Da rigidez do Estado-Engrenagem à adaptabilidade do Estado-Organismo

O paradigma do Estado-Engrenagem está em colapso. Por décadas, concebemos o Estado como uma máquina previsível, um sistema de engrenagens perfeitamente ajustadas operando com base em três pilares que desmoronaram: a lei como pressuposto holísticoa organização em silos e o cidadão/gestor como ator plenamente racional.

É preciso questionar esses pressupostos idealizados no modo de compreender a atuação dos agentes públicos de execução e de controle. O sistema jurídico já alterou essas premissas em leis, práticas e decisões judiciais. Muitos simplesmente não acompanharam o giro normativo. A partir do questionamento dessas premissas e dos instrumentos legais disponíveis, pode-se ampliar significativamente os espaços de inovação e experimentação na administração pública. Nesse propósito, sintetizo adiante argumentos que apresentei sobre o tema no Insper/SP, a convite do movimento Pessoas à Frente, preservando o máximo possível a oralidade e a leveza da exposição presencial. [1]

Fraturas do modelo tradicional

Ilusão da lei holística

O pressuposto de uma lei holística que abraça toda a complexidade da realidade administrativa não é realista. Desde a EC 32/2001, temos clareza de que parte da decisão sobre funcionamento e estruturação da administração pública cabe ao próprio administrador. Não é mais necessário editar medida provisória para transferir um órgão de um ministério para outro. Um regulamento de organização pode estabelecer essa alteração sem afetar os direitos e deveres dos cidadãos. [2]

A administração pública, contudo, evita usar essa prerrogativa. O que ela não pode é criar órgãos ou extinguir órgãos. Mas diante dos órgãos existentes e das competências já criadas por lei, pode remanejar competências e órgãos, delegar e reordenar, otimizando a máquina administrativa. Pode fundir, cindir, estabelecer mecanismos como os centros de competência. O gestor pode e deve participar do processo normativo de funcionamento e estruturação da administração.

Problema dos silos organizacionais

A organização em silos — a ideia de que a administração pode trabalhar bem com cada um no seu cantinho — simplesmente não funciona. O mundo atual exige coordenação inter e intra-administrativa radical. O sistema jurídico já compreendeu isso e aprovou mecanismos que incentiva e operam a integração.

Mas ainda há lacunas a preencher. Falta disciplinar na administração pública sistemas de prevenção, de concentração decisória em matéria de controle, em certa medida semelhantes aos disponíveis no sistema de justiça. A excessiva demora da liberação da autorização de simples pesquisa da margem equatorial pela Petrobras ilustra bem o problema: órgãos de diferentes Ministérios Públicos, órgãos ambientais estaduais e federais, cada um a seu tempo e a seu modo a exigir as mesmas informações e a estabelecer mecanismos de controle duplicados ou redundantes, sem incidência de mecanismo algum de prevenção. Uma cacofonia de controles, que engendra custos e protela decisões públicas.

Mito do gestor plenamente racional

O terceiro pressuposto equivocado é que tanto o gestor quanto o cidadão são racionais, com compreensão clara, informada e precisa da realidade em todas as situações. Se o gestor não consegue realizar a entrega, presume-se que foi negligente, inoperante, ineficaz, inepto, merecendo censura. Muitas vezes não é nada disso. O gestor não consegue, do mesmo modo que o cidadão, ser plenamente racional e trabalhar sempre com evidências. Ele é vulnerável a informações incompletas, à pressão do tempo e a recursos limitados. E tudo isso pode e deve ser apurado nos processos administrativos.

Instrumentos para a transformação

Vencendo a aversão ao risco

A reforma da Lei de Improbidade Administrativa e a Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro (Lindb), modificada pela Lei nº 13.655/2017, enfrentaram a aversão ao risco. Mas não é suficiente. É preciso reconhecer que o erro é absolutamente normal na administração pública e implantar essa mentalidade como algo ínsito no processo administrativo de controle.

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No sistema francês, os servidores do Conselho de Estado são obrigados a passar dois anos em estágio nos órgãos controlados antes de integrar o órgão de controle. Precisam saber como funciona o órgão controlado para depois integrar o órgão de controle. No Brasil, o agente faz concurso para o TCU, passa 120 dias em estágio e capacitação, e vira controlador sem ter ideia de como funciona a administração real, desafiada pela incompletude das informações e a complexidade das limitações orçamentárias e materiais existentes.

Silêncio administrativo: além do positivo e negativo

A resposta preventiva tradicional do direito administrativo à inércia decisória é o silêncio positivo e negativo. Mas há problemas graves nisso. O silêncio negativo, embora cômodo, torna insegura a situação do beneficiário da declaração, abrindo apenas a via processual sem resposta efetiva. O silêncio positivo, enfatizado na Lei da Liberdade Econômica de 2019, cria riscos de desproteção ambiental e insegurança jurídica.

Propus em 2016 o silêncio translativo como alternativa. Esse mecanismo cria ônus para o servidor que não decide: passado o prazo assinalado na lei, a matéria é afetada em caráter original — não recursal — para outra autoridade, com imediata responsabilização disciplinar do gestor omisso. Cria-se arquitetura de incentivos para decidir no prazo. A área ambiental já tem esse mecanismo na legislação, sem dar esse nome: se um órgão municipal não atua, o estadual ou federal pode atuar translativamente. [3]

Posteriormente propus o reconhecimento dogmático do silêncio ablativo, ainda mais radical: a lei substitui o administrador, fulminando o espaço de decisão administrativa. Exemplo: na Lei Nacional do Ministério Público, consta norma que se o governador não escolhe o procurador-geral de justiça na lista tríplice em 15 dias, o mais votado é automaticamente definido por lei como o escolhido. O STF validou isso. Inúmeras situações poderiam ser resolvidas por silêncio ablativo, prevendo solução alternativa legal à omissão decisória. [4]

Centros de competência e decisão coordenada

É espantoso que os centros de competência não sejam estudados nos livros jurídicos. Temos em São Paulo o Poupatempo, na Bahia o SAC desde 1995, no governo federal o Colab, organismos matriciais com equivalentes em vários Estados. Alguns são órgãos formados pela cooperação operativa de vários órgãos em atuação simultânea, dando resposta uniformizada, padronizada e sistematizada ao cidadão em tempo reduzido. O Colab, especificamente, ao consolidar serviços comuns de 13 ministérios — logística, informática, gestão de pessoal — demonstrou que a integração matricial funciona: economizou R$ 2,7 bilhões em três anos, com relatórios de avaliação de impacto que comprovam a eficiência ganho. [5]

Esse é um instrumento de otimização organizativa que já existe, disposto em diversas normas. Não é preciso criar centro de competência por lei: os órgãos já estão criados, as competências já estão dadas. Um regulamento de organização que integre a força operativa desses órgãos já cria o centro de competência.

A decisão coordenada, introduzida na lei de processo administrativo da Bahia em 2006 e dez anos depois na lei federal, estabelece mecanismo processual sincrônico e concentrado. Em vez do passeio do processo entre órgãos A, B, C até resposta final, convoca-se sessão única onde todos devem se pronunciar. Nos casos de urgência, os órgãos que não se pronunciam perdem competência. Ninguém quer perder poder na administração pública. Criam-se incentivos à decisão e participação coordenada. [6]

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O Estado-Organismo: novo paradigma

Proponho o modelo heurístico do Estado-Organismo ou Estado Adaptativo, que integra quatro elementos fundamentais: aprendizado, abertura, autovinculação e articulação.

Aprendizado: Denota o Estado que se defronta com contextos diversos de realidade e busca descobrir variantes de resposta a partir da experimentação. Os sandboxes regulatórios implementados pelo Banco Central, Susep e agências reguladoras, ilustram bem esse paradigma. Por igual, os municípios são microcosmos excelentes para testar iniciativas. Bolsa Família, Médico de Família — muitos nasceram dessa experimentação no nível micro.

Abertura: é o Estado que dialoga com parceiros, cidadãos, terceiro setor, empresariado. Estado que não dialoga isola-se e não aprende. O Estado como plataforma de colaboração, abrindo-se para lideranças novas, mecanismos de entrada pelo topo, concursos distintos em diferentes modalidades, não uma única forma de acesso generalista.

Autovinculação: se amplio o espaço de flexibilidade decisória do gestor, devo aumentar a exigência de autovinculação, o respeito a precedentes, a uniformização interpretativa. A Lei 9.784 estabelece no artigo 50, VII, que a administração deve motivar especialmente os atos que deixem de aplicar jurisprudência firmada, valorizando o precedente administrativo e a coerência, que valoriza a igualdade diacronicamente, como filme, não como foto.

Articulação: romper com os silos, operar em rede. A ideia ingênua de que o sistema hierárquico reconduz ao presidente da República toda a matéria administrativa é equívoco desmentido pela própria Constituição. Na administração central, temos em verdade uma “Hidra de Lerna”: União, Estado, Município possuem corpos centrais com múltiplas cabeças autônomas — poderes legislativo, judiciário, executivo, Ministério Público, Tribunais de Contas. É preciso incentivar a coordenação de unidades autônomas em torno de projetos, não a coordenação mecânica ou hierárquica. [7]

Lindb e o novo controle

A Lei nº 13.655/2017, proposta intelectualmente por Carlos Ari Sundfeld e Floriano de Azevedo Marques Neto, mas de iniciativa do senador Antonio Anastasia, requalifica a temática do controle.

O artigo 20 exige análise do contexto decisório e das consequências práticas, vedando decisão baseada apenas em valores abstratos sem identificar custos e benefícios. A prescrição impõe um ônus argumentativo para o controlador: ele precisa justificar porque sua decisão é A, B ou C, analisando obstáculos e as dificuldades reais do gestor.

O artigo 22 combate a expectativa irrealista de que o gestor sabe tudo, vê tudo, pode tudo. A análise é sempre ex post facto, posterior à realidade concreta que era de penumbra, incerta, indefinida — como vimos na Covid-19. Exigir do gestor a decisão ótima nesse cenário era absurdo. O gestor trabalha com recursos limitados, sob pressão temporal, muitas vezes sob desespero e angústias.

O artigo 28 ajuda fundamentalmente ao exigir que a responsabilização só ocorra provado o dolo ou erro grosseiro. Cria-se bloqueio à responsabilização por decisões de boa-fé, erros simples, riscos singelos inerentes a qualquer processo decisório.

Formação do controlador

A transformação paradigmática sugerida exige sair do foco da punição para a orientação, prevenção e parceria. Sair da visão retrospectiva irrealista para análise do contexto real e dos resultados. Sair do formalismo para oferecer segurança ao gestor.

Mas como incentivar isso? A segurança jurídica é base para a experimentação administrativa, transformando risco em oportunidade de aprendizado. Mas também é preciso mudar a formação dos controladores.

No Brasil, temos concurso público, depois curso de formação concentrado (média de 120 dias), sem imersão obrigatória nos órgãos fiscalizados. A formação ocorre integralmente dentro do órgão de controle, transmitindo tradição, sem foco em conviver com a realidade concreta do decisor. É uma formação endógena, que reproduz costumes e perpetua distanciamentos.

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No sistema francês, ao contrário, há períodos prolongados de imersão prática nos órgãos controlados — não como visitantes, mas como membros temporários das equipes. Futuros controladores vivem o drama de enfrentar a névoa da realidade, as dificuldades orçamentárias, as urgências políticas, as incertezas informacionais, descobrindo na prática como isso é desafiador. Só depois dessa vivência concreta assumem funções de controle. O resultado é previsível: controladores com empatia maior e compreensão mais realista de quem decide sob pressão.

O administrador médio — alguns chamam de “médium”, porque precisa tentar prever como o órgão de controle entenderá no futuro aqueles fatos e decisões — é atacado por essa exigência de fugir de padrões ideais e abstratos. A Lindb exige isso. Mas esse modelo somente se concretizará quando ampliarmos a empatia do controlador.

Controlar melhor

Hoje temos descompasso: formação teórica distante da prática, padrões abstratos de controle, figuras idealizadas como o “administrador médio” sem conteúdo concreto, sistema de controle com viés punitivo e retrospectivo desincentivando a inovação.

Como controlador, defendo a formação mais imersiva, realista, empática no controle público. O arcabouço legal da Lindb ajuda, exigindo o primado da realidade, fim da idealização de fatos, proteção do erro simples e de boa-fé. Com esse arcabouço legal e a formação empática, temos possibilidade de mudança efetiva.

Os Tribunais de Contas começam a mudar. O TCU mostra evolução, decisões apuram cada vez mais o contexto real dos órgãos correcionado, evitando sancionamento injusto. Isso precisa se generalizar. Os ministros Antonio Anastasia, Bruno Dantas e Benjamin Zymler tem encabeçado esse avanço. A consensualidade assume algum protagonismo, o que traz o mundo dos fatos para mais perto desta ilustre Corte Administrativa.

A questão fundamental não é controlar mais, mas controlar melhor. Precisamos de novo padrão de controle conformativo e prospectivo, permitindo a experimentação e o abandono do fetiche da culpa. A recalibração do controle com legalidade, contexto, segurança jurídica, eficiência.

Existem instrumentos legais e conceitos novos para serem explorados, mecanismos inovadores de incentivo à coordenação, a presteza, a economia operacional. Centros de competência, silêncio translativo e ablativo, decisão coordenada, experimentação disciplinada, sistemas de prevenção e concentração de controle, formação empática de controladores — essas não são propostas abstratas. São realidades que já vigem parcialmente no sistema, mas precisam ser estudadas, compreendidas e otimizadas.

O desafio está posto. A transformação de mentalidades é possível. Paradigmas de compreensão sofrem mutações que somente com o tempo conseguimos identificar com clareza. Falta apenas incentivar essa virada realista e empática, que assume a falibilidade humana como inerente a qualquer atividade, e ampliar a vontade institucional para operacionalizar o que o ordenamento já permite e o que a racionalidade administrativa exige com a máxima urgência.

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[1] Novembro, 2026. Palestra integral disponível pelo link

[2] Ver aqui

[3] Revista Colunistas, 22/12/2016, nº 317. Ver, ainda, ConJur.

[4] ConJur

[5] ConJur

[6] ConJur

[7] ConJur

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