Desafios da reforma tributária para o setor do gás natural

O gás natural é uma das principais fontes energéticas em ascensão no país, com papel fundamental na transição para uma matriz energética mais sustentável, sendo certo que sua versatilidade e eficiência tem impulsionado sua adoção em diversos setores, como industrial, residencial, comercial e de transporte.

Nos últimos anos, o Brasil tem implementado uma série de políticas e programas destinados a ampliar e modernizar o mercado de gás natural, como por exemplo o programa “Gás para Crescer”, com o objetivo de promover a competitividade do setor, incentivando a entrada de novos agentes e a criação de um mercado livre. A iniciativa busca destravar investimentos em infraestrutura, diversificar os fornecedores e ampliar o acesso ao gás natural, fortalecendo sua relevância na economia nacional.

No entanto, a reforma tributária trazida pela Emenda Constitucional nº 132/2023 e a Lei Complementar nº 214/2025 levanta desafios significativos para a cadeia do gás natural. Tais mudanças exigem atenção para evitar distorções no mercado e assegurar que o gás natural continue a desempenhar papel estratégico na transição energética e no fortalecimento da matriz energética brasileira.

A implementação da Contribuição sobre Bens e Serviços (CBS) e do Imposto sobre Bens e Serviços (IBS) pela reforma tributária do consumo tem como objetivo principal a simplificação de um sistema reconhecidamente complexo, ao mesmo tempo em que busca mitigar conflitos e corrigir distorções existentes na tributação.

Por sua vez, o Imposto Seletivo (IS) foi implementado com o objetivo de onerar bens e serviços que causam impactos negativos à saúde e ao meio ambiente, buscando desestimular o consumo de produtos prejudiciais e incentivando práticas mais sustentáveis e saudáveis.

Regime monofásico para combustíveis

A Emenda Constitucional nº 132/2023 determinou a instituição do regime monofásico da CBS e do IBS para os combustíveis, aplicando alíquotas uniformes específicas por unidade de medida e diferenciadas por produto em todo o território nacional, vedada a apropriação de créditos relacionados às aquisições destinadas à distribuição, comercialização ou revenda desses produtos.

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Nesse sentido, a Lei Complementar nº 214/2025 incluiu o gás natural processado e o gás natural veicular no rol de combustíveis sujeitos ao regime de tributação específico da CBS e do IBS. A responsabilidade tributária foi atribuída às unidades de processamento de gás natural, responsáveis pelo refino e adequação do produto ao consumo, cabendo a elas o recolhimento dos tributos incidentes na cadeia.

Atualmente, o gás natural está sujeito ao regime de tributação plurifásico do ICMS e não cumulativo do PIS e da Cofins, desde a extração, passando pelas fases de transporte e distribuição, até o consumidor final.

Portanto, com a vigência da reforma tributária, a lógica de tributação do gás natural será substancialmente alterada, passando a anteceder a prestação de serviços de transporte e distribuição.

Desafios na transição tributária

A mudança trará desafios significativos na implementação do novo regime durante o período de transição, em que o setor operará sob o regime plurifásico e, simultaneamente, sob as alíquotas ad rem na sistemática monofásica, considerando as características específicas da cadeia de circulação do gás natural.

Após a implementação, o regime monofásico será aplicado apenas para venda da molécula do gás natural, mas a cadeia de circulação do produto inclui etapas de transporte entre as unidades de processamento e de distribuição, que permanecerão sujeitas ao ICMS e futuramente ao IBS e CBS no regime normal de crédito e débito. Todavia, os créditos gerados na operação de transporte não poderão ser utilizados na operação subsequente, em razão de vedação legal e pela lógica operacional do regime monofásico, que recolhe os tributos da venda do produto na etapa inicial.

A impossibilidade de aproveitamento de créditos tributários na sistemática monofásica pode resultar em um aumento efetivo da carga tributária ao longo da cadeia do gás natural.

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Outro aspecto relevante é que o gás natural processado e o gás natural veicular são essencialmente a mesma molécula, diferenciando-se apenas pelo uso final. O primeiro é voltado para aplicações industriais, residenciais e comerciais, enquanto o segundo é comprimido para uso como combustível automotivo. A Lei Complementar nº 214/2025 trata ambos como produtos distintos. Tal distinção pode gerar inconsistências no regime monofásico, caso se sujeitem a alíquotas ou políticas tributárias distintas, pois a tributação ocorre antes da definição do uso final do produto.

Ou seja, a unidade de processamento de gás natural será responsável por recolher o tributo sem saber qual a destinação final será dada ao produto, que poderá ser diferente para o gás natural processado e o gás natural veicular.

Devolução de impostos

Além destes pontos, a tributação monofásica também apresenta desafios para a operacionalização de políticas de cashback no fornecimento de gás canalizado para famílias de baixa renda. A Lei Complementar nº 214/2025 prevê a devolução integral da CBS e parcial de IBS para essas famílias. A operacionalização desta devolução se dá por meio da concessão de desconto no momento da cobrança pelo serviço de fornecimento de gás natural. Contudo, devido ao recolhimento antecipado do tributo, a concessão destes descontos será de difícil aplicação, de modo que a operacionalização terá que observar procedimentos especiais.

Ademais, em relação ao IS, a Emenda Constitucional nº 132/2023 determinou a incidência sobre a produção, extração, comercialização ou importação de bens e serviços prejudiciais à saúde ou ao meio ambiente, tendo a Lei Complementar nº 214/2025 incluído o gás natural no rol dos bens e serviços sujeitos ao tributo, hipótese em que o fato gerador do imposto ocorre na extração do bem, sendo contribuinte o produtor-extrativista que realiza a extração.

A despeito disso, a lei beneficiou o gás natural destinado à utilização como insumo em processo industrial e como combustível para fins de transporte. Todavia, no momento da extração o produtor não tem conhecimento de qual destinação será dada ao produto ao final da cadeia, o que dificulta a aplicação do benefício concedido em função da destinação dada ao gás natural.

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A cobrança do IS tal como previsto na Lei Complementar nº 214/2025, que equipara o gás natural aos óleos brutos petróleo, deixa também de observar a importância da utilização do produto para a transição energética, pois, apesar de ser um combustível fóssil, pode ser usado como alternativa a combustíveis mais poluentes na indústria, contrariando o princípio da defesa do meio ambiente estatuído pela Emenda Constitucional nº 132/2023.

Risco de litígio

Por fim, destaca-se que, caso não seja bem estruturada, a reforma tributária tem grande potencial de alta litigiosidade, especialmente devido ao entendimento do Superior Tribunal de Justiça acerca da legitimidade do consumidor final para ajuizar ações tributárias nas relações jurídicas que envolvem concessões de serviço público, tal como ocorre no setor de gás natural.

Como se vê, as alterações tributárias trarão diversos desafios para a implementação das regras da reforma tributária em relação ao gás natural. É fundamental que o novo modelo tributário preserve o equilíbrio econômico e a eficiência do mercado, garantindo que o gás natural continue contribuindo de maneira efetiva para os objetivos de transição energética do País.

Considerando que o gás natural desempenha um papel estratégico no processo de transição energética, por ser uma fonte menos poluente e altamente versátil, é importante a conformação da legislação tributária para evitar possíveis inconsistências e aumento da carga tributária para o setor.

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