Legitimidade da Defensoria para execução individual de título coletivo em favor de vulneráveis etários

Passados quase dez anos da decisão proferida pelo Supremo Tribunal Federal (ADI 3.943), reconhecendo a constitucionalidade da legitimidade da Defensoria Pública para a tutela coletiva, constata-se que a instituição modificou sensivelmente seu perfil de atuação, não mais restrito à representação de interesses individuais, mas extraordinariamente legitimada para defesa dos interesses de vulneráveis.

Dentre os diversos eixos de vulnerabilidade tradicionalmente alvos da atuação institucional (crianças, adolescentes, vítimas de violência doméstica, pessoas com deficiência), a Defensoria Pública vem assumindo um protagonismo na defesa de interesses das pessoas idosas.

Com certa frequência, ações coletivas são ajuizadas contra os entes públicos de modo a assegurar a política de unidades de acolhimento, com pretensão de implantação de instituições de longa permanência, centros dia, centros de acolhida especial e outros equipamentos sociais para pessoas idosas.

Em muitos casos, após a formação do título executivo coletivo, torna-se dificultosa a inclusão das pessoas idosas nesses equipamentos, visto que, não raras as vezes, temos pessoas que possuem problemas de saúde e nem sempre reúnem forças e aptidão para gerir a própria vida sem o apoio de terceiros.

Nem sempre essas pessoas idosas contam com apoio do seio familiar, sendo a institucionalização o último recurso disponível. Isso exige um olhar diferenciado, levando-se em conta as normas de caráter protetivo estampadas na Constituição da República e no Estatuto da Pessoa Idosa (Lei nº 10.741/2003).

O Estatuto da Pessoa Idosa, que trouxe novos parâmetros para a interpretação e aplicação dos direitos dessa parcela de cidadãos, sempre com o objetivo de lhes garantir as mesmas oportunidades, desfrutadas por todos em igualdade de condições, reafirma uma série de princípios, tais como os da dignidade da pessoa humana, da solidariedade, da autonomia e da liberdade de fazer as próprias escolhas, da proteção à vida e à saúde, do acesso à educação, da não discriminação, da acessibilidade, da inclusão social etc.

Procuradora constitucional das pessoas vulneráveis

O reconhecimento desses direitos a essas pessoas idosas, face às desigualdades decorrentes da idade, repousa no princípio da isonomia constitucional, ou seja, assegurar-lhes as mesmas oportunidades.

A luta pela inclusão das pessoas idosas, buscando a efetividade desses direitos, requer, além do envolvimento da sociedade, a cobrança das autoridades para que assumam suas responsabilidades, tomando medidas concretas, objetivando dar sentido prático aos avanços conquistados, cumprindo, enfim, a legislação existente, muitas das vezes mediante provocação jurisdicional.

A previsão contida no artigo 43 da Lei nº 10.741/2003 impõe a necessária adoção de medidas de proteção em hipóteses em que os direitos das pessoas idosas forem ameaçados ou violados, seja pela própria família, pelo Estado ou pela sociedade.

Por essa razão, a Defensoria Pública tem exercido importante papel, buscando em nome próprio a tutela individual de direito de pessoa idosa, visando assegurar o acesso aos recursos necessários ao seu bom convívio social.

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Embora não esteja expressamente consolidada no Estatuto da Pessoa Idosa, essa legitimidade está intrinsecamente ligada à missão constitucional de prestar assistência jurídica aos necessitados e de tutela dos direitos dos vulneráveis, na forma do artigo 4º, I, VII, X e XI da LC nº 80/1994.

Já há alguns anos, a Defensoria Pública tem exercido o papel de “procuradora constitucional das pessoas vulneráveis”, tanto do ponto de vista individual quanto do ponto de vista coletivo. Inclusive, reconhece-se a consolidação de um “microssistema processual de proteção dos vulneráveis” (MPPV), com importante contribuição do Superior Tribunal de Justiça, enquanto intérprete nacional da legislação federal. Essa ideia de microssistema processual protetivo é recente [1], mas já alcança o STJ desde 2023 – embora o CPC/2015 somente mencione a vulnerabilidade uma única vez (artigo 190, parágrafo único), ao contrário das numerosas referências na legislação da Argentina.

Para a compreensão desse microssistema, torna-se necessária a presença de, ao menos, três requisitos: (a) constitucionalização do processo, mirando-se o procedimento como desdobramento do direito de ação e à tutela efetiva de direitos, especialmente quanto aos sujeitos protegidos constitucionalmente; (b) circularidade dos planos (do direito material e processual), ampliando-se a proteção e os instrumentos processuais à sua disposição; (c) teoria das vulnerabilidades processuais, útil à compreensão do fenômeno, a qual foi inaugurada mais intensamente por Fernanda Tartuce.

Se já é trágico notar que, em alguns centros de decisão jurídica, o CPC/2015 ainda não “aportou”, mais grave é perceber o esquecimento de uma Lei de 1994 (a Lei Orgânica da Defensoria Pública – LC nº 80/1994). E tudo pode se agravar ainda mais quando a “conversa” entre tais instrumentos legislativos é necessária, como no caso da legitimação extraordinária da Defensoria Pública em hipóteses de proteção individual das pessoas vulneráveis.

Desse modo, a teoria do diálogo das fontes deve incidir nos debates sobre a legitimidade extraordinária do “Estado Defensor” em casos individuais – como também já incidiu, no STJ (AgInt 1.220.572), para confirmar a legitimidade coletiva da Defensoria Pública em prol de coletividade de pessoas idosas, apesar da ausência de menção expressa no Estatuto respectivo.

Assim sendo, o Estatuto da Pessoa Idosa (Lei nº 10.741/2006, artigo 81) e a Constituição da República (artigo 129, § 1º) remetem à convivência entre as legitimidades concorrentes para “ações civis”. Ademais, até mesmo a Lei nº 11.340/2006 (Lei Maria da Penha, artigo 13) abre caminho ao diálogo das fontes “protetivas” – mormente com os Estatutos da Pessoa Idosa e da Criança e do Adolescente.

Portanto, o microssistema processual das pessoas vulneráveis encontra uma ferramenta protetiva útil e constitucional na legitimação extraordinária da Defensoria Pública. Negá-la, porém, remeterá a um quadro inconstitucional de criação de obstáculos artificiais ao acesso à justiça para os cenários extremos da vida humana.

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Neste debate, não se pode permitir a invasão do “corporativismo” criando uma inconstitucional “exclusividade” na legitimidade extraordinária, a qual pode resultar em um maquiavélico “pingue-pongue” dos fragilizados entre instituições ou, por vezes, retardar o fim processual esperado, substituindo-o pelo óbito decorrente da espera enquanto perduram discussões sobre a “forma pela forma”. Portanto, deve-se garantir utilidade às ferramentas processuais existentes e, assim, facilitar o acesso à justiça dos mais fragilizados socialmente.

Obviamente, não se fala aqui por uma desnecessária generalização da legitimação extraordinária da Defensoria Pública para casos individuais. Até mesmo porque suas atuações devem ser emancipatórias, distintamente de uma indesejada substituição processual contraposta à vontade livre e declarada do substituído.

Assim sendo, a legitimação extraordinária defensorial deve ser pautada por método seletivodemocrático e racional, “salvando” direitos fundamentais, tais como a vida e a saúde. Um bom exemplo é o projeto da Defensoria Pública do Rio de Janeiro (DP-RJ) denominado “A saúde não pode esperar” – sobre tal projeto, Andrea Carius de Sá, Marilia Gonçalves Pimenta e Cleber Francisco Alves expuseram a utilidade da legitimação extraordinária da Defensoria Pública para resguardar vidas de pessoas em UTIs, quando sem representantes e sem a possibilidade de declarar sua vontade.

Nadar, nadar e morrer na praia

O mesmo raciocínio deve ser aplicado em casos de equipamentos sociais para instalação de instituições de longa permanência para idosos e congêneres. Até porque, ainda valendo-se do exemplo do estado do Rio de Janeiro, a Fazenda Pública tem apresentado oposição a atuação institucional alegando que a instituição: “ao peticionar em nome próprio buscando a tutela de direito individual da idosa, extrapola suas atribuições institucionais e viola princípios basilares do ordenamento jurídico processual. É fundamental compreender que a legitimidade da Defensoria Pública para atuar em juízo está intrinsecamente ligada à sua missão constitucional de prestar assistência jurídica aos necessitados. No caso em tela, observa-se uma distorção desta prerrogativa. A Defensoria não está meramente representando os interesses de uma assistida, mas sim se colocando como parte autora em um procedimento que visa obter um benefício individual específico”.

Ou seja, para a Fazenda Pública talvez seja mais interessante contrariar o “princípio da primazia de mérito” promovendo extinção formal processos (cognitivos ou executivos) e, por via de consequência, expor pessoas vulneráveis (muitas vezes muito adoentadas) à tramitação processual – buscando, assim, manipular o Poder Judiciário à criação de obstáculos de acesso à justiça ou, quem sabe, apostar na “perda do objeto” decorrente da morosidade — pois pessoas idosas ou enfermas não podem esperar para sempre…

Por outro lado, mas ainda sobre a legitimação extraordinária da Defensoria Pública no caso analisado, ao admiti-la na fase de conhecimento coletiva e não estendê-la à fase de execução, gera-se, à pessoa enferma e idosa, a sensação um trágico “nadar, nadar e morrer na praia” — algo indesejado à Constituição fundada na dignidade humana (artigo 1º, III).

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Como pressuposto à compreensão da legitimação extraordinária do “Estado Defensor” é necessário aceitar a concorrência de legitimidade com o Ministério Público (Constituição, artigo 129, § 1º), a qual decorre da missão de “custos iuris” diante da indisponibilidade dos direitos envolvidos.

Com efeito, o CPC/2015 (artigo 18) ampliou a denominada legitimação extraordinária para extraí-la de toda ordem jurídica — inclusive da própria Constituição. Nesse ponto, o conceito constitucional amplo de necessitado (artigo 134) — vide STF (ADI nº 3.943) e STJ (EREsp nº 1.192.577) —, e o vínculo expresso da Defensoria Pública com as crianças, os adolescentes, os idosos, as pessoas com deficiência, as mulheres em situação de violência doméstica e com outros grupos vulneráveis merecedores de proteção estatal (artigo 4º, XI da LC nº 80/1994) reforçam a legitimação extraordinária da Defensoria Pública.

Assim, no contexto do CPC/2015 é notória ampliação da legitimação extraordinária como decorrência não somente da “lei” como também do “ordenamento jurídico” e, obviamente, isso alcança a Defensoria Pública.

Há um consenso de que a Defensoria Pública deve exercer tal função muito seletivamente para não ser, logo ela, instrumento de autoritarismo e paternalismo desnecessário com os mais vulneráveis. Em outras palavras, a Defensoria Pública deve exercer tal legitimidade de forma responsável. Trata-se de uma legitimidade social exercida democraticamente à luz da ordem jurídica.

Com efeito, a legitimação extraordinária que salva (a vida e saúde de) pessoas vulnerabilizadas tem raízes históricas (vide a origem brasileira da Defensoria Pública como órgão da Procuradoria de Justiça do Rio de Janeiro nas décadas de 1940/1950) e sementes solidaristas, a partir de pesquisas institucionais com mais de duas décadas.

Portanto, a legitimação extraordinária e protetiva da Defensoria Pública é decorrência óbvia e lógica da Constituição (artigo 134), do CPC/2015 (artigo 18) e da LC nº 80/1994 (artigo 4º, XI). E, nesse cenário, os estatutos protetivos têm especial relevância, como é o caso do Estatuto da Pessoa Idosa, pois mandam o recado normativo: É preciso proteger e facilitar o acesso à justiça dos mais frágeis da sociedade brasileira e, para tanto, a legitimidade defensorial é mais uma ferramenta aberta, útil e possível na ordem jurídica.


[1] Para um pouco mais sobre o tema: ZANETI Jr., Hermes. CASAS MAIA, Maurilio. Microssistema Processual de Proteção Processual dos Vulneráveis: as lentes do Ministério Público e da Defensoria Pública. São Paulo: Tirant Lo Blanch, 2025.

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