O comércio internacional está vivenciando um período de muitas mudanças, incertezas e grandes desafios. O período pós-Segunda Guerra Mundial, dos acordos de Bretton Woods e da assinatura do Gatt, em 1947, pelos 23 países signatários, foi marcado pela busca dos países por promoverem regras para o comércio internacional, estimulando-o. A ideia predominante era de liberalismo, neutralidade e livre concorrência, que se fizeram presentes nos princípios regentes do Gatt, como o da não discriminação, por sua vez estabelecido nas cláusulas da nação mais favorecida e do tratamento nacional [1]. Esse compromisso inicial foi reforçado ao longo das décadas que se seguiram, com maior ou menor intensidade, culminando com a criação da Organização Mundial do Comércio (OMC), em 1995.
Nesse período e nos anos que se seguiram, o mundo assistiu ao crescimento do fluxo global de comércio, do liberalismo, do multilateralismo e do deslocamento das unidades de produção para locais onde os custos fossem menores, com alocação de unidades de grandes corporações internacionais em países asiáticos e do leste europeu, permitindo o desmembramento da fabricação dos produtos e a formação das cadeias globais de valor. Cada etapa de um produto final passou a ser produzida em uma jurisdição distinta, sendo reunidas para montagem e exportação. Esse fenômeno ficou conhecido como offshoring, seguindo a lógica de produção e distribuição do just in time. Os anos que se seguiram à criação da OMC foram marcados pela globalização e o crescimento vertiginoso do comércio global, promovendo, entre outros efeitos, a retirada de milhares de pessoas da linha da pobreza [2].
Não obstante, uma série de acontecimentos tem impactado esse modelo e o cenário global de comércio, promovendo significativas alterações. A Covid-19 e a suspensão do fluxo global de pessoas e mercadorias foram exemplos disso. Esse evento provocou a reflexão das empresas multinacionais e dos governos quanto à necessidade de terem suas fontes de produção mais próximas. Destacou também que, em situações de ameaça e necessidade, cada país defende o seu interesse, e que a dependência de produção de um só país eleva o nível de risco e subordinação, o que ameaça a soberania e autonomia das nações. Surgem os conceitos do nearshoring, reshoring e do just in case, como reação à realidade vivenciada na pandemia. A guerra da Rússia com a Ucrânia e os conflitos no Oriente Médio são outros eventos que provocam grandes inseguranças e incertezas, instabilidade e divisão, pressionando a redefinição do comércio internacional.
Nos EUA, desde o período do primeiro governo de Trump, o discurso protecionista defendido sob o slogan “American First” levou à adoção de medidas contrárias aos princípios da OMC, outrora defendidos por esse mesmo país. Nessa linha, os EUA, desde 2017, vêm bloqueando a nomeação de juízes para o Órgão de Apelação da OMC, o que culminou com a paralisação do órgão em dezembro de 2019. A situação retirou da OMC a capacidade de analisar e julgar, em grau de recurso, conflitos comerciais entre os países membros, consequentemente, de aplicar sanções, reduzindo seu poder e representatividade no comércio global. O retorno de Trump à Casa Branca culminou em medidas contrárias e de ruptura com as regras da OMC, deflagrando verdadeira guerra tarifária em todo o mundo. As medidas de 2 de abril e de 1º de agosto marcaram flagrante desrespeito dos EUA com o sistema multilateral de comércio e o confronto com os princípios e regras de comércio estabelecidas no âmbito da OMC. Por mais que se tente, de certa forma, envernizar tais medidas de alguma sustentação de legitimidade, na exceção ao princípio de não discriminação por segurança nacional, elas carecem de base legal para se sustentarem.
Tudo isso impacta os custos de produção pelo mundo, especialmente em países como o Brasil, que tiveram definidas contra si pelos EUA, tarifas de 50% para 35,9% dos produtos de suas exportações para importadores americanos [3]. O Brasil adotou medidas para mitigar os enormes impactos [4]. O Plano Brasil Soberano [5] prevê, entre outras medidas:
- prorrogação de prazos do drawback suspensão, inclusive do drawback intermediário (por mais um ano), medida essa aplicada também ao Recof, através da IN RFB no 2276/2025;
- diferimento do vencimento dos tributos federais (por dois meses);
- prioridade na restituição e ressarcimento de tributos (PER/DCOMP);
- novo Reintegra: 3,1% (grandes e médias empresas); 6% (micro e pequenas empresas).
Em meio a tudo isso, as empresas e os países que se veem prejudicados pelos efeitos da guerra tarifária foram compelidos a buscar soluções e alternativas, como identificar novos mercados, avaliar a possibilidade de mudarem a sede de sua planta produtiva para países não atingidos pelo tarifaço, utilizarem regimes aduaneiros especiais, como o depósito alfandegado certificado (DAC), que lhes dê prazo para a remessa física das mercadorias para os EUA, permitindo negociações e redirecionamentos para outros mercados.
Aduana e seus desafios
Nesse cenário, e a Aduana, como fica? Cada vez com mais funções e responsabilidades, e maior pressão para cumprir as normas internas nas fronteiras, como tem acontecido ao longo das décadas que se seguiram à criação da Conselho de Cooperação Aduaneira (CCA), em 1953. De um órgão responsável por cuidar principalmente da arrecadação de tributos, passou à função de grande guardião e protetor da sociedade, com um leque de temas expressivamente ampliado.
Nesse sentido, a Organização Mundial das Aduanas (OMA) e de resto as aduanas globais têm dois objetivos principais: (1) assegurar um ambiente favorável ao comércio legítimo, facilitando o fluxo de mercadorias, e (2) exercer o controle das operações, com foco no cumprimento das normas aduaneiras e na segurança da sociedade. À arrecadação dos tributos, somaram-se diversos outros temas para a fiscalização aduaneira se ocupar. Para citar alguns: a segurança contra o terrorismo, em face do tráfico, de drogas, de armas, de pessoas, as ameaças químicas, à saúde, ao meio ambiente, as novas demandas de controle de operações de empresas que poluem mais, ou menos, o controle de entradas de mercadorias cuja origem seja fruto de trabalho em condições escravas, controle de mercadorias que descumprem regras sanitárias e ameaçam a saúde da sociedade, que não seguem os padrões de qualidade, produtos falsificados, grandes ameaças no e-commerce cross-border, dado seu volume e riscos de fraude nas declarações de valores e pagamento de tributos. Diante de tudo isso, continuamente, as aduanas se veem desafiadas, a ampliar sua capacidade, reinventar-se e desenvolver mecanismos que lhe permitam cumprir sua missão.
Reforma aduaneira europeia
Para enfrentar esses desafios e se preparar para o futuro, a União Europeia publicou, em maio de 2023, normas para realizar uma reforma aduaneira, com visão de futuro, promovendo a sua preparação para atuar em 2040. Nesse pacote, os pilares são o estabelecimento de uma Autoridade Aduaneira da União Europeia para centralizar informações e dar suporte às autoridades aduaneiras de cada país membro; a criação de uma plataforma de dados aduaneiros da UE – Customs Data Hub – que permitirá, de um lado, a melhoria nos controles e, de outro, a simplificação dos procedimentos; um novo regime normativo para o e-commerce indicando as plataformas como importadores e devedores – deemed importers (importadores considerados), ampliando a capacidade de análise e gestão de risco dessas transações; criação da figura do Trust and Check Trader (TCT), que deverá conceder a aduana um amplo acesso aos seus sistemas e dados, em tempo real, tendo em contrapartida benefícios, como liberar suas importações no seu próprio estabelecimento, apurando si mesmo, os valores a recolher [6].
Em relação ao TCT, o reconhecimento será possível somente para importadores e exportadores, diversamente do que hoje permite o Operador Econômico Autorizado (OEA) vigente na União Europeia [7], na medida que são elegíveis também agentes de carga, despachantes aduaneiros, transportadores, depositários, terminais portuários e aeroportuários. Para ser reconhecido TCT, não basta ser AEO, há requisitos adicionais que deverão ser atendidos. Lado outro, os benefícios serão mais atrativos e palpáveis do que aqueles atualmente assegurados aos OEA, permitindo entrever um modelo mais avançado e atrativo. O OEA se manterá, para novos pedidos até 1/3/2032, valendo a certificação até 31/12/2037, quando passa a valer o TCT.
Nesse quadro de conformidades e segurança, de facilitação e controle, a figura de um operador que se aproxima da aduana e se posiciona como seu parceiro, que declara e promove ações para comprovar seu desejo de conformidade, de cumprimento espontâneo das normas e adoção de critérios de procedimentos que contribuem com a segurança nas cadeias globais de valor, tem se comprovado, desde a sua idealização, como essencial e indispensável. É preciso ter elementos objetivos para separar “o joio do trigo”. Nesse sentido, os programas operadores confiáveis têm que ser difundidos e propagados visando amplo reconhecimento de sua importância. Outrossim, é imprescindível que as administrações aduaneiras concedam os benefícios mais amplos e tangíveis possíveis a fim de se manter o estímulo e o resultado positivo na equação de investimentos/custos versus benefícios.
OEA, Brasil
No Brasil, segundo dados atualizados até 30/5/2025, publicados em 1/9/2025 [8], 683 CNPJs são certificados, sendo que cerca de 30% dos valores importados, seja em número de declarações registradas, ou valor CIF, estão sendo realizados por empresas OEA. Certamente o estoque de pedidos de certificação, sendo analisado, permitirá que esses volumes se ampliem. No entanto, para que se atinja o objetivo original do programa, de se ter 50% das declarações registradas por OEA, algumas medidas precisam avançar:
a) diferimento dos tributos na importação: está prevista no artigo 76, 3º, da LC 214/2025, a possibilidade de ocorrer, nos termos de regulamento, em relação ao IBS e à CBS. Também está previsto nos artigos 19 e 20 do PL 15/2024, para todos os tributos federais, podendo ser estendido ao AFRMM, à Taxa da Marinha Mercante e aos direitos antidumping. Essa medida deve ser implementada o quanto antes para todas as empresas OEA em relação a todos os tributos incidentes na importação, sejam federais ou estaduais;
b) ampliação do programa às tradings: notadamente com a migração das operações para o Portal Único e para a DUIMP, a ampliação da capacidade de gerenciar os riscos é notória e permitirá que essas empresas que desejem ser parceiras da RFB também estejam no rol daquelas elegíveis;
c) imediata inclusão do despachante aduaneiro: como elo presente em quase todas as declarações registradas no país, o despachante aduaneiro precisa ser inserido e poder demonstrar seu compromisso com a conformidade e a segurança, auxiliando a aduana no seu dever de gerenciar riscos de maneira inteligente e eficaz;
d) desembaraço no domicílio do importador: permitir que os operadores OEA nas modalidades segurança e conformidade possam receber suas cargas e transportá-las de imediato para seus estabelecimentos, e lá promoverem a sua liberação;
e) dispensa de garantia para entrega de mercadorias em caso de exigências no curso de um despacho de importação, separando o fluxo físico da carga, das questões discutidas em termos de aplicação de normas, exceto se o caso for de proibição daquela importação. Nesse sentido, destacam-se a norma 5.4 da CQR/OMA e o artigo 3.1 do AFC/OMC;
f) Priorização na compensação de créditos decorrentes de retificação e cancelamento de declarações, quando aplicável: priorização ou a definição de um prazo para a compensação de créditos decorrentes da retificação ou cancelamento de declarações;
g) autorregularização: possibilidade prevista no artigo 21 do PL 15/2024, de forma que o interveniente OEA seja comunicado quanto à identificação de alguma infração, permitindo-lhe realizar sua autodenúncia. Essa realidade afastaria a aplicação das penalidades de ofício impróprias a um interveniente que preza por boas práticas já avaliadas e convalidadas pela administração aduaneira. Se incorre em eventuais erros, são escusáveis. Seria o caso de lhe assegurar a regularização sem aplicação de nenhuma penalidade, ou multa de mora, tão somente exigindo-lhe a atualização do crédito, se devido.
Tais medidas, inclusive, ampliariam a capacidade competitiva das empresas brasileiras, notadamente daquelas OEA e exportadoras para os EUA, que precisam de todos os reforços possíveis nesse momento de grandes desafios. Essas alterações poderiam ser incluídas, ainda que de modo excepcional, para auxiliá-las nesse momento, em conjunto com as demais medidas já adotadas pelo Governo Federal.
Congresso
Sobre o tema Trust and Check Trader, na sexta-feira, dia 05/09, participaremos da XVII Reunião Mundial de Direito Aduaneiro, promovido pela ICLA – International Customs Law Academy [9], na cidade do Porto, em Portugal, em painel sob o título “Padrões para cadeias logísticas seguras e a redefinição do OEA para o T&C Trader”. Antecedendo esse painel, Rosaldo Trevisan, colega dessa coluna, moderará o painel em que o Subsecretário de Administração Aduaneira, dr. Fabiano Coelho, fará conferência sobre “Riscos para segurança, proteção do cidadão e comércio internacional legítimo”. O Congresso iniciará amanhã com a participação de congressistas de mais de 30 países, prosseguindo com dois dias de intensas atividades.
Em um cenário tão incerto e desafiador no comércio internacional, a reunião de tantos estudiosos e especialistas, certamente, propiciará, pela permuta de experiências, novas ideias, reflexões, e oxalá, alternativas e soluções para uma atividade aduaneira eficiente que possa auxiliar na promoção do comércio global legítimo e seguro.
[1] TREVISAN, Rosaldo. O imposto de importação e o direito aduaneiro internacional. São Paulo: Aduaneiras, 2017, p. 86-89.
[2] Há estudos do Banco Mundial e da OMC sobre os efeitos positivos da globalização para redução da pobreza. Disponível em link, link . Acesso: 29/8/2025.
[3] Disponível em: link . Acesso em 29/08/2025.
[4] Segundo estudos realizados pela CNI, a queda no PIB brasileiro será de R$ 19,2 bilhões (0,16%), a redução nas exportações de R$ 52 bilhões e a deve ocorrer a perda de 110 mil postos de trabalho. Disponível em: link . Acesso em 29/08/2025.
[5] Disponível em: link . Acesso em 29/08/2025.
[6] PICKETT, Eric and WOLFFANG, Hans-Michael. The European Commission’s Proposal for a Modernised Union Customs Code: A Brief Introduction. World Customs Journal, vol. 17, Issue 02, 2023, September 30, 2023. Disponível em: link. Acesso em 29/8/2025.
[7] LEONARDO, Fernando Pieri. O AEO no direito aduaneiro europeu. In: PEREIRA, Tania Carvalhais (ed.). Direito Aduaneiro: coletânea de textos. Lisboa: Universidade Católica, 2022.
[8] Disponível em: link. Acesso em 29/8/2025.
[9] https://www.iclaweb.org/porto-portugal2025
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