No fim de 2023, a Consulta Pública BCB nº 97/2023 trouxe mais de 60 perguntas aos participantes de mercado para subsidiar a regulação prevista na Lei nº 14.478/2022. Nesse texto, ofereço uma visão geral dos temas abordados, que já nos permitem antecipar alguns mecanismos regulatórios que poderão ser adotados. A consulta foi organizada em oito seções, descritas aqui fora de sua ordem original, procurando oferecer uma perspectiva diferente para o debate.
Hipótese de incidência: afinal, o que são serviços de ativos virtuais?
A Lei nº 14.478/20222 delega à regulação infralegal o detalhamento do que seriam os serviços de ativos virtuais. Consideremos um rol exemplificativo de atividades para ilustrar a heterogeneidade de riscos associados a elas:
- Plataformas centralizadas de negociação
- Plataformas descentralizadas de negociação
- Mercado de balcão e negociação p2p
- Custódia
- Pagamentos domésticos
- Pagamentos internacionais e investimento direto
- Crédito em ativos virtuais, interno e externo
- Crédito com colateral em ativos virtuais
- Liquidação de operações com ativos virtuais
- Emissores de stablecoins
- Emissores de tokens exceto stablecoins
- Tokenizadoras
- Provimento de liquidez
- Gestão de carteiras de ativos virtuais
- Análise, consultoria e assessoria de investimentos em ativos virtuais
Na aplicação da nova disciplina jurídica, será necessário mapear esses serviços no rol mais geral trazido no artigo 5º da Lei nº 14.478/2022 [1].
Nesse contexto, o Banco Central questiona se certas atividades podem requerer autorizações específicas, por conta, por exemplo, da complexidade de uma exchange centralizada ou da preocupação com estabilidade financeira associada a emissoras de stablecoins.
Ainda, a autarquia demonstra preocupação com os riscos desses serviços com relação à infraestrutura do mercado financeiro e à possibilidade de instituições financeiras e de pagamento poderem mesclá-los às suas atividades ou se deveriam ser desempenhadas à parte, de modo a blindar os serviços financeiros tradicionais.
Por fim, o Banco Central busca critérios a serem exigidos das prestadoras de serviços sobre quais ativos serão oferecidos aos seus clientes – uma lógica parecida com os critérios de listagem de valores mobiliários que as entidades que administram mercados de bolsa e balcão estabelecem no contexto das regras da CVM.
Governança, segurança da informação e segurança cibernética
O controle da propriedade das chaves que permitem acessar os recursos é outro ponto central da Consulta, incluindo a própria definição do termo. A esse respeito, o Banco Central deseja saber quais são as melhores práticas em termos de armazenamento e particionamento das chaves, com as devidas responsabilidades para os envolvidos, especialmente quando da necessidade de bloqueios judiciais e constituição de ônus e gravames. Afinal, uma carteira autocustodiada inviabiliza tais procedimentos.
A autarquia ainda questiona se deve ser exigido algum limite mínimo de custódia em cold wallets como forma de aumentar a segurança da propriedade dos ativos virtuais.
Ademais, o Banco Central indaga, de forma mais genérica, acerca de mecanismos para mitigar riscos de segurança cibernética, tema com particular relação à custódia dos ativos virtuais.
As instituições financeiras e de pagamento devem atender requisitos de estrutura organizacional mínima, com regras que abrangem o tipo societário, controle societário, administração e patrimônio líquido. Na consulta, o Banco Central questiona se tais regras poderiam ser aplicáveis às empresas do setor, assim como a recomendação ou exigência de certificações.
Terceirização, câmbio e capitais internacionais
Na seção “Contratação de serviços essenciais”, o Banco Central reconhece que a prestação de certo serviço pode envolver uma rede de serviços correlatos que podem representar processos essenciais e, por isso, a gestão do risco associado ao terceiro contratado deve ser de responsabilidade do contratante.
Além da exigência de critérios de identificação e qualificação de contratados, observamos uma preocupação especial com o serviço de custódia, quando a propriedade é implementada em empresas no exterior, para salvaguardar os recursos de clientes e cumprir demandas legais relativas ao acesso a esses recursos e, ainda, assegurar a observância da regulação do mercado de câmbio e capitais internacionais.
Especialmente com relação a câmbio, o Banco Central busca entender as possíveis vantagens e riscos na realização de pagamentos transfronteiriços com ativos virtuais, assim como seu uso para operações de investimento direto e operações de crédito externo.
Transparência e proteção de clientes (investidores)
Na seção “Prestação de informações e proteção dos clientes”, o Banco Central adentra na seara típica da regulação da CVM, ao indagar sobre um conjunto mínimo de informações sobre os riscos e os instrumentos negociados, para sua compreensão pelos clientes e adequação ao seu perfil de risco [2]. De certo modo, a própria CVM já ofereceu um esboço desse conjunto mínimo de informações na seção “5.2. Informações sobre Negociação, Infraestrutura e Propriedade dos Tokens” de seu Parecer de Orientação CVM nº 40/2022.
Ainda em terreno próprio da CVM, encontramos na seção “Governança e conduta” da consulta, questões relacionadas à prevenção à manipulação de mercado, práticas fraudulentas e referências para a formação de preços em um mercado que é naturalmente fragmentado (um ativo é negociado simultaneamente em múltiplos ambientes). Também há questões sobre a clareza de informações sobre os custos dos serviços, balizas para a atuação de empresas como contrapartes de seus clientes para mitigar conflitos de interesses e rotinas de supervisão para prevenir a prática de atos ilícitos com ativos virtuais [3].
Lavagem de dinheiro
A preocupação com a realização de transferências não autorizadas ou por meios não oficiais e a prevenção à lavagem de dinheiro e financiamento do terrorismo (PLD/FT) aparece em várias seções da consulta. Na seção sobre “Governança e Conduta”, o Banco Central deseja conhecer os controles já adotados pelas empresas do setor para a identificação dos beneficiários finais e o cumprimento da Travel Rule (ver também este artigo). Adicionalmente, a autarquia buscou ouvir o mercado sobre o tratamento de operações suspeitas e as rotinas de monitoramento a serem adotadas.
No tocante aos serviços de provimento de liquidez, a preocupação com PLD/FT me parece estar relacionada aos pools de liquidez das exchanges descentralizadas, as quais normalmente não possuem um processo de cadastro tal qual o que pode ser exigido das exchanges centralizadas.
Segregação patrimonial e alavancagem de clientes
A segregação dos recursos dos clientes em face dos recursos do prestador de serviços é o tema com maior número de perguntas na consulta. As possibilidades têm sido debatidas desde a tramitação da Lei nº 14.478/2022 e atualmente objeto do Projeto de Lei nº 4.932/2023 na Câmara dos Deputados e o Projeto de Lei nº 3.706/2021 no Senado Federal.
O Banco Central também perguntou sobre salvaguardas para os recursos dos clientes (para além da individualização de contas), inclusive em perdas decorrentes de operações de staking previamente autorizadas, assim como a utilização desses recursos como garantia de operações do prestador de serviços ou do próprio cliente e, ainda, como margem para operações com derivativos.
A possibilidade de alavancagem e controle de margem pode demandar limites prudenciais ou, como especula a consulta, a constituição de uma espécie de fundo garantidor à semelhança do FGC ou de produtos de seguros para as operações.
A busca por “pontos cegos” e o difícil desenho de uma regra de transição
Ao final da consulta, o Banco Central apresenta uma questão residual, solicitando temas que o mercado considere relevante e que possam ter ficado de fora – essa talvez seja a pergunta mais difícil de todas.
Na penúltima seção, a autarquia busca critérios e contornos de regras de transição, para que as empresas já atuantes no setor consigam se adaptar de acordo com seu porte e risco.
Vemos assim, o grande desafio que será separar o joio do trigo e evitar que a regulação mine o potencial da criptoeconomia no Brasil. Como mencionei, oportunamente, abordarei neste espaço algumas questões específicas e as respostas dadas por participantes do mercado.
[1] A saber: troca entre ativos virtuais e moeda nacional ou moeda estrangeira; troca entre um ou mais ativos virtuais; transferência de ativos virtuais; custódia ou administração de ativos virtuais ou de instrumentos que possibilitem controle sobre ativos virtuais; ou participação em serviços financeiros e prestação de serviços relacionados à oferta por um emissor ou venda de ativos virtuais.
[2] Observamos aqui um ponto de contato com o regime de suitability adotado pela CVM e, ainda, as regras de transparência exigidas de companhias abertas e integrantes do sistema de distribuição de valores mobiliários.
[3] As principais referências para essas preocupações encontram-se nas normas da CVM que tratam de intermediários (Resolução CVM nº 35/2021), de mercados de bolsa e balcão (Resolução CVM nº 135/2022) e ilícitos de mercado (Resolução CVM nº 62/2022).
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