No finalzinho de 2023 (17/10/2023), o Superior Tribunal de Justiça julgou o Recurso Especial nº 2.088.100/SP, firmando precedente no sentido de que o reconhecimento da prescrição impede tanto a cobrança judicial quanto extrajudicial da dívida. Sob a relatoria da ministra Nancy Andrighi, a 3ª Turma entendeu, à unanimidade, que o método ou meio empregado na cobrança (judicial ou extrajudicial) é irrelevante, uma vez que a pretensão de ver a dívida paga é praticamente tornada ineficaz pela prescrição.
Votando com a relatora, o ministro Marco Aurélio Bellizze destacou que havia julgado de sua relatoria (AgInt nos EDcl no AREsp nº 2.334.029/SP) baseado no AgInt no AREsp nº 1.529.662/SP, também da 3ª Turma, que se amparou equivocadamente no REsp nº 1.694.322/SP, no qual se definiu questão diversa, qual seja, a de que a prescrição não enseja a inexistência da dívida ou a quitação do débito.
Assim, valendo-se majoritariamente de doutrina estrangeira (direito comparado), para respaldar o resultado do julgado, a relatora concluiu que:
“Em que pese a conclusão alcançada, não se desconhece que o crédito (direito subjetivo) persiste após a prescrição; contudo, a sua subsistência não é suficiente, por si só, para permitir a cobrança extrajudicial do débito, uma vez que a sua exigibilidade, representada pela dinamicidade da pretensão, foi paralisada/encoberta. Por outro lado, nada impede que o devedor, impelido, por exemplo, por questão moral, em ato de mera liberalidade, satisfaça a dívida prescrita. Tampouco há qualquer impedimento a que o devedor, voluntariamente, impelido pelos valores mais diversos, renuncie à prescrição e pague a dívida.
(…)
Em breve síntese, entende-se que o reconhecimento da prescrição da pretensão impede tanto a cobrança judicial quanto a cobrança extrajudicial do débito.”
Em que pese o brilhantismo do voto condutor do acórdão (que é peculiar aos julgados de relatoria da ministra Nancy), esse entendimento parece contrariar a doutrina nacional majoritária, bem como a jurisprudência pacificada no âmbito da própria corte.
Nesse sentido, “é a ideia de Beviláqua, Espínola, Carpenter, Câmara Leal, Carvalho Santos (cf. GOMES, Orlando, ob. cit., p. 518). Também Silvio Rodrigues: ‘O que perece, portanto, através da prescrição extintiva, não é o direito. Este pode, como ensina Beviláqua, permanecer por longo tempo inativo, sem perder a sua eficácia. O que se extingue é a ação que o defende’ (Direito Civil — Parte Geral, 28. ed., v. I, São Paulo: Saraiva, 2007, p. 318)”.[1]
Ora, se o direito (crédito) não perece e não perde a sua eficácia, isto é, se permanece existente no mundo dos fatos, não pode ser aniquilado com o reconhecimento da prescrição do direito de ação (direito constitucional e processual civil), especialmente se existir (como existem) outros mecanismos jurídicos que não se apequenam diante desses dois ramos do direito, tais como os costumes e os princípios gerais.
Anderson Schreiber alerta que:
“Atualmente, há certo consenso de que a interpretação jurídica não se limita à análise servil da lei, nem se subordina exclusivamente à produção estatal, nem tampouco pode se centrar em concepções pessoais de justiça ou desconsiderar o dado normativo como emanação de uma sociedade democrática e pluralista. Deve o intérprete escapar ao dogmatismo formalista, mas também ao dogmatismo sociológico. Seu desafio cotidiano consiste em extrair das normas jurídicas o seu sentido e alcance à luz do próprio ordenamento, visto não apenas em sua literalidade, mas também em seu conjunto, em sua história e em seus fins, assim entendidos os valores a cuja concretização se propõe a ordem jurídica por meio de sua norma fundamental, a Constituição da República, compreendida com base na permanente dialética com a realidade social.
Alude-se a uma interpretação jurídica aplicativa, voltada não para um projeto explícito de reforço ou contestação da autoridade legislativa estatal, mas para a máxima concretização dos valores constitucionais em cada caso concreto“[2]
De acordo com os costumes, normalmente quem deve paga. Ademais, pagar o que deve é apenas consequência lógica e consagração dos princípios gerais do ordenamento jurídico: suum cuique tribuere (dar a cada um o que é seu), honeste vivere (viver honestamente) e neminem laedere (não causar dano a ninguém). Ademais, a ninguém é dado beneficiar-se de sua própria torpeza (venire contra factum proprio).
Não faz sentido afirmar que um direito existe, mas não pode ser perseguido extrajudicialmente. É como estar com fome, ter um pão, mas não poder comê-lo, porque passou do horário. Se há fome e há pão, o horário é de menos!
A pretensão é algo volitivo, de natureza pessoal, que transcende o processo judicial e seus institutos como a prescrição. Quem pretende receber algo (porque sente que lhe é devido) não pode ser proibido de exercer a faculdade de cobrá-la, por todos os meios admitidos no ordenamento jurídico. Na lição de Pontes de Miranda, pretensão é “a posição subjetiva de poder exigir de outrem alguma prestação positiva ou negativa” [3], e isso (entendemos), independe da via pela qual se perseguirá o direito material, se judicial ou extrajudicial.
É nesse sentido que ao contrário do que consignou o precedente em discussão, entendemos que a pretensão vista como vontade pessoal, se submete ao princípio da indiferença das vias, mas sob outro viés: pode ser exercida tanto judicial, quanto extrajudicialmente.
Nada obstante, infere-se que a chamada teoria da pretensão [4] (utilizada no julgado) foi adotada pelo Código Civil de 2002, em seu artigo 189, assim redigido “violado o direito, nasce para o titular a pretensão, a qual se extingue, pela prescrição, nos prazos a que aludem os artigos 205 e 206″.
Com a devida venia, entendemos que esse dispositivo legal deve ser interpretado à luz do artigo 5º da LINDB, segundo o qual “na aplicação da lei, o juiz atenderá aos fins sociais a que ela se dirige e às exigências do bem comum”, de sorte que a prescrição não fulminará o direito de o credor perseguir o seu crédito por outras vias admitidas no ordenamento jurídico.
Não se pode desvirtuar o princípio da indiferença das vias, para se sustentar que “pouco importa a via ou instrumento utilizado para a realização da cobrança, porquanto a pretensão — que é o instituto de direito material que confere ao credor esse poder — encontra-se praticamente inutilizada pela prescrição. O fenômeno ocorreu no plano do direito material”, pois, a sua finalidade é exatamente o contrário.
Nesse sentido:
“Se o comprador deixa de pagar o que deve ao vendedor, a este deve ser concedido o direito de buscar o adimplemento. Em outras palavras, quando a norma de direito material prescreve determinada obrigação e esta é descumprida, é fundamental que o Estado proporcione ao jurisdicionado meios para resguardar o seu direito. Se não fosse assim, as normas materiais teriam nenhuma utilidade”.[5]
Em outras palavras, se a prescrição não resulta na inexistência da dívida ou no pagamento da obrigação, é necessário admitir que tais direitos podem ser reivindicados por meios distintos do processo judicial (observado o princípio da adequabilidade dos meios), sob pena de se violar o dever de lealdade, honestidade, boa-fé, cooperação e respeito às legítimas expectativas de quem teve o seu patrimônio reduzido, na esperança de receber uma contraprestação.
Assim, pode até não haver mais espaço para a tutela jurisdicional (que não se confunde com prestação jurisdicional, que é o direito de ação), mas a relação jurídica fática entre dívida e pagamento permanecem incólumes, de sorte que se houver cobrança extrajudicial adequada, não caberá ao Poder Judiciário declará-la inviável. Nesse sentido, “inviável a declaração de inexistência de uma relação jurídica em razão da ocorrência da prescrição, que extingue apenas a pretensão, mas não o próprio direito violado, que permanece hígido” (AgInt no AREsp nº 2.279.848/PE, relator ministro Raul Araújo, 4ª Turma, DJe de 23/6/2023).
Dessa forma, a pretensão de receber o crédito permanece hígida até que o credor abra mão dela, o que não terá mais espaço é a coercitividade alcançada pela via do Poder Judiciário [6].
Entender de forma contrária seria ressuscitar a já superada teoria imanentista do direito romano, no sentido de que a ação judicial nada mais é do que o próprio direito lesado (embora se afirme o contrário no voto, mas na prática acaba sendo isso). Para essa teoria, “não se visualizava a nítida distinção entre o direito de ação em si (de pedir do Estado o provimento jurisdicional) e o próprio direito material violado” [7].
Ao fundamentar-se em doutrina majoritariamente estrangeira para afastar a possibilidade de cobrança extrajudicial de dívidas prescritas, a decisão do STJ suscita questionamentos sobre a adequação dessa abordagem à realidade cultural brasileira, que infelizmente vai na contramão da expectativa de que o devedor se valerá de seus valores morais para, por mera liberalidade, pagar o que deve. A cultura brasileira apresenta nuances específicas no que diz respeito ao cumprimento de obrigações financeiras. A tolerância social ao inadimplemento e a busca por brechas para não quitar a dívida são elementos que distinguem a abordagem brasileira em relação a outros sistemas jurídicos.
A crença de que o devedor pagará a dívida prescrita com base em seus “valores morais” é ingênua, especialmente se esses valores não foram acionados quando a dívida não estava prescrita. A imoralidade do ato de dever e não pagar não pode ser prestigiada apenas pela inatividade do credor em buscar o crédito.
Ao se proibir a cobrança extrajudicial de dívidas prescritas, é importante considerar as implicações dessa decisão sob a perspectiva do conceito aristotélico de justiça. Tal vedação também pode ser interpretada como uma quebra da boa-fé contratual, uma vez que a prescrição não exonera o devedor de seu dever ético e moral de honrar seus compromissos.
A busca pela equidade, proporcionalidade e correção de desigualdades deve ser um pilar fundamental na interpretação das normas jurídicas, para que a justiça seja efetivamente realizada em conformidade com os princípios éticos e morais que orientam nossa sociedade, conforme os princípios gerais de direito acima citados.
A prescrição é um instituto jurídico, e como tal, não pode ser utilizado para malferir o espírito do próprio ordenamento. É dizer: se por um lado a prescrição beneficia o devedor, por outro não pode sacrificar o direito do credor. Ao equilibrar o dever de pagar e o direito de receber na balança justa e imparcial de Themis, é evidente que o direito de receber prevalecerá, pois reflete a justiça que lhe é inerente.
No ordenamento jurídico contemporâneo, não há espaço para a existência de um direito desprovido de alguma via que lhe permita ser concretizado. Os direitos, por si só, não são eficazes se não houver meio para assegurar sua realização.
Se a impossibilidade de exercer o direito de ação não resulta na extinção do direito material, isso significa que esse direito permanece válido e pode ser buscado por outros meios legalmente aceitos. Caso contrário, desconsiderar essa premissa seria anular sua essência.
Em outras palavras, se a mera existência da dívida não é o bastante para permitir sua cobrança fora do ambiente judicial, na prática, isso equivaleria a afirmar que o crédito, de fato, sequer existe. Todavia, pensamos que o enfoque deve estar no direito em si, e não na forma como ele será buscado após transcorrida a prescrição, especialmente se essa forma não violar o ordenamento jurídico.
Dessa forma, a cobrança extrajudicial de dívida prescrita deve ser considerada válida, uma vez que não visa a efetivar pretensão judicial, mas sim a buscar o adimplemento de uma obrigação que inquestionavelmente existe.
[1] STOLZE, Pablo; Pamplona Filho, Rodolfo. Manual de direito civil – volume único – 4. ed. – São Paulo: Saraiva Educação, 2020, p. 2.592 (e-book).
[2] SCHREIBER, Anderson Manual de direito civil: contemporâneo – 3. ed. –São Paulo: Saraiva Educação, 2020. p. 110.
[3] MIRANDA, Pontes de. Tratado de direito privado, Rio de Janeiro: Borsoi, 1955, v. V, p. 451.
[4] Anderson Schreiber, op. cit. pp. 421-422 ensina que “Se, por um lado, há consenso em que a prescrição extingue, não há unanimidade sobre o que ela extingue. Há três correntes doutrinárias sobre essa temática no Brasil. Para a primeira corrente, a prescrição extingue o próprio direito em si. Foi a posição adotada, entre nós, por Eduardo Espínola, em seu célebre Sistema de Direito Civil Brasileiro, e corresponde à orientação mais tradicional no direito pátrio. Para a segunda corrente, a prescrição extingue apenas a ação, e não o direito em si, que ainda pode ser atendido espontaneamente pelo titular do dever jurídico correspondente. De fato, quem efetua o pagamento de uma dívida já prescrita não pode exigir restituição do que pagou, conforme expressamente registra o art. 882 do Código Civil brasileiro. Disso se extrai que o direito continua ‘vivo’. Houvesse sido extinto o direito de crédito, o pagamento da dívida prescrita geraria uma transferência patrimonial desprovida de causa, em outras palavras, um enriquecimento sem causa, que autorizaria quem pagou a exigir restituição. Daí se conclui que a prescrição não fulmina o direito. Fulminaria, então, para essa segunda corrente, a ação. Ficaria o sujeito com ‘um direito desprovido de ação’. Foi a posição adotada por Clóvis Beviláqua, autor do projeto do Código Civil de 1916, e por Câmara Leal, que dedicou volume importantíssimo ao estudo da prescrição e da decadência. Os adeptos da terceira e última corrente sustentam que a prescrição não atinge nem o direito material, que ainda pode ser atendido espontaneamente, nem o direito de ação, que, autônomo e abstrato, se exerce, de acordo com a processualística contemporânea, em face do Estado, com vistas à obtenção de um provimento jurisdicional que independe do direito em si. O que a prescrição atinge, portanto, é a pretensão de direito material, a Anspruch do direito alemão, que consiste na exigibilidade, judicial ou não, daquele direito. Como sustenta Fábio Konder Comparato, a razão do êxito do direito alemão na interpretação do instituto da prescrição reside no fato de que a doutrina, desde o período da pandectística, soube decompor as facultas agendi do sujeito de direito de forma clara e exata (…). O direito subjetivo, categoria bruta que transcende o campo do direito das obrigações, decompõe-se, na verdade, em dois elementos que exigem visualização: um direito estático à prestação e um direito de exigir essa mesma prestação (…). Esse direito de exigir, facultas exigendi é, sem dúvida, projeção do direito à prestação, mas com ele não se confunde (…) é o que a doutrina germânica denominou pretensão, conceito forjado por Windscheid, em meados do século XIX em obra famosa sobre a actio romana. A pretensão não se confunde com o direito de ação: é noção de direito material e somente existe no direito subjetivo, que atribui ao seu titular o direito a uma prestação”.
Fonte: Consultor Jurídico