Liberdade religiosa x proteção dos animais não humanos: debate na Corte Europeia de Direitos Humanos

A liberdade religiosa, como direito humano e fundamental altamente sensível e fundado na dignidade da pessoa humana, tem sido, de há muito, o centro e mesmo o pivô de importantes debates nos mais diversos foros, ocupando lugar permanente na agenda política, social, cultural, jurídica e mesmo econômica em escala global.

Dadas as constantes tensões envolvidas no embate entre culturas e diferentes práticas religiosas, mas também entre o exercício da liberdade religiosa e outros direitos humanos e fundamentais, ademais de outros bens jurídicos com estatura constitucional, como é o caso da proteção dos animais não humanos, trata-se de tema recorrentemente submetido ao crivo do Poder Judiciário, seja em nível nacional, seja no plano do direito internacional.

Como sabido, os casos que têm sido levados à apreciação pelo Poder Judiciário são da mais diversa natureza, envolvendo o uso de símbolos religiosos, discursos do ódio e os limites do proselitismo religioso, discriminação por orientação religiosa, feriados religiosos, sacrifício de animais para fins religiosos, objeção de consciência, dentre tantos outros.

Na coluna de hoje, o foco serão decisões que envolvem a discussão em torno do sacrifício de animais para fins de rituais de matriz religiosa, a começar por recente julgado da Corte Europeia de Direitos Humanos, de 13/2/2024, em ação proposta por treze cidadãos e sete organizações não-governamentais islâmicas e judaicas belgas impugnando decretos aprovados pelas regiões da Bélgica em 2017 e que proibiram o abatimento de animais para consumo da carne sem prévio atordoamento, alegando que tal medida estaria violando suas liberdades de pensamento, consciência e religião, ademais de invocarem estarem sendo injustificadamente discriminados em virtude de sua orientação religiosa.

Rituais

Apenas para recordar, no caso das religiões islâmica e judaica, o sacrifício dos animais para consumo da carne obedece determinados rituais, respectivamente conhecidos como métodos halal kosher, de acordo com os quais o abate é feito sem prévia sedação, mediante um corte no pescoço e deixando os animais sangrarem até a morte.

Para a Corte Europeia de Direitos Humanos, nesta recente decisão que parece significar clara inflexão no tratamento geral que vinha sendo dispensado ao tema, a restrição das liberdades [invocada e impugnada pelos autores da demanda] é legítima de acordo com os parâmetros da Convenção Europeia de Direitos Humanos, pelo fato de que se trata de intervenção proporcional, dado que o objetivo da medida é o de proteger os animais e assegurar o seu bem-estar, o qual, por sua vez, constitui exigência da moralidade pública e da própria dignidade humana, porquanto tais concepções têm caráter evolutivo e dizem respeito não apenas às relações interpessoais, mas também guardam ligação com o modo pelo qual os seres humanos convivem com os animais.

Corte Europeia de Direitos Humanos

Outro argumento esgrimido pela Corte, foi o de que as exigências da proporcionalidade foram observadas pelo fato de que os decretos belgas, embora tenham proibido o abate sem prévio atordoamento, deixaram em aberto alternativa viável, designadamente, ao permitirem o atordoamento reversível para o abate ritualístico, movendo-se, de tal sorte, no âmbito da margem de apreciação nacional que lhes era assegurada.

Além disso, ainda de acordo com a Corte, em que pese seja mais difícil ter acesso à carne halal ou kosher com a proibição estabelecida, não se trata de algo impossível, ainda mais que foi autorizada a importação de carne abatida de acordo com os rituais referidos de Estados ou regiões onde a prática é permitida.

Alemanha

Tal julgamento, por sua vez, destoa de decisão mais antiga e igualmente polêmica do Tribunal Constitucional Federal da Alemanha, quando este, em 15/1/2002, examinou situação envolvendo o abate de animais para consumo mediante observância de rituais religiosos.

Na hipótese, tratava-se de açougueiro turco, adepto do ramo sunita do islamismo, que teve o seu estabelecimento interditado pela autoridade administrativa por estar abatendo animais para consumo sem a prévia sedação (aturdimento), tal como exigido pela legislação de proteção da natureza.

A lei alemã exige a prévia sedação do animal, mas abre exceções, designadamente no caso de garantia da saúde pública e quando exigido por razões ligadas a rituais religiosos.

No caso concreto apreciado, em sede de relação constitucional, o açougueiro alegou, além da quebra do princípio da igualdade (já que a prática seria tolerada quando levada a efeito em estabelecimentos judaicos), a violação de sua liberdade religiosa e de sua liberdade de profissão, porquanto o abate seria exercido obedecendo estritamente ritual consagrado no âmbito do islamismo, mas também pelo fato de que a proibição do abate de acordo com tal ritual afetaria de modo desproporcional o negócio do reclamante, pois sua clientela era formada justamente por integrantes de comunidade religiosa que somente pode ingerir carne quando obtida de acordo com os ditames da religião.

O Tribunal Constitucional Federal alemão acabou reconhecendo a tese do reclamante, de modo a incluir o sacrifício dos animais na esfera da exceção prevista na legislação infraconstitucional, dando prevalência à liberdade religiosa, muito embora por ocasião da decisão (e é relevante que se o refira!) a proteção da fauna ainda não tivesse sido formalmente incorporada ao texto da Lei Fundamental alemã.

De todo modo, o Tribunal alemão não afastou a possibilidade de medidas de fiscalização do abate, da perícia na degola e mesmo da clientela, de modo a preservar ao máximo o dever de proteção dos animais.

Tribunal da UE

Por outro lado, no âmbito do Tribunal de Justiça da União Europeia, decisões relativamente recentes, levando em conta a discriminação (ao menos indireta) que acaba afetando negativamente as minorias religiosas referidas, indicavam aos Estados a necessidade de admitir a exceção do abate religiosamente motivado e parecem acenar para uma diretriz de acomodação mais razoável, como explica o eminente catedrático de Direito Constitucional da Universidade de Granada e catedrático Jean Monnet de Direito Constitucional Europeu José María Porras Ramírez:

“Así, en relación al sacrificio de animales realizado por algunas comunidades religiosas, conforme a prácticas rituales establecidas, el Derecho de la Unión, en su Reglamento 1099/2009, que trata de garantizar, con carácter general, que la muerte de los animales se produzca sin dolor, sufrimiento o angustia, contempla una excepción a la obligación impuesta de aturdimiento previo a la muerte del animal, basada en motivos religiosos, si bien exigiendo que el sacrificio se realice, cuando menos, en un matadero autorizado” (STJUE de 6 de julio de 2018, C-426/16, Asunto Liga van Moskeeën en Islamitische Organisaties Provincie Antwerpen VZW y otros contra Vlaamst Gewest).
Posteriormente, el TJUE ha insistido en que los Estados no pueden rechazar la excepción contenida en el Reglamento, que permite el sacrificio ritual sin aturdimiento previo, pues ello supondría actuar en contra del Derecho de la Unión, sensible, en este caso, con los derechos de las minorias (STJUE de 17 de diciembre de 2020, C-336/19, Asunto Central Israëlitisch Consistorie van België y otros). No obstante, también se determinó, polémicamente, que la carne procedente de animales que hayan sido objeto de un sacrificio ritual, realizado sin aturdimiento previo, tal y como exige, con carácter general, la legislación de la Unión, no podrá llevar la etiqueta ecológica, a pesar de ser aquélla una práctica excepcionalmente permitida al amparo de la libertad religiosa (STJUE de 26 de febrero de 2019, C-497/17, Asunto OABA v. Ministerio de Agricultura y Alimentación de Francia)” [1]

CEDH acabou, sem contudo mencionar diretamente, reconhecendo aquilo que se tem designado como uma dimensão ecológica da dignidade humana, tal como, aliás, já foi objeto de referência em decisões do STJ e do STF brasileiros.

STF

E por falar em STF, não é demais lembrar a decisão paradigmática no que tange ao sacrifício ritual de animais tomada em 2019, oportunidade em que a Corte Suprema, por maioria, negou provimento ao Recurso Extraordinário nº 494.601/RS (28/3/2019), nos termos do voto do ministro Edson Fachin, Redator para o acórdão, vencidos, em parte, os Ministros Marco Aurélio (relator), Alexandre de Moraes e Gilmar Mendes, que também admitiam a constitucionalidade da lei, dando-lhe interpretação conforme. Na ocasião, por maioria, fixou-se a seguinte tese:

É constitucional a lei de proteção animal que, a fim de resguardar a liberdade religiosa, permite o sacrifício ritual de animais em cultos de religiões de matriz africana”, vencido o ministro Marco Aurélio, que assentava a constitucionalidade do sacrifício de animais em ritos religiosos de qualquer natureza, vedada a prática de maus-tratos no ritual e condicionado o abate ao consumo da carne.

Sendo certo que há regra constitucional explícita que proíbe a crueldade (e tipificada a conduta de maus-tratos no artigo 32 da Lei nº 9.605/98, inclusive atualizado pela Lei nº 14.064/2020), de fato a vedação não deixa de ser redundante — é dizer, para ficar muito claro, o sacrifício ritual assegurado não pode configurar maus-tratos/crueldade contra os animais; ainda, a destinação em si da carne obtida é fato posterior que depende de outras variáveis (até mesmo qual o animal sacrificado, que eventualmente poderia não ser próprio para consumo, sendo evidente, também, que há uma reserva implícita de que não poderia recair sobre espécie em risco de extinção, como parece comezinho que eventuais considerações sanitárias quanto aos despojos podem ser legítimas) e não faz parte essencial da liberdade de culto que prevaleceu.

O desafio, que permanece — até recrudesce em nível europeu, como visto —, é harmonizar a dimensão ecológica da dignidade humana, numa perspectiva intercultural inclusiva e progressiva, com a promoção da liberdade religiosa e o combate à intolerância (como orienta, no âmbito do Poder Judiciário brasileiro, Resolução CNJ Nº 440, de 7/1/2022), um cenário no qual a tutela das minorias sempre é uma questão frontal e um campo no qual os fundamentalismos estão sempre à espreita.

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[1] – PORRAS RAMÍREZ, José María. Las minorías en la Unión Europea: la tensión entre la demanda de reconocimiento y la preservación de la identidad nacional. Revista Brasileira de Direito Constitucional – RBDC Vol. 24, n. 1 (jan./jun. 2024), pp. 1-27. São Paulo: ESDC, 2024. ISSN: 1983-2303 (eletrônica). Disponível em: http://esdc.com.br/seer/index.php/rbdc/article/view/357.

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