Como escrever uma cláusula de renegociação adequada em contratos empresariais? Em texto anterior nesta coluna (aqui), vimos que cláusulas vagas ou abertas podem ser estratégicas: elas facilitam que os contratantes aloquem riscos desconhecidos entre si. No texto de hoje, dividido em duas partes, daremos alguns passos atrás.
Na prática negocial, é comum observar dois arquétipos de cláusulas de renegociação: alguns contratos usam termos vagos para definir os pressupostos revisionais; outros apostam em textos fechados, delimitando os riscos que a cláusula abrange ou excluindo tantos outros.
Esse jogo entre linguagem precisa e vaga não é fortuito: ele espelha uma lógica na redação de contratos duradouros. Vamos entender as vantagens e as desvantagens comparativas desses estilos, segundo dois enfoques.
Primeiro enfoque: equilibrar certeza e flexibilidade nos contratos
Quando surgiram nos anos 1970, cláusulas de renegociação eram bem simples. No comércio internacional, isso se traduzia nas fórmulas abertas que as cláusulas de hardship empregavam para descrever seus riscos, e que persistem até hoje: as partes se obrigam a renegociar diante de “variações muito importantes na conjuntura econômica”; “circunstâncias fora das previsões normais das partes”; “um evento econômico ou financeiro grave”. Alguns contratos são mais vagos ainda: tratam de “eventos imprevisíveis”, “fatos imprevistos” ou “causas fora do controle das partes” [1].
Com o tempo, certas cláusulas passaram a usar linguagem mais precisa, fixando desde logo no instrumento os riscos que autorizam renegociações. Exemplos: “se a produção de aço proveniente de fontes de hematita atingir 20% da produção total da siderúrgica”, “no caso da aplicação de novos direitos de importação ou exportação”, ou se surgir “uma nova fonte economicamente disponível de produtos.” [2]
Cláusulas específicas servem para dar certeza às relações negociais. Ao definir seu suporte fático de maneira precisa, elas têm a vantagem de serem mais claras. As partes acreditam que, na média, um julgador hipotético irá aplicar o texto do contrato tal como ele está escrito. Essa clareza estabiliza as expectativas dos contratantes: eles conseguem se planejar e adequar seu comportamento ao que o negócio estipula. Se um risco se materializa, a margem para dúvidas interpretativas é menor – reforçando a confiança de que o que está escrito, vale. No exemplo anterior da siderúrgica, ela sabe que a renegociação só é contratualmente exigível se a produção da fonte de hematita chegar a 20% de entrega total (não 19%, nem 21%), o que é guia mais certo para organizar o empreendimento do que discutir se a produção se tornou “muito onerosa” ou “economicamente inviável”.
O problema está nas situações limítrofes. Haverá cenários em que o objetivo subjacente à cláusula faz sentido, mas ela não incide — ao menos não textualmente. Ou, do contrário, casos em que a cláusula deve ser aplicada porque seu suporte fático se verifica, por mais que o resultado dessa aplicação divirja da justificativa por trás dela. Na teoria do Direito isso se chama de superinclusão e subinclusão das regras jurídicas [3]. Uma cláusula de hardship específica — às vezes muito específica — dirá mais e dirá menos do que as partes gostariam se tivessem antevisto algum cenário diferente.
Imagine uma cláusula definindo que o contrato de fornecimento será renegociado se, por força de qualquer causa imprevisível, os custos anuais para produzir o bem excederem em 50% a receita anual com a venda. E se custo e receita ficarem iguais? E se excederem em 45%? O prejudicado argumentaria que esse cenário não é “comercialmente razoável” — afinal, a empresa por definição visa ao lucro. Se a cláusula fosse vaga, a chance de a tese vingar seria melhor. Não é o que decorre da cláusula cujo suporte fático é uma porcentagem objetiva, ao menos não sem boa dose de esforço interpretativo para modular seu texto claro. Ela é subinclusiva nesse exemplo. É o risco que os contratantes assumem nesse tipo de suporte fático: eles se vinculam a renegociar só em hipóteses muito delimitadas — que podem nem sempre ser as melhores —, presumindo-se que para todas as outras vale a intangibilidade do contrato. A certeza do contrato vem ao preço de maior rigidez.
É aí que entram em cena os termos abertos: “desequilíbrio grave”; “razoabilidade comercial” e similares. Por um lado, essas diretrizes são pouco claras ex ante, pois em tese admitem várias leituras plausíveis — o que as torna menos úteis para orientar o comportamento das partes prospectivamente. Sua contraface positiva é que permanecem flexíveis ao longo do tempo: o instrumento será interpretado e reinterpretado para se amoldar às novas circunstâncias, muitas delas imprevisíveis no momento da assinatura.
Cláusulas vagas convidam as partes e o julgador a esse tipo de raciocínio casuístico, em que diferentes fatores devem ser sopesados para decidir cada caso concreto. Mas claro: se as partes desejam se socorrer de um intérprete neutro caso a renegociação direta fracasse — juiz, árbitro, mediador —, é necessário fixar um conteúdo mínimo para a revisão. Do contrário, corre-se o risco de a cláusula, de tão vaga, ser considerada inexequível numa disputa jurídica, como já concluiu o Tribunal de Justiça de São Paulo [4].
Segundo enfoque: alocar poder decisório sobre o conteúdo da cláusula
Avancemos ao segundo enfoque. Optar entre linguagem precisa e vaga serve também para alocar poder decisório sobre o conteúdo contratual. Vista sob esse ângulo, a questão é quem dá conteúdo concreto à cláusula de renegociação e quando essa decisão é tomada. Cláusulas precisas traduzem o esforço das partes em fixar, elas próprias, o conteúdo de suas obrigações no presente, isto é, ao celebrarem o acordo (ex ante).
Termos abertos relegam parcela menor ou maior dessa escolha ao futuro, confiando na discricionariedade do intérprete — que a exercerá só se e quando o risco se materializar. O texto da cláusula amplia ou restringe essa liberdade interpretativa dependendo daquilo que ele fixa no presente e daquilo que deixa vago para ser complementado depois.
A chance de uma decisão contrária ao que as partes gostariam existe, mas a técnica é útil quando é impossível traçar solução exata para vários estados de mundo com chances desconhecidas de ocorrer. Ao invés de antecipar e decidir um sem-número de estados de coisas futuros, pode fazer mais sentido deixar o contrato vago ou lacunoso para debater só sobre os riscos que de fato se concretizem.
A vantagem aí é que a incerteza se dissipou: as partes então se concentram em solucionar o problema com o benefício da visão retrospectiva (ex post). Por outro lado, a confiança exigida nesse contexto é alta. Uma coisa é traçar soluções para o desequilíbrio eventual no momento da assinatura, quando as partes acreditam na parceria que virá. Outra, mais difícil, é debater termos vagos depois que o conflito se instalou e os interesses de cada um são opostos. Cada parte defenderá que a interpretação que a beneficia no caso concreto é “a melhor”, “a correta” — sem que o contrato ampare explicitamente nenhuma. No limite, o julgador será provocado para solucionar impasses.
Um julgado do TJ-SP ilustra como isso funciona [5]. As partes discutiam o índice inflacionário para corrigir o valor das parcelas do preço em contrato de promessa de compra e venda de imóvel. A regra do contrato era o reajuste anual pelo IGP-M. O instrumento ressalvava que “atos governamentais”, “mudanças de padrão monetário”, “extinção ou congelamento de índice de correção monetária” ou “outro artifício não condizente com a real inflação” poderiam descolar o índice da inflação real em certo período. Nessas situações, a mesma cláusula estipulava — de modo abrangente — que “o saldo devedor do preço deste negócio jurídico será revisto de forma que se restabeleça o […] equilíbrio econômico-financeiro do contrato”.
Com a pandemia em 2020, o IGP-M aumentou mais do que a inflação real no Brasil medida por outros índices setoriais, em boa parte porque ele considera oscilações do dólar. Em princípio, o contrato não previu essa situação — ao menos não de maneira expressa. O TJ-SP, porém, se valeu do texto aberto do final da cláusula — “restabelecer o equilíbrio” — e entendeu ser “razoável, […] que se aplique também a cláusula para fins da situação inversa, qual seja, a de o indexador eleito pelas partes superar em muito a inflação do período […]”. O tribunal substituiu o IGP-M pelo INPC.
Esse caso ilustra o uso do contrato para que o julgador crie soluções que as partes não previram ao assiná-lo. O contraponto é que, no geral, sempre haverá mais de uma resposta correta dentro da moldura da cláusula. Veja-se: alguém poderia questionar por que o Tribunal aplicou o INPC em vez do IPCA ou de outra fórmula qualquer. Contratantes que optam por termos vagos devem estar cientes de que algum grau de subjetividade decisória é inafastável. Mas devem também confiar nela: frente a imprevistos, é melhor ter alguma resposta do que ficar sem nenhuma.
Conclusão
Neste breve texto, vimos que o primeiro caminho para construir uma boa cláusula de renegociação é entender a dinâmica entre usar linguagem precisa e termos vagos no instrumento. Além de ajudar redatores de contratos empresariais, o ponto tem relevância hermenêutica: em sentido amplo, essas estratégias formam o que se pode chamar de “racionalidade econômica” de contratantes empresários (artigo 113, §1º, V, Código Civil).
Na próxima etapa dessa análise, discutiremos como uma cláusula de renegociação mais sofisticada pode mesclar criativamente linguagem específica e aberta em um só texto — usando como base da reflexão duas cláusulas-modelo da Câmara de Comércio Internacional (CCI).
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[1] FONTAINE, Marcel; DE LY, Filip. Drafting International Contracts: An Analysis of Contract Clauses. Nova Iorque: Transnational Publishers, 2006. p. 463
[2] FONTAINE, Marcel; DE LY, Filip. Drafting… cit., p. 466-467.
[3] SCHAUER, Frederick F. Thinking like a lawyer: a new introduction to legal reasoning. Cambridge, Mass: Harvard University Press, 2009. p. 188-202.
[4] “Se a ideia era erigir algo semelhante a uma cláusula de hardship, que estabelecesse valores menores de multa, ou mesmo sua inexigibilidade, na hipótese de queda de arrecadação, era fundamental que as partes tivessem fixado parâmetros objetivos no próprio acordo para que isso pudesse ser efetivado. Todavia, na forma como foi redigida a cláusula, em termos absolutamente genéricos, sem a fixação de qualquer critério objetivo para a redução da multa, inviável extrair qualquer consequência jurídica de seu conteúdo, a não ser a necessidade de as partes entabularem novas negociações, o que foi cumprido” (TJ-SP, Agravo Regimental Cível n.º 2010463-11.2016.8.26.0000/50001, Órgão Especial, Rel. Des. Pereira Calças, j. 27.02.2019).
[5] TJ-SP, Agravo de Instrumento n.º 2175864-86.2021.8.26.0000, Rel. Des. Francisco Loureiro, 1ª Câmara de Direito Privado, j. 30.08.2021, DJe 09.09.2021.
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