu um importante marco restritivo: o crime deve ter sido praticado no exercício do cargo e em razão das funções desempenhadas, não bastando a mera diplomação do parlamentar (regra da contemporaneidade). Na prática, contudo, a regra da atualidade, estabelecida no Inquérito 687-QO, ainda era aplicada, pois o afastamento das funções acarretava o deslocamento de todos os inquéritos e ações penais originárias para a primeira instância.

Foi precisamente esse entendimento que o ministro Gilmar recentemente propôs alterar: “se a diplomação do parlamentar, sozinha, não justifica a remessa dos autos para os Tribunais, o encerramento do mandato também não constitui razão para o movimento contrário – retorno dos autos para a primeira instância”.

Sustentou a necessidade de avançar no debate para fixar um critério geral mais coerente e estável, baseado na natureza do fato criminoso, e não em fatores sujeitos ao controle do próprio acusado, como a permanência no cargo. Afirmou que a proposta cumpriria esse objetivo, sem afastar os fundamentos centrais definidos na AP 937-QO — estabilização do foro para julgamento de crimes praticados no exercício do cargo e em razão dele —, ao mesmo tempo em que corrigiria a instabilidade do sistema, evitando manobras que gerem atrasos processuais, comprometem a eficiência da Justiça e, em última instância, favorecem a prescrição.

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Foi acompanhado pela maioria dos ministros integrantes da corte – vencidos os ministros André Mendonça, Edson Fachin, Cármen Lúcia e Luiz Fux, para os quais o alargamento do foro por prerrogativa de função para período posterior ao fim do exercício do cargo ou função contraria a jurisprudência construída de forma gradativa e constante pela Corte Suprema nas últimas duas décadas e esvazia a lógica justificadora da excepcional competência.

Embora a tese fixada não tenha a intenção declarada de suplantar a jurisprudência vigente — conforme ressalvou o próprio relator —, seus efeitos práticos são inegáveis: inúmeros inquéritos e ações penais, que tramitam há anos nas instâncias inferiores, serão remetidos às cortes superiores. E com isso corre-se o risco de se chegar ao resultado que se pretendia evitar: deslocamentos sucessivos de competência, atrasos processuais, diligências intermináveis e, ao fim, a prescrição. Sem falar-se no desvirtuamento da convalidação de vícios processuais, sempre que o ato processual seja praticado por autoridade posteriormente reconhecida incompetente.

Se, mais adiante, o Supremo, diante da sobrecarga de processos de competência originária, vier a reconhecer o equívoco ou a inadequação da nova orientação e decidir revisá-la, o argumento que hoje a sustenta terá se mostrado, no mínimo, frágil e inconsistente frente os danos provocados.


[1] Súmula 394, DJ de 08/05/1964, p. 1239; DJ de 11/05/1964, p. 1255; DJ de 12/05/1964, p. 1279.

[2] RE 162966, Relator(a): NÉRI DA SILVEIRA, Tribunal Pleno, julgado em 27-05-1993, DJ 08-04-1994 PP-07250  EMENT  VOL-01739-09 PP-01767. Rcl 583, Relator(a): MAURÍCIO CORRÊA, Tribunal Pleno, julgado em 28-04-1997, DJ 22-06-2001 PP-00024  EMENT VOL-02036-01 PP-00058)

[3] Inq 687 QO, Relator(a): SYDNEY SANCHES, Tribunal Pleno, julgado em 25-08-1999, DJ 09-11-2001 PP-00044  EMENT VOL-02051-02 PP-00217 RTJ   VOL-00179-03 PP-00912.

[4] DJe 11.12.2018.

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