Por expressa outorga constitucional, o Superior Tribunal de Justiça é a instância máxima do Poder Judiciário no Brasil em matéria de interpretação da legislação federal. Por óbvio, no conceito de “lei federal”, referido no artigo 105, inciso III e suas alíneas, da Constituição, inclui-se a Lei Federal nº 13.105/2015, o Código de Processo Civil (CPC/2015), que é a legislação mais interpretada pela Corte Superior, uma vez que é sob o regime desse Código que se processam quase todas as suas demandas alheias à matéria penal.
Naturalmente, um tribunal que julga centenas de milhares de casos por ano [1] vai tanto acertar quanto errar, sob qualquer que seja o parâmetro, em uma quantidade muito grande de casos. Ultimamente, nota-se que uma controvérsia, em particular, tem se multiplicado na Corte Superior, com um temível potencial multiplicador de uma posição que nos parece pouco refletida e, aliás, ostensivamente contra legem. Referimo-nos à discussão sobre se deve prevalecer, especialmente em demandas contra a Fazenda Pública em que há êxito dos particulares, o critério da sucumbência ou o critério da causalidade para o arbitramento dos honorários sucumbenciais.
Ordinariamente, na grande maioria dos litígios, essa discussão é supérflua. Ora, pelo critério da sucumbência, os honorários advocatícios sucumbenciais são devidos por quem é derrotado na contenda judicial, em favor do advogado do vencedor. Já pelo critério da causalidade, arca com a condenação em honorários sucumbenciais quem deu causa ao litígio, e se beneficia desse pagamento o advogado da parte que foi obrigada a suportar todos os ônus de litigar, mesmo sem ter contribuído para esse resultado. Quase sempre, esses critérios convergem para um mesmo resultado, pois quem sucumbe costuma ser quem a jurisdição reconheceu como sendo o autor da conduta ilícita que resultou, naquela relação causal específica, na necessidade de litigar em juízo.
Em alguns casos, porém, que, conquanto raros em relação ao total de litígios, são numerosos exatamente pela escala de litigância com que lida o Poder Judiciário no Brasil, não acontece tal convergência. Uma situação que serve de perfeito exemplo para ilustrar esse conflito é a de que o contribuinte, intimado pela administração tributária a apresentar determinada documentação, não atende integralmente à demanda, o que resulta em um auto de infração.
Em ação anulatória, mediante cognição judicial e dilação probatória ampla, vem-se a concluir, posteriormente, que a autuação e, por óbvio, o próprio tributo e penalidade cobrados, eram indevidos. O contribuinte, então, vence a disputa que iniciou contra a Fazenda Pública. Porém, os tribunais, em juízo de causalidade, atribuem à conduta do particular a condição de causa eficaz para o início do litígio. Nesses casos, quem deve suportar o ônus da condenação em honorários, e qual representante processual deve se beneficiar desse pagamento?
Por ora, a resposta do STJ é incerta, pois existem diversos precedentes, de ambas as turmas de Direito Público, em favor de ambas as posições. Apenas para exemplificar esse dissídio jurisprudencial, cita-se, como favoráveis à posição de prevalência do critério da sucumbência, os acórdãos do Agravo Interno no Agravo em Recurso Especial nº 2.389.836/SP [2]; do Agravo Interno no Agravo em Recurso Especial nº 2.331.697/SP [3]; e o do Recurso Especial nº 1.673.519/RS [4]. Todos recentes, todos decididos por unanimidade. Por outro lado, identificam-se vários outros julgados em favor da posição de que deve prevalecer o princípio da causalidade, como ocorre nos acórdãos do Agravo Interno no Recurso Especial nº 2.104.448/RJ [5]; do Agravo Interno nos Embargos de Declaração no Recurso Especial nº 1.671.347/RS [6]; e do Agravo Interno no Agravo em Recurso Especial nº 1.599.872/PR [7].
Essa divergência, apesar de aparentemente técnica, esconde tensões mais profundas relacionadas à função dos honorários sucumbenciais no processo. A jurisprudência e a doutrina revelam raízes históricas e filosóficas distintas: de um lado, a tradição da sucumbência como ressarcimento objetivo ao vencedor, conforme sistematizado por Chiovenda [8] e adotado pelo CPC/2015; de outro, a teoria da causalidade, influenciada por uma lógica de responsabilidade pelo litígio, como elaborada por Lourival Vilanova [9] e aplicada, por vezes, em juízos de equidade.
Essa aplicação da causalidade encontra apoio em parte da doutrina que a vê como instrumento de justiça material, capaz de impedir o enriquecimento sem causa por quem provocou indevidamente a judicialização. No entanto, autores como Orlando Venâncio dos Santos Filho [10] alertam para os riscos dessa abordagem quando desconsidera a literalidade legal e compromete a segurança jurídica do sistema.
Argui-se, entretanto, que se trata de matéria integralmente adjudicada pelo próprio legislador, que não deveria, pois, ser objeto de maiores dúvidas. Com efeito, antes de examinar qualquer fonte normativa, o próprio senso comum indicaria que “honorários sucumbenciais”, ou “honorários de sucumbência” devem ser arbitrados pelo critério de sucumbência, e não por qualquer outro, sob pena de se alterar a própria forma como se compreende o instituto.
Ubi lex non distinguit
Em todo caso, no Direito Positivo, o artigo 85 do CPC/2015, já em seu caput, consigna que “[a] sentença condenará o vencido a pagar honorários ao advogado do vencedor”. O § 10 do mesmo artigo, que é a base legal do princípio da causalidade, claramente prevê sua incidência mediante condição, ao explicitar que “[n]os casos de perda do objeto, os honorários serão devidos por quem deu causa ao processo”. Trata-se de oração condicional, que, como qualquer outra norma, associa uma determinada prescrição de conduta a uma hipótese de incidência, ou, em outros termos, gera um liame de dever ser entre “os casos de perda do objeto” e “honorários serem devidos por quem deu causa ao processo”.
São trivialidades hermenêuticas as de que, onde a lei não distingue, não pode o intérprete distinguir (ubi lex non distinguit, nec nos distinguere debemus); exceções se interpretam restritivamente (exceptio est strictissimae applicationis); e que a expressão de uma coisa é a exclusão de outra (expressio unius est exclusio alterius). Em outros termos, se o texto atribuiu uma consequência a um fato específico, não se pode inferir que essa prescrição se aplica a fato diferente do expresso no texto normativo, muito menos inferir exceção que lá não consta e, ainda para as que constam, a interpretação há de ser restritiva.
Após o mínimo de cogitação, ninguém razoável arguiria, por exemplo, que uma determinada penalidade contratual é aplicável mesmo quando não configurada a infração associada a ela, mas apenas um fato reprovável de outra espécie; nem se arguiria que se pode excepcionar a aplicação da penalidade quando inexistente exceção expressa no referido contrato. De idêntico modo, parece absurdo arguir que, mesmo não havendo perda de objeto, mas juízo de mérito, e, portanto, um sujeito processual vencedor e outro sucumbente, pode-se aplicar o princípio da causalidade do artigo 85, § 10, do CPC/2015.
O artigo 90 do mesmo Código apenas confirma essa noção, ao prever que “[p]roferida sentença com fundamento em desistência, em renúncia ou em reconhecimento do pedido, as despesas e os honorários serão pagos pela parte que desistiu, renunciou ou reconheceu”. Nota-se que, independentemente da causa, o ônus é atribuído a quem foi vencido. É esse o critério sempre adotado pelo Código, que é legislação federal vigente, específica e ainda recente.
Legislação e prática
Vale observar que, apesar de o texto legal reiterar o critério da sucumbência, a prática judiciária nem sempre lhe é fiel. A realidade forense tem testemunhado decisões baseadas em concepções subjetivas de “culpa pelo litígio”, muitas vezes sem correspondência com os parâmetros normativos. Essa prática, embora bem-intencionada, fragiliza a coerência do sistema processual [11] e pode afastar o jurisdicionado da justiça, sobretudo nas demandas contra o Estado.
Além disso, é relevante notar que a adoção indistinta do princípio da causalidade, especialmente em ações contra a Fazenda Pública, pode gerar efeitos inibitórios no acesso à justiça. Conforme discutido por Teixeira e Soares [12], o risco de condenação em honorários pode desencorajar o ajuizamento de ações legítimas, principalmente por cidadãos economicamente vulneráveis. Isso colide com o próprio fundamento do processo como instrumento de concretização de direitos.
Em outras discussões sobre o próprio CPC/2015, o STJ já chegou a pacificar orientações tão contra legem quanto a que ora se critica. Talvez, o exemplo mais famoso seja a manutenção da Súmula nº 211/STJ [13], mesmo após a vigência do CPC/2015, inutilizando o artigo 1.025 [14], que é de todo incompatível com a súmula. Esse tipo de postura, porém, tem um grave efeito de erosão democrática, pois torna os tribunais não-responsivos à deliberação dos representantes eleitos do povo, que é de quem deveria emanar todo o poder do Estado, nos termos do artigo 1º, parágrafo único, da Constituição.
Nesse caso, em que a posição do tribunal é ainda vacilante, ainda há a oportunidade de recusar o compromisso com o erro. Seja pela afetação dessa controvérsia ou pela produção reiteradas de julgados, mais cedo ou mais tarde, essa questão, que é essencialmente sobre interpretação de lei federal e bastante recorrente, terá de ser resolvida pela Corte Superior. É melhor que essa resolução ocorra, então, o mais rápido possível, de modo a minimizar os efeitos da insegurança jurídica que a contradição jurisprudencial, inequivocamente, gera.
Reduziria um tanto mais ainda a insegurança jurídica se a Corte Superior resolvesse a controvérsia em conformidade com o texto legal expresso, evitando gerar outra posição que tende a se tornar famosa, na literatura e no meio forense, pela sua contrariedade à legislação que o Tribunal deveria interpretar, como aconteceu com o artigo 1.025 do próprio CPC/2015.
[1] Por exemplo, em 2023, o total de julgados, incluindo o julgamento principal, agravos e embargos de declaração, foi de 608.863. Já em 2024 (dois mil e vinte e quatro), esse total foi de 698.453 julgamentos. Fonte: aqui. Acesso em: 17/03/2025.
[2] STJ, AgInt no AREsp nº 2.389.836/SP; órgão julgador: 2ª Turma; relator: Min. Herman Benjamin; julgado em: 26/02/2024.
[3] STJ, AgInt no AREsp nº 2.331.697/SP; órgão julgador: 1ª Turma; relator: Min. Gurgel de Faria; julgado em: 06/02/2024.
[4] STJ, REsp nº 1.673.519/RS; órgão julgador: 2ª Turma; relator: Min. Herman Benjamin; julgado em: 19/09/2017.
[5] STJ, AgInt no REsp nº 2.104.448/RJ; órgão julgador: 1ª Turma; relator: Min. Benedito Gonçalves; julgado em: 17/10/2024.
[6] STJ, AgInt nos EDcl no REsp nº 1.671.347/RS; órgão julgador: 2ª Turma; relator: Min. Og Fernandes; julgado em: 19/04/2021.
[7] STJ, AgInt no AREsp nº 1.599.872/PR; órgão julgador: 1ª Turma; relator: Min. Paulo Sérgio Domingues; julgado em: 19/06/2023.
[8] CHIOVENDA, Giuseppe. Instituições de direito processual civil. Tradução de Alfredo Buzaid. Campinas: Bookseller, 2001.
[9] VILANOVA, Lourival. Causalidade e relação no direito. 4. ed. rev., atual. e ampl. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2000.
[10] SANTOS FILHO, Orlando Venâncio dos. O ônus do pagamento dos honorários advocatícios e o princípio da causalidade. Revista de Informação Legislativa, Brasília, a. 35, n. 137, p. 31-42, jan./mar. 1998.
[11] DALLA BERNARDINA DE PINHO, Humberto; SALLES, Tatiana. Honorários advocatícios: evolução histórica, atualidades e perspectivas no projeto do novo CPC. Revista Eletrônica de Direito Processual – REDP, v. 9.
[12] TEIXEIRA, Vitor Amm; SOARES, Hugo Zanon. Os honorários advocatícios sucumbenciais enquanto potencial obstáculo ao acesso à justiça. Anais do IV Congresso de Processo Civil Internacional, Vitória, 2019.
[13] “Inadmissível recurso especial quanto à questão que, a despeito da oposição de embargos declaratórios, não foi apreciada pelo Tribunal a quo.”
[14] “Art. 1.025. Consideram-se incluídos no acórdão os elementos que o embargante suscitou, para fins de pré-questionamento, ainda que os embargos de declaração sejam inadmitidos ou rejeitados, caso o tribunal superior considere existentes erro, omissão, contradição ou obscuridade.”
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