Na semana passada, a Câmara dos Deputados aprovou o Projeto de Lei Complementar nº 136/2023, que “dispõe sobre a compensação devida pela União, nos termos do disposto nos art. 3º e art. 14 da Lei Complementar nº 194, de 23 de junho de 2022; a dedução das parcelas dos contratos de dívida; a transferência direta de recursos da União aos estados e ao Distrito Federal; a incorporação do excesso compensado judicialmente em saldo devedor de contratos de dívida administrados pela Secretaria do Tesouro Nacional do Ministério da Fazenda; e o tratamento jurídico e contábil aplicável aos pagamentos, às compensações e às vinculações”.
Vale lembrar que as Leis Complementares nº 192 e 194, respectivamente, de 11 de março e de 23 de junho, ambas de 2022, promoveram uma inconstitucional inibição da arrecadação do imposto sobre operações relativas à circulação de mercadorias e sobre prestações de serviços de transporte interestadual e intermunicipal e de comunicação — ICMS, às vésperas do processo eleitoral do ano passado.
Aludida fixação de alíquotas limítrofes para o ICMS empreendida pela União afrontou o pacto federativo e implicou redução da base arrecadatória sobre a qual incidem os porcentuais constitucionalmente estabelecidos como deveres de aplicação mínima em saúde e educação e como sistemática de equalização federativa que perfaz o Fundo de Manutenção e Desenvolvimento da Educação Básica e de Valorização dos Profissionais da Educação. Para fazer face à perda proporcional para os pisos e para o Fundeb, houve a inserção no âmbito da LC 194/2022 do dever de compensação federativa, na forma do seguinte artigo 14, que chegou a ser vetado pelo Executivo e teve seu veto derrubado pelo Congresso Nacional:
Art. 14. Em caso de perda de recursos ocasionada por esta Lei Complementar, observado o disposto nos arts. 3º e 4º, a União compensará os demais entes da Federação para que os mínimos constitucionais da saúde e da educação e o Fundeb tenham as mesmas disponibilidades financeiras na comparação com a situação em vigor antes desta Lei Complementar.
Parágrafo único. Os Estados, o Distrito Federal e os Municípios beneficiários do disposto nos arts. 3º e 4º desta Lei Complementar deverão manter a execução proporcional de gastos mínimos constitucionais em saúde e em educação, inclusive quanto à destinação de recursos ao Fundeb, na comparação com a situação em vigor antes desta Lei Complementar.
Eis o contexto primordial que justificou o PLC 136/2023, todavia o limite máximo ali previsto de R$ 27.014.900.000,00 (vinte e sete bilhões quatorze milhões e novecentos mil reais) para compreender as compensações previstas tanto no artigo 3º, quanto no artigo 14 da LC 194/2022 é francamente insuficiente para equalizar as perdas decorrentes da inibição do ICMS para as políticas públicas amparadas pelas garantias de custeio inscritas nos arts. 198, 212 e 212-A da Constituição.
Se se considerar apenas o exercício de 2022, para cada R$100 de queda na arrecadação de ICMS, haveria uma perda proporcional para as vinculações constitucionais de R$ 40,75. Caso a inibição do ICMS empreendida pela LC 194 não tivesse sido declarada inconstitucional pelo Supremo Tribunal Federal no âmbito da ADPF 984 e da ADI 7.121, haveria uma tendência de perda proporcional ainda maior, por força da Emenda Constitucional nº 108, de 26 de agosto de 2020, que previu crescimento escalonado da complementação da União ao Fundeb até 2026, na forma do artigo 60 do ADCT.
Todavia, importa lembrar que as LC’s 192 e 194/2022 não são expressão isolada de constrangimento fiscal imposto pela União aos demais entes federados ao longo do ano passado. A elas se somaram tanto fixação nacional de despesas obrigatórias, como se sucedeu com o piso remuneratório dos profissionais da enfermagem no âmbito da Emenda 124/2022; quanto a inibição da arrecadação tributária repartida federativamente, tal como ocorreu com a redução de alíquotas do imposto sobre produtos industrializados (IPI), empreendida pelos decretos federais nº 11.158 e 11.182, respectivamente de 29 de julho e de 24 de agosto, ambos de 2022.
Aliás, o desequilíbrio federativo em que o país se encontra resta bem evidenciado na tardia promulgação da Emenda 128, de 22 de dezembro de 2022, após a PEC 122/2015 haver sido aprovada em caráter definitivo em 14 de julho daquele ano, mesma ocasião em que havia sido promulgada a Emenda 124/2022, que trouxe o piso remuneratório nacional dos profissionais da enfermagem. A Emenda 128/2022 inseriu o seguinte §7º no artigo 167 da Constituição de 1988:
Art. 167. […]
§ 7º A lei não imporá nem transferirá qualquer encargo financeiro decorrente da prestação de serviço público, inclusive despesas de pessoal e seus encargos, para a União, os Estados, o Distrito Federal ou os Municípios, sem a previsão de fonte orçamentária e financeira necessária à realização da despesa ou sem a previsão da correspondente transferência de recursos financeiros necessários ao seu custeio, ressalvadas as obrigações assumidas espontaneamente pelos entes federados e aquelas decorrentes da fixação do salário mínimo, na forma do inciso IV do caput do art. 7º desta Constituição.
Omissões análogas se sucedem também com a restrição do alcance da sistemática de complementação federal ao piso do magistério constante da Lei 11.738, de 16 de julho de 2008, tal como foi prevista em seu artigo 4º, a apenas aos entes que recebem a complementação ao Fundeb.
A edição de norma nacional em desfavor dos estados, DF e municípios, frustrando sua arrecadação anteriormente estimada ou gerando despesa obrigatória de caráter continuado, deveria ser formalmente reconhecida como risco fiscal, na forma do artigo 4º, § 3º da Lei Complementar 101, de 4 de maio de 2000. Isso porque a recorrente e abusiva extrapolação de efeitos fiscais das competências legislativas da União para os demais entes federados se revela como medida capaz de comprometer o regime de responsabilidade intertemporal das contas públicas em todo o federalismo fiscal brasileiro. Os passivos contingentes decorrentes das cada vez mais volumosas demandas judiciais interfederativas atestam exatamente essa dimensão de risco.
Inibir receitas repartidas e impor despesas obrigatórias a outros entes políticos são condutas da União que impactam fortemente a capacidade de gerenciamento compartilhado de serviços públicos essenciais no território nacional, até porque operam em sentido francamente contraditório, agravando a saúde das contas públicas estaduais, distritais e municipais.
Como visto, a cada R$ 100 de perda da arrecadação de ICMS causada pela LC 194, os pisos em saúde e educação e o Fundeb sofreram com a perda proporcional de R$ 40,75 durante o exercício financeiro de 2022. Todavia, reduzir a carga tributária não é uma escolha discricionária isenta de repercussão fiscal, na medida em que há um tamanho indisponível do Estado brasileiro do ponto de vista do arcabouço normativo que rege as finanças públicas do país.
Engana-se quem acha que a carga tributária pode ser reduzida de forma aparentemente ilimitada e quase completamente dissociada dos compromissos incomprimíveis de gasto atribuídos ao Estado pela Constituição de 1988.
Caso não haja aprimoramento da qualidade da execução orçamentária para torná-la mais aderente ao planejamento setorial das políticas públicas, inibir as receitas tributárias necessariamente implicará escolher entre reduzir quantitativamente o raio da ação estatal, ou majorar o endividamento público. Em qualquer dessas hipóteses, haverá uma frustração do regime constitucional das finanças públicas brasileiras.
Eis o contexto em que é preciso pautar a estreita conexão instrumental entre as receitas estatais e o rol de despesas não suscetíveis de limitação de empenho ou pagamento, na forma do artigo 9º, §2º da LRF. Tais despesas devem ser mantidas, ainda que a estimativa de arrecadação se revele frustrada ao longo do exercício financeiro e ainda que haja risco de afetação das metas fiscais. O tamanho do Estado no Brasil não pode ser reduzido em patamar aquém desse elenco que agrega as despesas que correspondem às suas inadiáveis e incomprimíveis obrigações constitucionais e legais.
Inibir a arrecadação da primordial fonte republicana de custeio do Estado é escolha que, no mínimo, deveria demandar maiores ônus argumentativos, para que estivesse sujeita dialeticamente a limites que atestassem seus impactos quantitativos e qualitativos no dever de consecução das competências a cargo de cada ente da federação, bem como a cargo de todos eles conjuntamente.
Para impor suficiente dever de motivação ao governo federal é preciso obrigá-lo a reconhecer como riscos fiscais tanto a frustração da arrecadação repartida federativamente, quanto a imposição nacional de despesa obrigatória de caráter continuado sem suficiente fonte de custeio.
Os passivos judicializados são uma comprovação ex post desse impasse federativo. Não obstante isso, é necessário impor à União — preventiva e automaticamente — dever de compensação capaz de suportar, no mínimo, o custeio do rol de despesas não suscetíveis de contingenciamento, para resguardar a continuidade dos serviços públicos, que, embora sejam prestados de forma descentralizada por determinados entes, impliquem responsabilidade solidária de toda a federação.
Um interessante e recente exemplo a esse respeito reside no modo como a Emenda nº 120, de 5 de maio de 2022, previu ser responsabilidade da União o custeio dos vencimentos dos agentes comunitários de saúde e dos agentes de combate às endemias. Tal responsabilidade federal será atendida mediante repasses de recursos financeiros aos governos regionais e locais, de forma suficiente e vinculada ao cumprimento do piso salarial profissional nacional previsto no artigo 198, §5º da CF/1988. É notável e digno de ser reproduzido, pois, o caminho de equalização do federalismo fiscal brasileiro aberto pelos §§7º a 11 acrescidos ao artigo 198 da Constituição pela EC 120/2022.
Para mitigar o desequilíbrio na gestão das receitas e na distribuição das responsabilidades de despesas que permeia as relações entre os entes federados, é preciso inverter a equação fiscal de modo a controlar a proposição normativa federal, antes mesmo de a União conseguir alterar o ordenamento para impactar as contas dos demais entes políticos, como, a propósito, consta do §7º acrescido ao artigo 167 da Constituição, pela EC 128/2022.
Manter a sistemática atual, além de fiscalmente irresponsável, significaria admitir que a União obrigue, por via transversa, os estados, DF e municípios a assumirem dívida, por força da atuação fiscalmente incongruente de reduzir receitas tributárias repartidas, enquanto são descentralizadas obrigações de despesas (a exemplo do piso da enfermagem e inibição do IPI e do ICMS).
É possível estimar o risco fiscal de majoração do endividamento público dos governos municipais, distrital e estaduais, quando se verificar que a frustração de arrecadação que lhes foi imposta exogenamente pelo governo federal pode vir a comprometer a capacidade de custeio do rol de despesas não suscetíveis de contingenciamento (artigo 9⁰, §2º da LRF).
Não há voluntarismo analítico em tal hipótese, porque a identificação de tais despesas constitucional e legalmente obrigatórias deve ser feita anualmente em anexo próprio das leis de diretrizes orçamentárias — LDO’s de cada ente da federação, sendo possível quantificar sua repercussão fiscal a cada exercício.
Trata-se, em última instância, da positivação aplicável ao Direito Financeiro da noção de “mínimo existencial” acerca dos serviços públicos e ações governamentais que não podem sofrer solução de continuidade.
Considerando que esse elenco de despesas não suscetíveis de qualquer limitação durante a execução orçamentária corresponde a uma espécie de “mínimo existencial fiscal” e que, por isso, seu custeio se impõe até mesmo mediante endividamento público, é preciso ampliar o conceito de responsabilidade fiscal, na medida em que abdicar receitas tributárias não é escolha discricionária que estaria limitada tão somente pelo horizonte formal da sustentabilidade da dívida pública dado pela meta de resultado primário.
Há correlatamente o limite substantivo do dever de custeio suficiente das despesas não suscetíveis de contingenciamento. Tais despesas são incomprimíveis, porque expressam o tamanho necessário do Estado para cumprir, cabe reiterar, suas obrigações constitucionais e legais qualitativamente destinadas à garantia dos direitos fundamentais.
Independentemente de se for tomada a projeção de risco para cobrir a despesa insuscetível de contingenciamento (montante fixo de compromissos de gasto já assumidos) ou de se for tomada a proporcionalidade sobre a receita que contrafactualmente deixou de ser arrecadada, para fins de posterior incidência dos pisos em saúde e educação e do Fundeb, cabe impor ao governo federal o ônus agravado de motivação diante da insuficiente compensação empreendida pelo PLC 136/2023 em face do artigo 14 da LC 194.
Considerando que a União, ao inibir a arrecadação do ICMS, impôs — direta ou indiretamente — o risco fiscal de financiamento mediante endividamento das despesas obrigatórias dos governos locais e regionais; é preciso indagar acerca da razoabilidade e da proporcionalidade dessa equação, na medida em que estados, DF e municípios têm limite de dívida consolidada e mobiliária regulamentado na forma do artigo 52, VI e IX da CF/1988 (Resolução do Senado nº 40, de 20 de dezembro de 2001), enquanto a União não o possui.
Obviamente, é incoerente editar regimes fiscais aplicáveis seletivamente apenas ao nível federal (como se sucedeu com a EC 95/2016 e também agora se repete com a LC 200/2023), enquanto são impostos desequilíbrios orçamentários e financeiros desarrazoados para os demais entes da federação. Criar despesas obrigatórias de âmbito nacional e frustrar a arrecadação de tributos repartidos são rotas contraditórias, que, em última instância, afrontam a própria garantia de que as transferências constitucionais obrigatórias são exceção ao teto, precisamente porque visam resguardar o equilíbrio federativo.
Basta a União reduzir artificialmente a receita dos impostos repartidos na federação e impor nacionalmente obrigações de despesa aos governos estaduais e municipais para fazer letra morta das suas falseadas rotas de ajuste fiscal.
Não há ação planejada e transparente, nos moldes do artigo 1º, §1º da LRF, mas risco fiscal imposto e assumido pela União, inclusive mediante passivos judicializados, quando o ente central compromete a sustentabilidade das finanças públicas locais e regionais, de um lado, e esvazia a eficácia dos direitos sociais, cujo arranjo orgânico distribui responsabilidades na federação, como se sucede com o SUS e o Fundeb, de outro.
Esse quadro é agravado pela retração da participação da União no custeio dos direitos fundamentais (guerra fiscal de despesas), decorrente, entre outras circunstâncias, da regressividade proporcional e, por conseguinte, esvaziamento dos pisos federais em saúde e educação.
Mais do que um mero limite quantitativo arbitrário, deve se buscar identificar e enfrentar materialmente os riscos fiscais do desequilíbrio federativo, os quais impedem a consecução intertemporalmente aprimorada dos programas de duração continuada do plano plurianual — PPA e das despesas não suscetíveis de contingenciamento da LDO. Afinal, são tais despesas que revelam as políticas públicas nucleares ao cumprimento da Constituição e à efetividade planejada e federativamente sustentável dos direitos fundamentais.
Em face de todo o exposto, reputa-se aqui o PLC 136/2023 insuficiente para cumprir sua alegada finalidade de regulamentação do artigo 14 da LC 194/2022, na medida em que ignorou o dever de a União compensar federativamente: tanto a (1) assunção de riscos fiscais decorrentes da frustração de arrecadação e de passivos judicializados; quanto o (2) financiamento de despesas não suscetíveis de contingenciamento, direta ou indiretamente, mediante endividamento dos governos municipais, distrital e estaduais, a exemplo do que se sucede com as demandas judiciais e, por conseguinte, com os precatórios daí acumulados.
Ora, não pode ser reputado intertemporalmente sustentável um arranjo normativo que insule a União, apartando-lhe da sua responsabilidade solidária seja para com os demais entes federados, seja para com o custeio dos direitos fundamentais. A cooperação entre a União, os estados, o Distrito Federal e o municípios, sobretudo no desempenho das suas competências comuns, é obrigação inalienável, na forma do artigo 23, parágrafo único da CF/1988, até para que se possa alcançar o “equilíbrio do desenvolvimento e do bem-estar em âmbito nacional”.
Federativamente as políticas públicas de saúde e educação reclamam previsibilidade na sua consecução orçamentário-financeira por envolverem elevado índice de despesas obrigatórias[‘], não suscetíveis de contingenciamento. Além disso, tais áreas são materialmente responsáveis por serviços públicos essenciais, que não podem sofrer solução de continuidade.
Infelizmente, porém, o governo federal tem se notabilizado por fugir às suas responsabilidades federativas e por constranger o custeio dos direitos à saúde e à educação, quebrando a efetividade dos respectivos pisos, para reduzir sua participação proporcional, enquanto sobrecarrega estados e municípios.
[1] Dois exemplos da política pública de educação residem nos incisos XI e XII do art. 212-A da CF/1988, respectivamente relacionados à subvinculação de 70% do FUNDEB para o pagamento dos profissionais da educação básica em efetivo exercício e à garantia de piso salarial profissional nacional para os profissionais do magistério da educação básica pública. Na seara da saúde, são emblemáticos, embora distintos, os regimes jurídicos do piso salarial profissional nacional para os agentes comunitários de saúde e agentes de combate às endemias (Emenda Constitucional nº 120, de 5 de maio de 2022) e do piso salarial nacional dos profissionais de enfermagem (Emenda nº 124, de 14 de julho de 2022).
Fonte: Conjur