A hierarquia administrativa é mais que uma pirâmide de órgãos: é uma relação jurídica dinâmica, associada indissoluvelmente a dois conceitos fundamentais: organização administrativa escalonada e processo decisório multinível.
Não existe hierarquia administrativa se há apenas um estrato na organização. Mas tampouco a hierarquia é estado de fato ou a posição topográfica de órgãos na organização. É jurídica a relação que une órgãos em vínculos de direção e subordinação, comando e obediência, dependência e supremacia. Hierarquia é relação jurídica interorgânica que exige esses dois “maridos conceituais”.
A hierarquia nunca é vínculo de ordem e obediência absolutos nem admite que em seu nome ilegalidades sejam consumadas. Embute prerrogativas, mas igualmente deveres e responsabilidades. Seu contorno atual exige olhar analítico, resumido aqui ao essencial.
Pressuposto da hierarquia: a desconcentração
Hierarquia vem do grego hierarkhía, que se refere ao “comando de um alto sacerdote” e é composta por hiera (ritos sagrados) e arkhein (comando, governar) [1]. Com o tempo, a palavra hierarquia foi transposta do domínio eclesiástico para as estruturas de Estado, carregando consigo a noção de autoridade legitimada pelo escalão orgânico.
A hierarquia pressupõe repartição de competências entre órgãos, pois a concentração de poder em um órgão único inviabiliza a relação de hierarquia. Hierarquia pressupõe desconcentração: a repartição de competências entre órgãos distintos dentro de uma mesma pessoa jurídica. A desconcentração constitui a multiplicidades de órgãos decisórios e viabiliza a relação jurídica entre eles, conformada por normas jurídicas, na intimidade de uma mesma pessoa administrativa (político-administrativa ou exclusivamente administrativa).
Porém, duas observações cobram atenção.
A primeira. Ao contrário do que ocorre em outros sistemas jurídicos, no Direito brasileiro a desconcentração é sempre vínculo entre sujeitos de direito administrativo despersonalizados (órgãos). A legislação brasileira não prevê desconcentração entre pessoas administrativas. No Brasil, o vínculo organizativo entre pessoas administrativas denomina-se descentralização.
A segunda. A hierarquia sempre vem acompanhada da desconcentração, mas a recíproca não é necessária. Entender isso exige distinguir entre desconcentração horizontal e desconcentração vertical.
A desconcentração vertical, assentada na hierarquia, vincula órgãos superiores e inferiores em estrutura escalonada e dentro da mesma pessoa jurídica: a exemplo da relação entre o Ministério da Educação e seus órgãos regionais ou setoriais. Mas há também a desconcentração horizontal, que não conhece hierarquia, pois coordena órgãos autônomos ou independentes, como o vínculo entre os Tribunais de Contas e o Poder Executivo. Na desconcentração horizontal vigoram relações paritárias, mesmo quando há em causa competências de controle (STF, ADI 3.329) [2].
Há crescente número de relações paritárias dentro de uma mesma pessoa jurídico administrativa. Órgão administrativos de extração constitucional, como o Ministério Público, os Tribunais de Contas, o Conselho Nacional de Justiça e o Conselho Nacional do Ministério Público desconhecem sujeição hierárquica em face do órgão administrativo central, embora não sejam pessoas jurídicas. Possuem orçamento próprio, pessoal próprio, competências próprias, e ordenação interna própria, não sujeita a ordem e comando do chefe do Poder Executivo. Entre esses órgãos autônomos – e outros, autonomizados funcionalmente pelo legislador – vigem relações laterais ou cooperativas e não relações verticais ou hierárquicas. Entre órgãos de igual hierarquia, os vínculos que se estabeleçam são igualmente paritários. E há órgãos inferiores que, pelas próprias funções, não se sujeitam funcionalmente à hierarquia, pois perderiam a razão de existirem se abrigados a ordens de serviço e comandos específicos, embora não possuam matriz constitucional (por exemplo, os órgãos consultivos e técnicos-representativos).
Em síntese: a hierarquia é relação interorgânica residente na intimidade de uma mesma pessoa administrativa e não relação interadministrativas; não impõe uma subordinação total necessária entre órgãos superiores e subalternos e tampouco é logicamente compatível com vínculos de desconcentração administrativa horizontal, que envolvam órgãos funcionalmente independentes ou de equivalente escalão orgânico.
Quando há mais de uma pessoa administrativa em causa não há relação de hierarquia nem tampouco desconcentração. Entre pessoas administrativas pode haver superintendência ou controle legal, que a velha doutrina francesa denominava tutela. Entre pessoas administrativas são possíveis relações interadministrativas e relações de descentralização [3].
Hierarquia e a organização administrativa escalonada
A estrutura escalonada representa a dimensão estática da hierarquia. Pirâmides organizacionais, organogramas, matrizes de distribuição de competências e cargos configuram o pressuposto organizacional da relação hierárquica escalonada. Este primeiro componente conceitual da hierarquia – a organização em escalões – materializa-se em decretos de estrutura, leis orgânicas e regimentos internos.
O escalonamento, porém, não representa mera disposição de cargos e órgãos. Constitui gradação jurídica de competências e responsabilidades, distribuição racional de atribuições segundo critérios de especialização, abrangência territorial decisória ou proximidade com o poder político.
Nessa dimensão deve ser reconhecida a discricionariedade organizatória do gestor na estruturação e distribuição de competências no interior da administração, observado o limite da impossibilidade de criar cargos sem lei e de reestruturar carreiras sem autorização legal específica. Fora isso, podem órgãos sofrer cisão, aglutinação, concentração temporária de competências e outras medidas diretamente relacionadas à estruturação e organização internas, sem reflexo em direitos e deveres de terceiros (artigo 5º c/c artigo 84, da Constituição) [4].
A jurisprudência do STF tem reiteradamente reconhecido a discricionariedade administrativa na configuração organizacional, embora estabeleça limites quanto à criação de cargos (ADI 3.602/GO) e reestruturação de carreiras (RE 642.895)
Hierarquia e processo decisório multinível
Se a estrutura escalonada representa a dimensão estática pressuposta pela hierarquia, o processo decisório multinível constitui a dimensão dinâmica da hierarquia administrativa. Esta segunda dimensão do conceito manifesta-se em fluxos de comando, supervisão, inspeção, revisão, solução de conflitos, avocação e delegação. Expressa-se em instruções normativas, ordens de serviço, homologações e decisão de recursos hierárquicos.
O processo decisório multinível traduz-se em poderes hierárquicos clássicos: poder de direção, poder de inspeção, poder disciplinar, poder de revisão e poder de delegação e avocação. Estes poderes, contudo, não são absolutos nem incondicionados. Encontram limites no próprio ordenamento jurídico e nas finalidades públicas a que devem servir.
Não pode o superior hierárquico, por exemplo, reformar atos administrativos emitidos em competência vinculada por autoridade subordinada. Tampouco pode avocar competências quando a lei reservar determinada competência a autoridade específica (competência exclusiva) [5].
Essa cadeia decisória pode envolver decisões organizatórias e decisões funcionais. Por vezes a lei autoriza uma espécie de decisão e nega a outra. Outras vezes, a lei autoriza decisões gerais e não decisões específicas. Por exemplo, no Ministério Público a Chefia Institucional – os procuradores gerais dos estados ou o procurador geral da República – não podem determinar decisões concretas ou substituir a decisão dos demais agentes do MP, que gozam de autonomia funcional, mas podem decidir sobre conflito de atribuições, definindo o agente competente para conhecer determinado caso. Além disso, embora não emitam ordens de serviço concretas para casos determinados, podem editar diretrizes, planos e programas funcionais gerais.
A hierarquia administrativa oferece ao gestor uma prerrogativa de vigilância sobre as decisões dos órgãos subordinados ou vinculados na dimensão de sua aplicação. Essa prerrogativa de controle pode ativar a competência disciplinar ou, quando couber, a substituição da decisão do inferior hierárquico em sede de decisão de recursos hierárquicos.
As patologias da relação hierárquica
A hierarquia administrativa, como qualquer relação jurídica, está sujeita a patologias e distorções. O autoritarismo hierárquico, o abuso de poder disciplinar, a interferência indevida em competências técnicas e a instrumentalização política da cadeia de comando representam desvios frequentes.
Mas a “cega obediência hierárquica” perdeu vigência na administração civil. O artigo 116, IV, da Lei 8.112/90, por exemplo, estabelece o dever de obediência dos servidores públicos às ordens superiores, mas dispensa do dever o cumprimento a ordens ilegais. A insubordinação grave e imotivada pode conduzir à demissão (artigo 132, VI), mas a resistência às ordens diretas ilegais é legítima e protegida, sendo assegurado ao servidor o direito de representação (artigo 116, XII, da Lei 8.112/90). Em paralelo, o Código Penal, em seu artigo 22, exclui a culpabilidade do servidor se cometer crime sob coação irresistível ou em obediência a uma ordem superior, desde que esta não seja manifestamente ilegal [6]. Se a ilegalidade for evidente, não resistir pode caracterizar o crime de prevaricação (artigo 319 do CP).
No âmbito da administração militar, no entanto, a compreensão do dever de resistência a ordens ilegais é menos abrangente: entende-se que a única ordem que não deve ser cumprida é a ordem manifestamente criminosa. Os militares devem cumprir as ordens emanadas dos seus superiores, caso não sejam criminosas, constituindo crime a recusa de obediência conforme previsto no artigo 163 do Código Penal Militar [7]. O fundamento para essa aplicação estrita decorre da singularidade da administração e da carreira militar, submetidas a exigências de hierarquia e disciplina rigorosas (Artigo 142, da CF) cujas limitações “visam a atender à supremacia do bem coletivo em detrimento de interesses particulares, até pela força, se necessário” (STF, ADI nº 6.595).
A hierarquia administrativa na era da governança pública
A concepção tradicional de hierarquia administrativa vem sendo desafiada pelos novos paradigmas de governança pública. A rigidez hierárquica mostra-se insuficiente diante da complexidade dos problemas contemporâneas, que exigem coordenação intersetorial, sistemas transversais de informação e participação social direta.
Emergem, assim, estruturas administrativas pós-hierárquicas: colegiados interinstitucionais, redes de políticas públicas, estruturas matriciais unificadas por projetos e outros mecanismos de governança colaborativa presenciais e digitais. Estes arranjos não eliminam a hierarquia como categoria conceitual ou como vínculo jurídico, mas restringem a sua aplicação no conjunto da organização administrativa.
Algumas dessas estruturas são temporárias, como o Comitê Gestor da Copa do Mundo Fifa 2014 e Comitê Gestor dos Jogos Olímpicos e Paraolímpicos de 2016. Outras devem ser permanentes, apoiadas inclusive no artigo 10, da Constituição, que assegura a “participação dos trabalhadores e empregadores nos colegiados dos órgãos públicos em que seus interesses profissionais ou previdenciários sejam objeto de discussão e deliberação”.
A atuação integrada horizontal entre órgãos e as entidades envolvidos na prestação e no controle dos serviços públicos constitui ainda princípio e diretriz do Governo Digital (Artigo 2º, IX, da Lei 14.129/2021). Sem alarde, em alguns domínios, a administração civil assume a forma de uma trama de redes.
A dimensão constitucional da hierarquia administrativa
A Constituição de 1988 não menciona explicitamente o princípio hierárquico entre os princípios gerais da administração pública, diferentemente de outros princípios referidos na cabeça do artigo 37. A hierarquia é considerada inerente, generalizada e estrutural apenas para a administração militar (artigo 142). Essa ausência da hierarquia no pórtico dos princípios gerais não é acidental: reflete a relativização da hierarquia como princípio estruturante da organização administrativa contemporânea.
A hierarquia administrativa, como vínculo jurídico complexo, permanece importante sobretudo na administração direta. Contudo, seus contornos transformaram-se para acomodar exigências de ampliação no número de órgãos com autonomia funcional, de órgãos de caráter intersetorial em regime paritário de funcionamento, de órgãos de representação social e de órgãos técnicos de assessoramento e deliberação colegiada.
A metáfora dos “dois maridos” ou componentes conceituais – estrutura escalonada e processo decisório multinível – evidencia a natureza multidimensional desse instituto. Ambas as dimensões requerem reconfiguração para que a hierarquia administrativa não se converta em anacrônico resquício autoritário, mas em ferramenta sintonizada com a gestão pública contemporânea.
A hierarquia na organização administrativa de nossos dias deve conciliar valores aparentemente contraditórios: coesão e participação; coordenação central e autonomia técnica; estabilidade estrutural e flexibilidade operacional. Esse equilíbrio dinâmico constitui um dos grandes desafios do Direito Administrativo no século 21: repensar a hierarquia e o funcionamento pluralista e aberto da administração sem abdicar de valores estratégicos fundamentais, como a responsabilidade, a eficiência, a unidade e a coordenação da ação estatal.
A hierarquia, assim ressignificada, deixa de ser um dado assumido como inevitável para tornar-se instrumento de realização dos fins constitucionais que legitimam a sua própria existência. Hierarquia não é palavra mágica para autorizar abusos de poder e o exercício irracional da autoridade. É relação organizativa estruturada, finalista, passível de disciplina flexível, cuja exploração rigorosa merece ser renovada tanto pelo legislador quanto pela doutrina.
[1] MACHADO, José Pedro. Dicionário Etimológico da Língua Portuguesa, III, Volume 7.ª Edição. Lisboa: Livros Horizonte, 1995, pág. 223. Ver ainda: VESCHI, Benjamin, https://etimologia.com.br/hierarquia/ e TREVIJANO FOS, J. A. Garcia. Tratado de Derecho Amnistrativo, Tomo II, Vol. I, 2ª.ed, Ed. Rev. de Direito Privado, 1971, p. 426.
[2] No acordão referido, decidiu o STF ser inconstitucional norma legal do Estado de Santa Catarina que permitia a avocação de inquérito policial pelo Ministério Público. Decidiu a Corte que, a atribuição de controle externo da atividade policial pelo Ministério Público, de acordo com o artigo 129, VII, da Constituição Federal, não importa em relação de hierarquia entre o MP e a Polícia. (ADI 3329, Rel. Gilmar Mendes, Tribunal Pleno, DJe- 28-06-2024)
[3] Não se deve confundir pessoa administrativa e sujeito de direito administrativo. Órgãos podem ser sujeitos de direito administrativo, mas nunca são pessoas administrativas. Órgãos são unidades de atuação jurídica despersonalizadas (artigo 1º, §2º, I, da Lei nº 9.784/1999). Não são pessoas jurídicas e, portanto, não possuem aptidão genérica para direitos, deveres e obrigações, mas são sujeitos de direito (centros unitários de imputação de direitos e deveres) e, como tais, gozam de aptidão limitada ou parcial para direitos, deveres e obrigações. Desenvolvi o tema em vários textos inseridos em MODESTO, Paulo. Direito administrativo da experimentação. 2ª. Ed. São Paulo: Juspodium, 2025 (vg. p.59-61 e 273 e segs). Ver, ainda, VILANOVA, Lourival. Causalidade e Relação no Direito. 4ed. São Paulo: Ed. RT, 2000, p. 275 e segs.
[4] A hipótese foi prevista no art. 6º, do Anteprojeto de Normas Gerais de Reforma da Organização Administrativa Federal, porém decorre do art. 84, VI, da Constituição, com a redação da EC 32/01.
[5] A Lei 9784/99 não é expressa quanto a este último aspecto. No entanto, se não é possível delegar competência exclusiva do órgão subordinado (art. 13, III), penso que tampouco é possível avocar temporariamente competência exclusiva de órgão ou autoridade subalterna, competência exercida (consumada) ou competência do subalterno no curso do processo administrativo iniciado. Ver, sob a última hipótese, MOREIRA, Egon Bockmann. Processo administrativo. 5ª.ed. São Paulo: Malheiros, 2017, p.403.
[6] Art. 22, do Código Penal: “Se o fato é cometido sob coação moral irresistível ou em estrita obediência a ordem, não manifestamente ilegal, de superior hierárquico, só é punível o autor da coação ou da ordem.”
[7] Cf. MARREIROS, Adriano Alves; ROCHA, Guilherme; FREITAS, Ricardo. Direito Penal Militar. Teoria Crítica & Prática. São Paulo: Método, 2015, p. 629.
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