Advocacia criminal como instrumento limitador dos excessos persecutórios do Estado

De acordo com a mitologia grega, ao consultar o Oráculo para saber se teria um herdeiro do sexo masculino, o rei Acrísio obteve o prenúncio de que sua filha Dânae daria à luz um menino que, quando adulto, tiraria a sua vida.

Atormentado com a predição conforme a qual seria morto pelo próprio neto, Acrísio covardemente escondeu e trancafiou sua filha, impedindo que os pretendentes dela se aproximassem. Entretanto, encantado pela beleza de Dânae e disfarçado de chuva de ouro, Zeus penetrou o cativeiro e a engravidou, nascendo Perseu.

Ao tomar conhecimento de que sua filha se tornara mãe de Perseu, Acrísio ordenou que ambos fossem aprisionados em uma caixa de madeira e lançados ao mar. A ordem foi cumprida. O baú, porém, flutuou e chegou à terra governada pelo rei Polidectes, onde Perseu foi criado e se tornou um jovem forte e destemido.

Embora recebidos com gentileza, Dânae, mau grado seu, passou a ser assediada pelo rei, que, com o propósito de afastar Perseu de sua genitora, visando ao seu sucesso amoroso, pois o via como um obstáculo, propôs-lhe um árduo desafio: trazer-lhe a cabeça da Medusa, uma das Górgonas, cujos cabelos eram representados por vívidas serpentes, e que ostentava o assustador poder de paralisar qualquer ser vivo ao qual dirigisse o seu olhar.

Concebendo o eventual êxito do desafio como uma oportunidade de libertar sua mãe de uma vez por todas, Perseu o aceitou e preparou-se meticulosamente para a empreitada, partindo em seguida. Agindo com estratégia e manuseando habilmente os instrumentos fornecidos em sua ajuda pelos deuses Hades, Hermes e Atenas, conseguiu executar com êxito o plano proposto e decapitar a aberrante criatura, livrando Dânae do jugo de Polidectes e colocando fim a um longo período de privações de liberdade.

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Sob o ponto de vista alegórico, a Medusa pode ser equiparada às odiosas acusações e atos judiciários excessivos que, não raro, são levados a efeito em procedimentos investigatórios e processos criminais.

Cada acusação descomedida feita com o objetivo de forçar um acordo de colaboração premiada; cada prisão cautelar ilegalmente imposta com a mesma finalidade; cada imputação descabida de dolo eventual irresponsavelmente empreendida; cada qualificadora manifesta e sabidamente improcedente assacada ― como se, ignorados os bem jurídicos inerentes à seara criminal, o processo penal fosse um simples e disponível negócio jurídico de direito privado em que o proponente eleva excessivamente o preço do produto já sabendo que a outra parte tentará reduzi-lo ―; cada decisão de pronúncia baseada exclusivamente em meros elementos informativos coletados na fase extrajudicial; cada nulidade processual incontornável rechaçada com base em razões consequencialistas e, inconfessadamente, estranhas ao Direito; cada cerceamento de defesa imposto a um réu; cada palavra de advogados arbitrariamente silenciada em um tribunal; cada pena dosada de modo exorbitante; cada habeas corpus não conhecido ou não apreciado a contento sob os mais variados pretextos; cada reclamo ministerial infundado provido para satisfazer a concepção pessoal punitivista do julgador; cada um desses comportamentos ―  e existem muitos outros ― representa um tentáculo da severa Medusa estatal, que, desumanamente, paralisa os acusados para quem olha, por longos anos a fio, no cruel sistema prisional brasileiro.

Ao advogado criminal, tal como Perseu, resta o desafio libertário de, com ética, lealdade, respeito e altivez, manejar habilidosamente os instrumentos legais disponíveis e, de maneira firme, cortar a cabeça da Medusa, repelindo os excessos, venham eles de onde vierem, zelando incansavelmente para que a liberdade seja sempre a regra e as garantias constitucionais não faltem a nenhuma pessoa submetida aos tormentos próprios de uma persecução penal.

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Sim, pois como irretocavelmente proclamou Fábio Konder Comparato, professor emérito da Faculdade de Direito da USP, em prefácio do livro A Defesa Tem a Palavra, do mestre Evandro Lins e Silva, “a ética própria da advocacia ― hoje o vemos com clareza ― é a defesa dos direitos humanos em todas as suas modalidades”.  

Fonte: Consultor Jurídico