Gestão de precedentes completa 10 anos de transformações silenciosas no Brasil

Na teoria, o caminho para a criação de um precedente à brasileira é simples: identifica-se que determinado tema está gerando muitos recursos e informa-se à corte superior competente, que afeta alguns deles como paradigma para julgamento e definição de uma tese jurídica. Ela vai orientar as instâncias ordinárias e pautar a conduta da sociedade. Não vai mais fazer sentido recorrer para contestar uma posição solidificada. Haverá a pacificação social — ao menos quanto a esse tema.

STJ sede prédio
STJ começou gestão de precedentes para agilizar julgamento de repetitivos – Divulgação/STJ
 
 

 

O problema é que apenas julgar processos e fixar teses não adianta. É preciso definir quais casos serão julgados, quando, como e por quem. É necessário organizá-los, cuidar dos sobrestamentos — as suspensões feitas para todos os demais casos, enquanto aguarda-se uma solução — e dar a devida publicidade, para que todos saibam o que foi decidido. Por fim, é imperioso garantir que estão sendo cumpridos. Em suma, é preciso gerir os precedentes.

Essa percepção surgiu no Brasil há dez anos, quando o ministro Paulo de Tarso Sanseverino pediu ao então presidente do Superior Tribunal de Justiça, Francisco Falcão, a criação de uma comissão temporária com o objetivo de fazer um trabalho de inteligência junto aos outros tribunais. O objetivo era estimular a afetação de recursos especiais como representativos das principais controvérsias.

O pedido foi atendido por meio da Portaria 489/2014. A comissão temporária acabou se tornando definitiva e, hoje, é a mais longeva do STJ. Ela deu início a uma década de transformações silenciosas de dentro do Judiciário para fora, no sistema de Justiça, em uma experiência que foi replicada por todo o país. À exceção daqueles da Justiça Eleitoral, todos os demais tribunais têm comissões responsáveis pela gestão de precedentes.

Há dez anos, no entanto, o objetivo era muito mais modesto.

 
Ministro Paulo de Tarso Sanseverino foi o responsável pela criação da comissão gestora – Sergio Amaral/STJ

 

Melhor assim

A primeira e principal função desse órgão interno foi informar sobre a importância de fixar teses. Em 2014, o STJ trabalhava com recursos repetitivos há seis anos — eles foram criados pela Lei 11.672/2008, que deu ao tribunal a possibilidade de vincular posição. Até então, só o Supremo Tribunal Federal podia fazer isso, por meio da repercussão geral. O Tribunal Superior do Trabalho poderia ter suas decisões vinculantes desde 2001, quando o julgamento sob o critério da transcendência foi inserido na Consolidação das Leis do Trabalho, mas sua regulamentação só veio com a reforma trabalhista de 2017.

O STJ não era eficiente na forma como tratava esse poder. O tribunal até afetava muitos temas — em 2009, foram 332. Mas penava com prazos e, principalmente, com fluxo de julgamento. A prática era escolher um recurso para separar em diversos temas de repetitivo. Se esse processo se mostrasse inviável, seja por questões de admissibilidade ou de mérito, todos os temas seguiriam “pendurados” aguardando a chegada de novos recursos mais propícios.

O caminho até os repetitivos não era centralizado e sua afetação não gerava prevenção — mesmo na espera da definição de uma tese, os demais ministros continuavam recebendo recursos sobre o mesmo tema, pela distribuição livre. Isso acontecia até com os casos escolhidos pelos tribunais de segundo grau para definição do precedente qualificado: definia-se cinco ou seis representativos da controvérsia, que subiam ao STJ e eram pulverizados em diversos gabinetes, à sorte de o relator identificar que poderiam ou não gerar um repetitivo.

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O ministro Sanseverino então organizou a comissão temporária com mais dois colegas, sendo um de cada seção do STJ: ele pela seção de Direito Privado (2ª Seção), Assusete Magalhães pela de Direito Público (1ª Seção) e Rogerio Schietti pela de Direito Criminal (3ª Seção). Isso abriu caminho para uma interlocução dentro do tribunal, uma conscientização dos gabinetes sobre a importância de investir tempo e esforço na construção dos precedentes qualificados. O cenário identificado foi demandando novas ações.

Surgiu a página de repetitivos do STJ, como repositório com tudo que foi decidido. O tribunal fez um saneamento dos recursos e identificou que 85 temas de repetitivo estavam sem processos vinculados, parados e gerando sobrestamento nos tribunais de segunda instância. Todos foram cancelados. Em 2015, identificou-se que o STJ tinha 7 mil recursos sobrestados, sem qualquer organização. Descobriu-se que 800 estavam indevidamente parados. Presidente à época, a ministra Laurita Vaz determinou um mutirão para dar cabo desses casos, que foram resolvidos em dois meses.

Tudo isso evoluiu para uma alteração regimental proposta em 2016, fixando um fluxo para o julgamento dos repetitivos: os representativos da controvérsia seriam centralizados na presidência do tribunal, que abriria prazo para manifestação do Ministério Público Federal e depois distribuiria livremente para a seção competente do STJ. O relator sorteado teria 60 dias para propor a afetação ou não. A ministra Laurita Vaz delegou essa competência para a presidência da comissão gestora de precedentes — medida replicada por todos os presidentes seguintes. E foi assim que a comissão tomou a frente, efetivamente, da gestão.

 
Rogerio Schietti é o atual presidente da comissão gestora de precedentes – Lucas Pricken/STJ

 

Deixa comigo

A expectativa era de que os tribunais de segundo grau se tornassem grandes parceiros do tribunal na afetação de recursos repetitivos, o que jamais ocorreu. A partir de 2016, os membros da comissão passaram a visitar as cortes, para repetir a conscientização que vinha dando resultado internamente, no STJ. Ao Anuário da Justiça, em 2019, o ministro Sanseverino comparou a identificação desses temas como uma guerra de guerrilha: “tem que estar constantemente identificando novas demandas e atuando. A questão é atuar rapidamente para evitar que o problema fique crônico”.

A ministra Assusete Magalhães, em 2020, relembrou como, nos primeiros contatos com os desembargadores, não havia nenhuma noção do que era gestão de precedentes. Foi por meio dessas visitas que as cortes de segundo foram, paulatinamente, implementando suas próprias comissões gestoras, para atender a Resolução 235/2016 do Conselho Nacional de Justiça. A norma promoveu uma padronização dos procedimentos usados para definição de precedentes qualificados e emprestou muito da experiência adquirida pelo STJ na gestão interna.

Como o fluxo de afetações a partir das sugestões dos tribunais ao STJ continuou fraco, a partir de 2018 a própria comissão gestora de precedentes começou a identificar quais temas poderiam gerar definição de tese vinculante. E fazia isso no olho: os servidores acessavam um sistema com o resumo indicativo dos recursos recebidos e, filtrando por tribunais, conseguiam identificar a repetição de termos ou palavras-chave. Com isso, selecionavam processos como representativos da controvérsia e enviavam para a presidência da comissão.

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Para a sorte do tribunal, o servidor Amilar Domingos Moreira Martins estava fazendo mestrado em administração pública e desenvolvendo uma ferramenta de agrupamento de documentos jurídicos. Essas planilhas passaram a ajudar a identificação dos temas repetitivos pela comissão. O trabalho de Amilar, publicado em 2018, resultou num modelo de inteligência artificial que hoje é conhecido por Sistema Athos, usado de forma ampla em diversos setores do STJ, com bastante sucesso.

Para auxiliar a gestão de precedentes, o Athos funciona num sistema de banco de teses. Os servidores da secretaria de jurisprudência identificam temas muito julgados e cadastram no sistema. O mesmo ocorre na secretaria judiciaria, responsável pela autuação dos recursos. Com isso, o Athos passa a identificar todos os recursos recebidos com a mesma temática, o que gera uma indicação de tema repetitivo passível de afetação.

Com isso, a comissão gestora de precedentes hoje é a principal responsável pela identificação de temas para formação de precedentes qualificados. Mesmo os gabinetes dos ministros preferem esperar pela atuação da unidade. Em 2023, 73% das afetações foram feitas após indicação da comissão (39 ao todo). Apenas 12 vieram enviadas pelos tribunais de apelação. E somente duas foram feitas de ofício pelos próprios ministros do STJ.

 
Marcelo Marchiori 2024
Marcelo Marchiori é o assessor-chefe do Núcleo de Gerenciamento de Precedentes – Pedro França/STJ

 

Precedentes

Dez anos depois da criação da comissão gestora de precedentes do STJ, todos os tribunais de apelação têm sua própria unidade. O Tribunal de Justiça de São Paulo, maior corte de segundo grau do mundo, tem cinco núcleos: um de cada seção, um da vice-presidência e outro da presidência. Os TJs de Minas Gerais, Pará e Amapá também são reconhecidos como grandes exemplos de boa gestão de precedentes atualmente.

O Supremo Tribunal Federal, que desde 2012 tinha o seu núcleo de apoio à repercussão geral, em 2020 criou o núcleo de gerenciamento de precedentes, uma unidade separada da estrutura da presidência e que ficou responsável por ampliar as afetações, a comunicação com os tribunais e a interlocução interna.

Isso é necessário porque, apesar da previsão de repercussão geral como um requisito para julgamento de recurso extraordinário, o Supremo tem circuitos que permitem a apreciação colegiada fora dessa hipótese. Em 2023, o tribunal proferiu 95,1 mil decisões recursais, mas julgou apenas 52 temas de repercussão geral. O excedente é absorvido pelas turmas. Daí a importância de selecionar casos para afetação e fazer a gestão adequada desses precedentes.

No STJ, a comissão gestora de precedentes hoje é presidida pelo ministro Rogerio Schietti, seu último membro original — o ministro Paulo de Tarso Sanseverino morreu em 2023 e a ministra Assusete Magalhães se aposentou em janeiro de 2024. Schietti atesta que a gestão de precedentes já mostra resultados positivos, uma década mais tarde. Ele avalia que os problemas são tópicos, de um ou outro desembargador que insiste em ignorar a vinculação garantida aos precedentes qualificados pelo Código de Processo Civil de 2012. A questão, portanto, é de coerência sistêmica.

“Se você tem um entendimento que é consolidado e todo mundo respeita, de que adianta recorrer? Você vai perder. Eu acho até que, no âmbito criminal, mesmo assim vale a pena, muitas vezes, recorrer para evitar trânsito em julgado ou algum tipo de satisfação para o cliente. Porque no âmbito criminal você não pode punir uma litigância de má-fé, digamos. No processo penal, o máximo que nós podemos fazer é enviar para um órgão correcional. Mas assim, se você tiver um sistema em que todas as decisões, já pacificadas, em julgamento qualificado, são seguidas pelos Tribunais, o número de recursos vai cair muito”, diz.

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Marcelo Marchiori, assessor-chefe do Núcleo de Gerenciamento de Precedentes do STJ, diz que, de forma geral, que os repetitivos são, sim, obedecidos por todos os tribunais. O problema é a jurisprudência pacificada, em todo seu conceito vago. Uma das funções da gestão de precedentes, inclusive, é transformar jurisprudência em precedente qualificado para evitar esse tipo de questionamento.

“Quando estamos no campo da jurisprudência, os juízes e tribunais escolhem aquela que acham correta. O juiz, se quiser, acha um acórdão aqui do STJ e, mesmo que tenham outros 30 acórdãos posteriores com outra posição, ele define aquele primeiro como jurisprudência e coloca na decisão”, pontua. Esse é uma questão a ser trabalhada internamente no STJ, no futuro próximo: o tribunal não tem meios efetivos de indicar quando um precedente foi superado.

A presidência tem, desde 2019, uma proposta de emenda regimental para criar a classe recursal chamada “proposta de revisão de tema (PRT)”, o que pode ajudar na visibilidade dessa transformação jurisprudencial. Essa funcionalidade seria interessante especialmente porque, como já mostrou a revista eletrônica Consultor Jurídico, o STJ é seriamente afetado pela “zona de penumbra” que existe com o Supremo Tribunal Federal.

Segundo o ministro Rogerio Schietti, ainda há muito o que trabalhar na gestão de precedentes. Mesmo dentro do STJ. Hoje, a 2ª Seção é a que menos utiliza desse instrumento, apesar de ser a única que tem o luxo de, efetivamente, dar a última palavra, já que temas de Direito Privado são pouco tutelados pela Constituição e, portanto, raramente chegam ao STF. Talvez por isso, o colegiado mantém a prática de só firmar tese quando o tema foi enfrentando e pacificado pelas 3ª e 4ª Turmas.

Na 3ª Seção, de Direito Criminal, o interesse é crescente em construir precedentes qualificados, devido à explosão do número de processos recebidos — embora a maioria venha em Habeas Corpus. A constante no STJ é a excelência como a 1ª Seção, de Direito Público, trabalha com os repetitivos. É a única que faz uma sessão de julgamento por mês dedicada à definição de teses. Dos 934 temas julgados até dezembro de 2023, 537 são da 1ª Seção (57,4% do total).

O impacto disso não pode ser desprezado. Há 10 anos, quando a gestão de precedentes foi iniciada no tribunal, a 1ª Seção recebia 41,8% dos recursos distribuídos. Hoje, essa distribuição corresponde a 23,8% do total. A redução percentual não pode ser unicamente creditada às teses firmadas, já que isso passa, por exemplo, pela explosão de HCs na 3ª Seção. Mas ministros da 1ª Seção entendem que a situação seria muito pior se o colegiado não tivesse se devotado tanto à construção dos precedentes qualificados.

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