Aplicação subsidiária da Lei de Recuperação Judicial nas lacunas da Lei do RCE

1. A Lei nº 14.193/2021 — Lei do Regime Centralizado de Execuções (RCE) — foi inspirada na Lei nº 11.101/05 (Lei da Recuperação Judicial), inclusive com informação legislativa de aplicação análoga de seus conceitos primários, consoante parecer da Comissão Especial do Senado Federal.

2. A máxima de ambas as legislações, nesse particular aspecto, é o prestígio aos princípios da preservação e da continuidade da empresa.

3. É natural que o Congresso Nacional não esgote a matéria em suas discussões parlamentares, pois a política nada mais é do que a arte do possível, conciliando todos os pensamentos em torno a uma necessidade social real, premente e concreta.

4. Originalmente o projeto de lei proposto pelo senador Rodrigo Pacheco não previa o regime centralizado de execuções. Todavia, na justificação da criação da norma o embrião dessa tão bem-vinda organização creditícia se fazia presente através do reconhecimento do valor econômico e cultural do desporto. A saber:

“Para além de ser um dos mais importantes fenômenos culturais-sociais deste País, o futebol revelou-se atividade econômica de grande relevância nacional: os principais clubes geram bilhões de reais em faturamento, empregam milhares de pessoas (direta e indiretamente) e movimentam verdadeiras indústrias de bens de consumo e prestação de serviços.

(…)

É preciso, portanto, reconhecer a necessidade de se promover uma verdadeira transformação do regime de tutela do futebol no Brasil, a fim de possibilitar a recuperação da atividade futebolística, aproximando-o dos exemplos bem-sucedidos que se verificaram em países como Alemanha, Portugal e Espanha.”

5. No parecer lavrado pelas mãos do deputado federal Fred Costa, relator do emendado projeto de Lei nº 5.516/2019, o plenário da Comissão Especial assim bem pontuou sobre a inspiração da Lei da S.A.F. na Lei de Recuperação Judicial, com especial ênfase à criação do Regime Centralizado de Execuções:

“Considero meritório e oportuno o projeto ora examinado, tendo em vista que o futebol brasileiro há muito enfrenta desafios com a gestão pouco profissional dos clubes. O formato associativo, predominante na atualidade, não viabiliza um modelo de governança por meio do qual os dirigentes possam ser responsabilizados por suas gestões, além de limitar as formas de financiamento junto ao público, não viabilizar o acesso aos institutos da recuperação judicial e extrajudicial e carecer de um sistema legal de transparência.

(…)

Como forma de solucionar os problemas acima mencionados, o PL 5.516, de 2019, propõe a criação da Sociedade Anônima do Futebol (SAF), um formato de sociedade anônima adaptado às peculiaridades do setor esportivo em que inseridas, as quais serão regidas subsidiariamente pela Lei n. 6.404, de 1976. O PL cria ainda o Regime Centralizado de Execuções, como modo alternativo para pagamento de obrigações pelo clube, regulamento o licenciamento privado das SAF via emissão de debênture-fut, e institui o regime de Tributação Específica do Futebol (TEF).

(…)

Como forma de endereçar a atual crise financeira vivida pelos clubes e a restrição legal de acesso das associações aos institutos recuperacionais da Lei n. 11.101, de 2005, o PL expressamente permite que os clubes escolham por efetuar o pagamento de suas obrigações seja pela recuperação judicial ou extrajudicial seja pelo concurso de credores, por intermédio do Regime Centralizado de Execuções.

5. Esse parecer concluiu pela constitucionalidade, juridicidade e técnica legislativa, acenando positivamente para a aplicação subsidiária da Lei de Recuperação Judicial à Lei do RCE.

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6. Prevendo, outrossim, que dessa dissonância haveria lacunas a serem preenchidas, o artigo 4º do Decreto 4.657/42 tratou de dispor que “Quando a lei for omissa, o juiz decidirá o caso de acordo com a analogia, os costumes e os princípios gerais de direito”.

8. De acordo com Serpa Lopes (Curso de direito civil, Rio: Freitas Bastos, 1998, v.I, p.135) “quando a lei não fez distinção o intérprete não deve fazê-la (ubi lex non distinguit nec nos distinguere debemus). Não deve o intérprete criar, na interpretação, distinções que não figuram na lei“.

9. Desta feita, evidencia-se, sem a menor sobra de dúvidas, que na ausência de normas comezinhas sobre o Regime Centralizado de Execuções, caberá o preenchimento desses espaços pela recuperação judicial.

10. É razoável que a Lei do RCE se servirá – mutatis mutandis – no que couber, do arcabouço interpretativo jurisprudencial sobre a Lei da Recuperação Judicial, consoante fixado no parecer da Comissão Especial do Senado que deu azo à conclusão positiva do então projeto de lei.

11. O objetivo primordial da Lei do RCE foi o de outorgar à deliberação das entidades de prática desportiva a construção das condições infraestruturais que lhes permitissem tratar de seus passivos e prover um ambiente seguro de negócios para constituição de uma Sociedade Anônima do Futebol (SAF) a investidores interessados no principal desporto nacional.

12. A blindagem patrimonial prevista no artigo 23 da Lei do RCE e no inciso I, do artigo 6º da Lei da Recuperação Judicial exsurge justamente do princípio da preservação da empresa.

13. Além disso, o Regime Centralizado de Execuções tem por escopo organizar os credores em fila, por ordem preferencial, excluídos os créditos extraconcursais, evitando, outrossim, a indesejável paralisação das atividades pelas mãos da asfixia financeira.

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14. A previsão de um plano de pagamento de credores (artigo 16 da Lei do RCE) guarda semelhanças com o plano de recuperação judicial (artigo 53 da Lei da Recuperação Judicial), a saber:

Plano de Pagamento de Credores Plano de Recuperação Judicial
I. Balanço patrimonial; I. Avaliação dos bens e ativos do devedor, subscrito por profissional legalmente habilitado ou empresa especializada;
II. Demonstrações contábeis;
III. Obrigações em fase de execução;
IV. Estimativa auditada das dívidas ainda em fase de conhecimento; II. Laudo econômico-financeiro;
V. Fluxo de caixa e a sua projeção; III. Demonstração de sua viabilidade econômica;
VI. Termo de compromisso de controle orçamentário
VII. Ordem da fila de credores com seus respectivos valores individualizados e atualizados;
VIII. Pagamentos efetuados no período;
IX. Estabelecimento do plano de pagamento de forma diversa IV. Discriminação pormenorizada dos meios de recuperação a ser empregados

15. As semelhanças não param por aí. A ordenação do pagamento no Regime Centralizado de Execuções (artigo17 da do RCE) muito se parece com a classe de credores (artigo 41 da Lei da Recuperação Judicial).

Ordem de Credores Classe de Credores
I. Preferência de créditos trabalhistas; I. Titulares de créditos laborais;
II. Idosos; II. Titulares de créditos com garantia real;
III. Pessoas com doenças graves; III. Titulares de créditos quirografários, com privilégio especial, com privilégio geral ou subordinados;
IV. Crédito inferior a 60 salários mínimos; IV. Titulares de créditos enquadrados como microempresa ou empresa de pequeno porte;
V. Gestantes;
VI. Vítimas de acidentes de trabalho; V. Crédito decorrente de acidente do trabalho
VII. Acordo com redução de 30% da dívida;
VIII. Antiguidade
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16. Desde a proposta até a sanção da Lei do RCE foi clara a intenção do parlamento brasileiro em preservar as entidades de prática desportiva, provendo-lhe de meios e instrumentos capazes de gerar uma verdadeira transformação social e adequação a uma nova realidade que se impôs no curso do tempo.


Referências:

BRASIL. Decreto nº. 4.657, de 4 de setembro de 1942. Lei de Introdução às normas do Direito Brasileiro. Diário Oficial da União, Brasília, DF, 9 set. 1942 – retificado em 8 out.1942 e retificado em 17 jun. 1943.

BRASIL. Lei nº 11.101, de 9 de fevereiro de 2005. Regula a recuperação judicial, a extrajudicial e a falência do empresário e da sociedade empresária. Diário Oficial da União, Brasília, DF, 9 fev. 2005 – Edição extra.

BRASIL. Lei nº 14.193, de 6 de agosto de 2021. Institui a Sociedade Anônima do Futebol e dispõe sobre normas de constituição, governança, controle e transparência, meios de financiamento da atividade futebolística, tratamento dos passivos das entidades de práticas desportivas e regime tributário específico; e altera as Leis nºs 9.615, de 24 de março de 1998, e 10.406, de 10 de janeiro de 2002 (Código Civil). Diário Oficial da União, Brasília, DF, 6 out. 2021 – Edição extra e retificado no DOU de 21 out. 2021.

BRASIL. Projeto de Lei nº. 5.516/2019. Autor
Senado Federal – Rodrigo Pacheco – DEM/MG. Apresentação
15/06/2021

LOPES, Miguel Maria de Serpa. Curso de Direito Civil Civil. Rio de Janeiro: Freitas Bastos, 1998, v. I, p. 135).

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