Escrevi na coluna da semana passada que o uso da tese da legítima defesa da honra não é incompatível com a íntima convicção no Júri (ler aqui). Como se diz no Twitter, sigam o fio:
1. Expliquei que, válida a íntima convicção, não é possível sindicar o seu conteúdo — exatamente porque íntima convicção é algo insondável. O que quis dizer é que precisamos levar nossas teses às últimas consequências. Quis dizer que é uma contradição entender que a soberania dos veredictos permite prisão imediata e, ao mesmo tempo, imiscuir-se na íntima convicção dos jurados. Simples assim.
2. De todo modo, vejo que ficaram dúvidas. Um amigo estimado, de alta patente jurídica, disse-me que gostara do meu texto, mas continuava a achar que não havia incompatibilidade entre íntima convicção e legítima defesa da honra.
3. Pois foi exatamente isso que eu falei na minha coluna. Era exatamente este o busílis: se vale a íntima convicção… então vale. Era esse o ponto. De todo modo, agradeço ao meu interlocutor, porque me oportuniza a deixar isso ainda mais claro.
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Como já referi na coluna passada, a íntima convicção é uma resposta dos revolucionários franceses à prova tarifada do antigo regime — enfim, ao modo como se julgava. Era o povo que deveria, agora, julgar. E com sua convicção pessoal. Típico otimismo revolucionário. Vejamos:
(i) Interessante é o que diz o artigo 342 do Código de Instrução Criminal do ano de 1808, na França pós-revolucionária:
“A lei não pede contas aos jurados quanto aos meios pelos quais se convenceram; não prescreve as regras das quais devem fazer depender em particular a plenitude e suficiência de uma prova; preceitua que interroguem a si mesmos, em silêncio e recolhimento, e que busquem determinar, na sinceridade de sua consciência, que impressão as provas produzidas contra o acusado e os meios de sua defesa causaram em seu raciocínio… A lei não os faz senão uma pergunta, que contempla toda a medida de seus deveres: tens uma convicção íntima?“
(ii) Avez-vous une intime conviction? Era esse o ponto. Era mesmo esse o ponto. E é aí que está a questão, percebem?
(iii) Pronto. Parece que até hoje não inventaram melhor conceito de íntima convicção do que o que consta no artigo 342. É isso. Gostemos ou não. Eu — todos sabem — não concordo com o uso da íntima convicção em um Estado Democrático de Direito. Porém, em sendo válido — e isso parece não incomodar a comunidade jurídica — então temos de tirar consequências. E qual é? É a de que íntima convicção não é sindicável. Ponto.
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Insisto: não me agrada a ideia de “íntima convicção”. É um equívoco filosófico, porque ignora exatamente o paradigma da intersubjetividade. Só que, se vale, e se já foi reafirmada como válida, não pode ser (casuisticamente) ignorada — em seus pressupostos e suas consequências —, de vez em quando, por aqueles que dizem que ela vale. Não gosto da ideia de íntima convicção. Mas é preciso ter coerência.
a) Nesse sentido, aliás, os italianos já falaram, no século 19, na íntima convicção na teoria negativa das provas legais: a livre apreciação — e isso vale para a convicção íntima, na nossa discussão — só se aplica em favor do acusado, sendo a condenação sempre dependente de requisitos previstos em lei. Claro e evidente: se a íntima convicção e o livre convencimento surgiram num paradigma iluminista, pós-revolucionário, qual poderia ser seu sentido? Se o que veio foi para superar exatamente um sistema inquisitorial, num ambiente filosófico de celebração da racionalidade e da liberdade humana, bom…
b) Poderíamos aprender com os italianos. Íntima convicção só para absolvição. Não esqueçamos que o quesito a ser respondido é: o réu deve ser absolvido?
c) Explico: o quesito genérico é feito, nitidamente, em favor do réu. Escrevi sobre isso em artigo na ConJur em 2019. E isso se deduz de uma coisa singela: não se pergunta se o réu deve ser condenado. Disso deflui a pergunta: o recurso previsto na letra “d” do inciso III, do artigo 593 é também um recurso que pode ser manejado pela acusação? Como aferir a contrariedade à prova dos autos se os jurados podem absolver o acusado sem necessidade de dizer por quê? E não esqueçamos o voto do ministro Celso de Mello sobre o tema.
d) No fundo, o que quero dizer aqui é simples: um Estado (Democrático) de Direito exige coerência. E precisamos ter coerência com nossas próprias teses. Simples assim. E complexo.
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Numa palavra:
(A) Quero também lançar minha provocação epistemológica à comunidade jurídica. Estou escrevendo livro sobre o assunto, mas já lanço aqui o problema.
(B) Será possível que insistiremos na surrada tese de que “a livre apreciação (ou livre convencimento) veio para superar a prova tarifada”… Assim, na maioria das vezes em citações repetidas?
(C) Ora, é verdadeiro dizer, no seu contexto, no seu tempo, que o livre convencimento veio para superar um paradigma de provas tarifadas no sistema romano, do direito canônico etc. Mas é verdadeiro de certo modo. E só é verdadeiro no contexto e com as devidas explicações. Que não vejo serem feitas.
Haverá muitas revelações no livro.
Fonte: Conjur