O grande litigante da Justiça brasileira

Com quase 4,5 milhões de processos em tramitação, o Instituto Nacional do Seguro Social, o mal-amado INSS, é o maior litigante da Justiça brasileira. Melhor dizendo, é o ente mais demandado na Justiça brasileira, já que em 99% das causas em que está envolvido aparece no polo passivo. Se o INSS joga na defesa perante os tribunais, quem joga no ataque é o Fisco, o maior litigante no polo ativo, com cerca de 2,3 milhões de ações propostas em 2024.

Em 86% dos casos envolvendo a Previdência, os processos correm na Justiça Federal. A 1ª Região, que atende a estados do Centro-Oeste, Norte, e Nordeste mais o Distrito Federal, respondeu por 39% da demanda, seguida pela 5ª Região, que também atende a estados do Nordeste (19%). As demandas à Justiça questionam decisões do INSS sobre aposentadorias (30% dos casos), auxílio por incapacidade laboral (25%), benefícios assistenciais (15%), salário-maternidade (10%) e pensão por morte (5%). Outros 16% dos processos tratam de questões administrativas relacionadas à prestação destes benefícios.

A escalada de novas ações na Justiça foi progressiva. Em 2020, chegaram 1,8 milhão de demandas contra o INSS. Esse número já ultrapassava a casa dos 3,4 milhões em 2024 – aumento de 88,3% em quatro anos, de acordo com dados do Conselho Nacional de Justiça.

Por sua função social e o seu tamanho, faz sentido que a autarquia responda a uma montanha de processos: são mais de 40 milhões de beneficiários ativos que receberam R$ 877 bilhões em 2024, entre benefícios previdenciários (aqueles pagos aos segurados que contribuíram para fazer jus ao benefício) e benefícios assistenciais (concedidos àqueles em situação de vulnerabilidade social que não contribuíram com o INSS). E mais cerca de 60 milhões de contribuintes da Previdência Social, que aportaram em contribuições mais de R$ 670 bilhões em 2024.

Um bom motivo para tanta litigância está na legislação, em constante processo de mutação, quase sempre para complicar. Desde 1998, já ocorreram três reformas da previdência – uma no governo Fernando Henrique Cardoso, outra no Lula-1 e a terceira com Bolsonaro. E mais duas minirreformas, com Dilma e Temer. A primeira delas rende processos na Justiça até hoje, com a chamada revisão da vida toda.

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E tem outras complicações. Uma poderia ser mal resumida numa palavra: perícia. Os milhões de pedidos de auxílio, como auxílio-doença ou auxílio-acidente, dependem de provas e de comprovação pericial. E o setor de perícias do INSS, além de ser responsável pelas imensas filas de atendimento, também produz controvérsias e contestações que, em boa parte, vão parar na Justiça.

Outra complicação é a corrupção. Com imensa ramificação, tanto de atividades como de agentes e clientes, a Previdência está longe de ter um controle qualificado sobre suas contas e os benefícios que distribui. Os escândalos e os golpes contra o instituto ou contra os segurados são recorrentes.

O último deles foi o de associações de aposentados fantasmas que cobravam contribuição de segurados sem autorização. O montante capturado a conta-gotas das aposentadorias e pensões de milhões de beneficiários passou dos R$ 6 bilhões. Para evitar que mais de nove milhões de ações sobrecarregassem ainda mais o Judiciário, um acordo interinstitucional foi homologado em julho de 2025 pelo Supremo Tribunal Federal para viabilizar, de forma extrajudicial, o ressarcimento dos aposentados e pensionistas afetados. A medida foi articulada por AGU, INSS, DPU, MPF e OAB e previu devolução integral dos valores, com atualização monetária. O cronograma de pagamento foi operacionalizado fora do processo judicial, com adesão voluntária dos beneficiários.

Em 2024, o INSS recebeu mais de 15 milhões de pedidos de benefícios, entre previdenciários e assistenciais. Desse total, o instituto concedeu sete milhões e indeferiu oito milhões. O beneficiário que teve o pedido recusado pode recorrer administrativamente para que o INSS reveja a decisão. Mas, se não tiver o pedido atendido, pode ir buscar seu direito na Justiça. Em 2024, cerca de quatro milhões das concessões de benefícios ocorreram por decisão administrativa do INSS e um milhão por decisão judicial.

Anuário da Justiça ouviu os atores envolvidos nesse sistema para entender as razões da litigiosidade. Dadas as circunstâncias, o presidente do INSS, Gilberto Waller Júnior, não chega a se surpreender com a elevada judicialização. E diz que o instituto está tomando providências para enfrentar o desafio.

Segundo ele, o INSS tem dialogado com as instituições do sistema de Justiça com vistas a resolver parte dos litígios de forma administrativa. “Se uma tese já se pacificou, estamos verificando o que podemos fazer internamente para absorvê-la e evitar novas demandas judiciais”, afirmou.

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A dificuldade de internalizar precedentes qualificados é apontada como um entrave. Segundo a juíza auxiliar da Presidência do Conselho Nacional de Justiça, Lívia Peres, esse é um ponto sensível: “Nem sempre há a incorporação das teses na via administrativa”, pontuou. Ela diz que, desde 2018, o CNJ vem desenvolvendo projetos para melhor gerenciar os processos do INSS. Entre as iniciativas desenvolvidas está o PrevJud.

O sistema permite o envio automatizado de ordens judiciais ao INSS e a devolução estruturada de informações da autarquia. Com a automação, a expectativa é que o prazo de cumprimento das decisões seja reduzido de 20 dias para apenas uma hora.

Outra frente é a padronização dos critérios técnicos para a concessão de benefícios assistenciais a pessoas com deficiência. A proposta de criação de um instrumento único de avaliação biopsicossocial foi elaborada por um grupo de trabalho e aguarda deliberação final pelo colegiado do CNJ.

A natureza alimentar dos benefícios e o perfil vulnerável do público atendido justificam a atenção do CNJ ao tema. “Cada processo tem uma pessoa atrás de um benefício. Por isso, temos que ter cautela, porque uma negativa pode prejudicar a subsistência dela”, destacou Lívia Peres.

O CNJ também aposta na tecnologia para dar conta da demanda judicial por benefícios previdenciários decorrentes de incapacidade. Nesse sentido, a Resolução 595/2024 tornou obrigatório o uso do Sistema de Perícias Judiciais (Sisperjud) pelos tribunais. Destinado a peritos médicos judiciais, padroniza o formato das perícias.

A Advocacia-Geral da União também está na área. Diretora da Procuradoria Seccional Federal de Contencioso Previdenciário, Kedma Iara Ferreira explica que mais de 80% das ações judiciais acompanhadas pela AGU envolvem o INSS. A procuradora relata o caso do programa Pró-estratégia, que permitiu à AGU analisar, entre 2023 e 2025, cerca de 32 mil processos no Superior Tribunal de Justiça. Com isso, desistiu de recorrer em 12 mil casos, que tinham jurisprudência pacificada. Outra iniciativa, o Desjudicializa Prev, criado em parceria com o CNJ, faz a seleção de temas previdenciários com jurisprudência consolidada para subsidiar a celebração de acordos, abstenções ou mesmo desistências recursais. Até maio de 2025, mais de dez mil processos haviam sido encerrados com base nesse modelo.

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Mais recentemente, a AGU lançou a plataforma Pacifica, voltada à autocomposição extrajudicial de litígios a partir do cruzamento de dados e normativos internos, evitando que o segurado acione a Justiça. Segundo informações do Painel INSS, do CNJ, um quarto dos processos envolvendo o INSS foi solucionado por meio da conciliação em 2024.

A AGU anunciou a criação da Coordenação de Prevenção de Litígios (CPL), com a missão de alinhar as práticas administrativas da autarquia com a atuação judicial da Procuradoria-Geral Federal. A coordenação vai atuar em três eixos: tratamento de focos de judicialização; aprimoramento da comunicação interinstitucional com INSS, PGF e Judiciário; e qualificação do processo administrativo com integração à defesa judicial. “A ideia é que as pessoas não precisem ir ao Judiciário porque demos uma resposta ágil para a demanda”, resume Kedma Iara Ferreira.

Na Defensoria Pública da União, o foco também está nas soluções extrajudiciais. A alta procura pelos serviços da instituição explica essa opção. De 2018 a 2025, o órgão fez quase quatro milhões de atendimentos na área previdenciária. Desse total, cerca de 245 mil viraram ações judiciais. “Benefícios de Prestação Continuada, os BPCs, são os principais atendimentos da DPU”, contou a defensora pública Patrícia Bettin Chaves, coordenadora da Câmara Previdenciária.

A DPU também tem buscado solucionar problemas estruturais a partir do diálogo. Um exemplo é o grupo interinstitucional integrado por Ministério Público Federal, Tribunal de Contas da União, Controladoria-Geral da União, INSS e AGU, que se reúne a cada dois meses para debater o atendimento à população na área previdenciária e assistencial.

A iniciativa tem permitido soluções sem judicializar, como o acordo que permitiu o uso de registro nacional migratório por estrangeiros como alternativa à biometria obrigatória e a gratuidade nas ligações feitas para o número 135. Outro avanço foi o acordo de cooperação assinado com o INSS que permite à DPU requerer benefícios para seus assistidos diretamente nos sistemas administrativos da autarquia.

O presidente do INSS, Gilberto Waller Júnior, reconhece que a digitalização ampla não resolveu os problemas de acesso à autarquia. “O INSS foi muito para o digital, mas isso não facilitou o atendimento ao nosso segurado, que tem um perfil diferente, que precisa de contato presencial”, disse. E prometeu investimentos para a reabertura de agências.

Fonte: Conjur