O princípio tributário da defesa do meio ambiente

Uma das grandes protagonistas da reforma tributária foi a defesa do meio ambiente. Embora esse tema tenha aparecido em diversos dispositivos, o foco deste texto será o princípio da defesa do meio ambiente incluído no § 3º do artigo 145 da Constituição pela Emenda Constitucional nº 132.

Esse § 3º traz, segundo vemos, dois grandes desafios interpretativos: determinar a ordem de precedência entre os princípios ali previstos explicitamente e os outros princípios constitucionais tributários implícitos e, uma vez que simplicidade, cooperação, transparência, justiça tributária e defesa do meio ambiente já eram princípios constitucionais implícitos, estabelecer se a sua positivação expressa trouxe alguma modificação em sua eficácia. Vejamos.

Relação entre princípios explícitos e implícitos

 A questionável decisão do Poder Legislativo de incluir o § 3º no artigo 145 da CF traz a incômoda questão sobre a relação destes princípios com outros que seguem implícitos no texto constitucional.

O caso mais evidente é o do princípio da segurança jurídica, certamente um dos pilares do Sistema Tributário Nacional, que segue sendo inferido da CF pela via interpretativa, sem ter, contudo, expressão verbal explícita.

De outra parte, há que se lidar com a própria redação do § 3º do artigo 145, que estabelece que o Sistema Tributário Nacional deve observar os princípios ali apontados, numa redação mais típica das regras do que dos princípios.

A grande questão que se coloca é: este dispositivo, ao listar os princípios que devem ser observados pelo Sistema Tributário Nacional, criou uma ordem de precedência entre princípios? Por exemplo, na hipótese de colisão, é possível sustentar que a justiça tributária tem um peso maior do que a segurança jurídica?

Tendo refletido bastante sobre o tema, parece-me que sim, que este dispositivo estabelece justamente uma ordem de precedência entre princípios de modo que, diante de uma situação concreta em que seja necessária uma ponderação entre justiça tributária e segurança jurídica, por exemplo, deve ser dada prevalência à primeira.

Naturalmente, isso não significa a derrotabilidade de regras constitucionais de segurança, como a legalidade, a anterioridade e a irretroatividade, diante de argumentos de justiça fiscal. Esses direitos fundamentais do contribuinte, estando previstos na Constituição Federal, não podem ser derrogados pelo legislador infraconstitucional e o julgador com base em argumentos de justiça.

Contudo, na hipótese de uma colisão em um caso difícil no qual se faça necessária a ponderação entre valores, princípios e interesses constitucionais, cremos que o § 3º do artigo 145 deva ser interpretado como estabelecendo uma ordem de precedência.

Parece-nos que esta conclusão aplica-se com ainda mais força ao princípio da defesa do meio ambiente. Como veremos adiante, a CF já tinha um sistema de proteção do meio ambiente bastante sólido. Assim sendo, cremos que a explicação da inclusão deste princípio no § 3º do artigo 145 só se justifica pela pretensão de atribuir-lhe uma normatividade distinta da que possuía até a entrada em vigor da EC 132. É o que passamos a analisar.

Defesa do meio ambiente antes e depois da EC 132

Como apontamos, a CF já era pródiga em dispositivos sobre a proteção do meio ambiente, tendo como pilar principal o artigo 225, segundo o qual “todos têm direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, bem de uso comum do povo e essencial à sadia qualidade de vida, impondo-se ao Poder Público e à coletividade o dever de defendê-lo e preservá-lo para as presentes e futuras gerações”.

A seu turno, o inciso VI do artigo 170 já previa a defesa do meio ambiente como princípio geral da ordem econômica, estabelecendo que “a ordem econômica, fundada na valorização do trabalho humano e na livre iniciativa, tem por fim assegurar a todos existência digna, conforme os ditames da justiça social, observados os seguintes princípios: […]” da “defesa do meio ambiente, inclusive mediante tratamento diferenciado conforme o impacto ambiental dos produtos e serviços e de seus processos de elaboração e prestação”.

A defesa do meio ambiente aparece em diversos outros dispositivos constitucionais, podendo-se citar, por exemplo, o artigo 5º, LXXIII (ação popular para anular ato lesivo ao meio ambiente), artigo 23, incisos VI e VII (competências comuns da União, estados e municípios para proteger o meio ambiente, combater a poluição e preservar florestas, a fauna e a flora), artigo 24, incisos VI, VII e VIII (competência concorrente para legislar sobre florestas, conservação da natureza, defesa do solo, proteção ao meio ambiente e controle da poluição), artigo 129, III (atribui ao Ministério Público a função de promover o inquérito civil e a ação civil pública para proteção do meio ambiente); artigo 174, § 3º (função do Estado no planejamento e controle ambiental das atividades garimpeiras), artigo 186, II (condiciona o cumprimento da função social da propriedade rural à utilização adequada dos recursos naturais e preservação do meio ambiente); artigo 200, VIII (atribui ao SUS a competência para colaborar na proteção do meio ambiente); artigo 216, V (inclui os conjuntos urbanos e sítios de valor paisagístico e ecológico no patrimônio cultural brasileiro).

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Fica claro, portanto, que a relevância da defesa do meio ambiente como valor e princípio constitucional não decorre da EC 132, pois está expressamente prevista em diversos dispositivos constitucionais.

Essa consagração da defesa do meio ambiente no texto constitucional anterior à EC 132 a tornou um elemento de discriminação relevante para fins tributários.

Com efeito, sabe-se que a questão central do princípio da isonomia está em se estabelecer critérios para separar discriminações constitucionalmente legítimas de diferenciações inconstitucionais. Já que as pessoas são diferentes, o papel da isonomia não está em igualar formalmente os desiguais, mas em se estabelecer os critérios de discriminação que são compatíveis com a CF.

Nesse sentido, a defesa do meio ambiente sempre foi um critério de diferenciação legítimo em matéria tributária. Por exemplo, a concessão de um benefício fiscal para uma atividade que contribua para um meio ambiente equilibrado já era compatível com o princípio da isonomia antes da EC 132.

Segundo vemos, e em linha com o que afirmamos acima, não nos parece razoável defender que a determinação, no § 3º do artigo 145, de que o Sistema Tributário Nacional observe a defesa do meio ambiente teria mera função simbólica, reforçando a relevância que o tema já tinha no texto constitucional anterior.

Dessa forma, a previsão explícita da defesa do meio ambiente como princípio vetor do Sistema Tributário Nacional lhe atribuiria uma prevalência em uma hipótese de colisão, reduzindo, ainda, o ônus argumentativo para o estabelecimento de discriminações tributárias com fundamento na defesa do meio ambiente. Esta seria, então, a função do § 3º do artigo 145 da CF, transformar a defesa do meio ambiente de um critério que poderia ser levado em conta pelo legislador tributário em um critério que deve ser considerado pelo legislador tributário.

Essa conclusão, no entanto, não resolve uma das principais colisões potenciais do princípio da defesa do meio ambiente, o seu conflito com o princípio da capacidade contributiva.

Colisão entre defesa do meio ambiente e capacidade contributiva

Um dos aspectos mais complexos da extrafiscalidade tributária é a potencial colisão de valores, princípios e interesses constitucionalmente relevantes com o princípio da capacidade contributiva. Com efeito, é comum que a utilização indutora dos tributos resulte na criação de benefícios fiscais para pessoas, físicas ou jurídicas, que teriam capacidade contribuitiva para pagar seus tributos como os demais contribuintes.

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Um exemplo claro desta situação temos na lei que rege o IPVA no Estado do Rio de Janeiro. Desde 1 de janeiro de 2016, a lei do IPVA fluminense estabelece alíquota de 1,5% para veículos híbridos (com ao menos um motor cuja fonte de energia seja elétrica) e de 0,5% para veículos com propulsão exclusivamente elétrica. Veja-se a redação dos incisos VI-A e VII  do artigo 10 da Lei nº 2.877/1997:

“Art. 10. A alíquota do imposto é de: […]
VI-A – 1,5% (um e meio por cento) para veículos que utilizem gás natural ou veículos híbridos que possuem mais de um motor de propulsão, usando cada um seu tipo de energia para funcionamento sendo que a fonte energética de um dos motores seja a energia elétrica;
(Inciso VI-A do art. 10 acrescentado pela Lei nº 7.068/2015 , vigente a partir de 02.10.2015, com efeitos a contar de 01.01.2016)
VII – 0,5% (meio por cento) para veículos que utilizem motor de propulsão especificado de fábrica para funcionar, exclusivamente, com energia elétrica;
(Inciso VII do art. 10 alterada pela Lei nº 7.068/2015 , vigente a partir de 02.10.2015, com efeitos a contar de 01.01.2016)”

Não pretendemos debater aqui se os veículos elétricos são realmente mais vantajosos para a defesa do meio ambiente do que os veículos a combustão, uma vez que não parece haver um plano, por exemplo, para o que será feito com todas essas baterias no longo prazo. Ou seja, veículos elétricos certamente são mais sustentáveis no seu uso, mas geram a necessidade de mineração dos insumos necessários para as baterias e impõem o debate sobre seu descarte.

Contudo, esta não é a questão que nos desafia. Imaginemos, por exemplo, um carro elétrico de uma montadora de veículos de luxo que custe em torno de R$ 1 milhão de reais. Sem dúvida estamos diante de um bem destinado ao topo da pirâmide de distribuição de renda no Brasil, que, segundo vemos, não requer gasto tributário para suportar suas decisões de consumo.

Uma isenção como a concedida pelo Estado do Rio de Janeiro, se está – e vamos assumir que esteja – fundamentada na defesa do meio ambiente, ao não estabelecer um teto para a sua aplicação, confronta diretamente com o princípio da capacidade contributiva, fazendo com que proprietários de carros de luxo paguem um IPVA mais baixo do que aqueles que têm carros substancialmente mais baratos.

Caso esse conflito fosse com outro princípio, segundo a premissa que estabelecemos acima, a questão poderia ser solucionada alegando-se uma precedência do princípio da defesa do meio ambiente. Entretanto, o grande desafio desta situação é que o artigo 145, § 3º, também destacou o princípio da justiça tributária como um princípio que deve ser observado pelo Sistema Tributário Nacional. E agora?

É possível sustentar que, em casos em que presente de forma inequívoca a defesa do meio ambiente como fundamento da regra, seria uma opção do legislador infraconstitucional eventualmente optar pela prevalência da defesa do meio ambiente sobre a capacidade contributiva, ou vice-versa. Contudo, a defesa do meio ambiente tem que efetivamente estar presente.

Pensemos por um instante sobre o caso do IPVA do Rio de Janeiro. Em termos estatísticos, carros de alto luxo compõem um percentual pequeno da frota de veículos nas ruas e estradas fluminenses. Consequentemente, mesmo que à primeira vista o argumento da defesa do meio ambiente possa ser utilizado para justificar uma redução do IPVA independentemente do valor do veículo, uma consideração da realidade que se quer afetar com a indução normativa indica que este benefício fiscal, ao beneficiar o topo da pirâmide de renda mesmo tendo um efeito ambiental insignificante, gera uma quebra do princípio da capacidade contributiva sem gerar um efeito positivo significativo para a defesa do meio ambiente.

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Nessa linha de ideias, a ponderação entre capacidade contributiva e defesa do meio ambiente deve considerar se, em concreto, uma eventual desoneração está criando um privilégio ao estabelecer um tratamento fiscal mais favorável sem que exista uma contrapartida na realização da defesa do meio ambiente. Dessa forma, segundo vemos, leis como esta do estado do Rio de Janeiro seriam inconstitucionais, não sendo a alegação de defesa do meio ambiente suficiente para derrotar a justiça tributária materializada na tributação segundo a capacidade contributiva.

Eficácia da defesa do meio ambiente no tempo

 Segundo sustentamos acima, a defesa do meio ambiente, tornada princípio do Sistema Tributário Nacional pela EC 132, tem uma eficácia distinta, no campo tributário, do princípio constitucional geral de defesa do meio ambiente que já existia no texto constitucional. Esta conclusão gera um outro aspecto a considerar: a eficácia do princípio da defesa do meio ambiente no tempo.

Com efeito, parece-nos que, salvo a tributação com base na capacidade contributiva, que pode derrotar a defesa do meio ambiente – juntamente com os outros princípios previstos no § 3º –, a CF agora atribui uma precedência da defesa do meio ambiente sobre outros valores, princípios e interesses constitucionais.

Por exemplo, imaginemos um benefício fiscal concedido com a finalidade extrafiscal de gerar de empregos, mas destinado a uma atividade econômica poluidora. Cremos haver fortes argumentos para sustentar que, sendo um princípio que deve ser observado pelo Sistema Tributário Nacional, a precedência da defesa do meio ambiente prevaleceria sobre finalidades extrafiscais de ordem econômica.

Esta conclusão impõe estabelecer se a eficácia do princípio da defesa do meio ambiente irradia seus efeitos apenas após a entrada em vigor da EC 132, ou se tal princípio será aplicado de forma retroativa. Este debate se torna ainda mais complexo uma vez que, conforme destacamos, é inquestionável que já havia um princípio constitucional geral da defesa do meio ambiente antes da EC 132.

Cremos que a solução para esta questão deve preservar o princípio da defesa do meio ambiente que existia antes da EC 132, reconhecendo, por outro lado, que a sua prevalência e precedência sobre outros valores, princípios e interesses somente se instaurou após a EC 132. Dessa forma, nossa posição é no sentido de que, naquilo que o princípio tributário da defesa do meio ambiente difere do princípio constitucional geral da defesa do meio ambiente, sua eficácia deve se dar a partir de 21 de dezembro de 2023.

Conclusão

O objetivo deste texto foi mais provocar algumas reflexões sobre o princípio da defesa do meio ambiente do que oferecer conclusões definitivas sobre o tema. De modo geral, ainda temos muito o que refletir sobre esses “novos” princípios tributários, seus efeitos e a sua interação com outros princípios implícitos no texto constitucional. Por mais que todos os princípios listados no artigo 145, § 3º, da CF já estivessem previstos, implícita ou explicitamente em dispositivos constitucionais, cremos que a sua previsão expressa no capítulo do Sistema Tributário Nacional não parece ter sido meramente simbólica e nos provoca a determinar o que mudou com a entrada em vigor da EC 132.

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