As operações de exportação e importação entre empresas vinculadas em países diferentes e paraísos fiscais são regulamentadas por regras de transfer pricing. No Brasil, a matéria é disciplinada pela Lei nº 14.596/2023, que, em 14 de junho de 2023, alterou a Lei nº 9.430/96.
Dentre as alterações trazidas pela Lei nº 14.596/23 destaca-se a ampliação das hipóteses quanto à aplicação da multa pelo descumprimento da obrigação acessória.
Essa penalidade também é chamada de multa isolada e decorre da não apresentação da documentação referente a operação que será objeto de tributação.
Importante frisar que a Lei 14.596/2023 não relaciona a aplicação da multa ao lançamento de ofício do tributo, pelo contrário, a multa prevista pela nova legislação está atrelada unicamente ao descumprimento da obrigação acessória, prevista nos artigos 34 e 35 da lei.
O artigo 34 da Lei nº 14.596/23, determina que o sujeito passivo deve apresentar os documentos e as informações que demonstrem que a base de cálculo aplicada ao IR e a CSLL estão em conformidade com o princípio arm’s length.
Caso contrário, o contribuinte estará sujeito a adoção de medidas pela autoridade fiscal, sem prejuízo da aplicação das multas previstas no artigo 35 da lei, nos seguintes termos:
“Art. 35. A inobservância do disposto no art. 34 desta Lei acarretará a imposição das seguintes penalidades, sem prejuízo da aplicação de outras sanções previstas nesta Lei:
I – quanto à apresentação da declaração ou de outra obrigação acessória específica instituída pela Secretaria Especial da Receita Federal do Brasil para fins do disposto no art. 34 desta Lei, independentemente da forma de sua transmissão:
a) multa equivalente a 0,2% (dois décimos por cento), por mês- calendário ou fração, sobre o valor da receita bruta do período a que se refere a obrigação, na hipótese de falta de apresentação tempestiva;
b) multa equivalente a 5% (cinco por cento) sobre o valor da transação correspondente ou a 0,2% (dois décimos por cento) sobre o valor da receita consolidada do grupo multinacional do ano anterior ao que se referem as informações, no caso de obrigação acessória instituída para declarar as informações a que se referem os incisos III e IV do caput do art. 34 desta Lei, na hipótese de apresentação com informações inexatas, incompletas ou omitidas; ou
c) multa equivalente a 3% (três por cento) sobre o valor da receita bruta do período a que se refere a obrigação, na hipótese de apresentação sem atendimento aos requisitos para apresentação de obrigação acessória; e
II – quanto à falta de apresentação tempestiva de informação ou de documentação requerida pela autoridade fiscal durante procedimento fiscal ou outra medida prévia fiscalizatória, ou a outra conduta que implique embaraço à fiscalização durante o procedimento fiscal, multa equivalente a 5% (cinco por cento) sobre o valor da transação
§1º. As multas a que se refere este artigo terão o valor mínimo de R$20.000,00 (vinte mil reais) e o valor máximo de R$ 5.000.000,00 (cinco milhões de reais).
§2º. Para estabelecer o valor da multa prevista na alínea “c” do inciso I do caput, será utilizado o valor máximo previsto no § 1º deste artigo:
I – caso
o sujeito passivo não informe o valor da receita consolidada do grupo multinacional no ano anterior; ou
II – quando a informação prestada não houver sido devidamente comprovada.
§3º. Para fins de aplicação da multa prevista na alínea “a” do inciso I do caput deste artigo, será considerado como termo inicial o dia seguinte ao término do prazo originalmente estabelecido para o cumprimento da obrigação e como termo final a data do seu cumprimento ou, no caso de não cumprimento, da lavratura do auto de infração ou da notificação de lançamento.
§4º. A multa prevista na alínea “b” do inciso I do caput deste artigo não será aplicada nas hipóteses de erros formais devidamente comprovados ou de informações imateriais, nas condições estabelecidas em regulamentação editada pela Secretaria Especial da Receita Federal do Brasil.”
Proporcionalidade
O presente artigo visa analisar a proporcionalidade das multas previstas no artigo 35, com base em parâmetros internacionais e na jurisprudência brasileira.
Em primeiro plano, é possível notar que a aplicação das multas em virtude do descumprimento da obrigação acessória não é desproporcional se comparada aos critérios utilizados em países como Alemanha, Reino Unido, Portugal e Canadá.
Nesses países, o Poder Judiciário por muito tempo observou que empresas multinacionais como Google, Cisco, Pfizer, Merck, Coca-Cola e Facebook, situadas no continente europeu, burlavam o sistema de pagamento de impostos sobre sociedades situadas nos Estados Unidos em até 35% por meio de truques fiscais, escondendo documentações.
Esse fato levou à alteração das regras de transfer pricing, com a aplicação de multas em percentuais que podem chegar a 100% do tributo devido, podendo, inclusive, haver a cumulação de penalidades.
O que demonstra que os percentuais adotados pelos artigos 34 e 35 da Lei nº 14.596/23 para aplicação das multas estão em conformidade com o previsto pelas principais potências econômicas mundiais.
STF, confisco e o limite da multa
Por outro lado, os tribunais brasileiros, ao analisarem o tema, construíram a jurisprudência pautados no raciocínio de que a multa por descumprimento de obrigação acessória seria desproporcional quando a sua aplicação configurasse confisco.
O Supremo Tribunal Federal afetou a matéria com Repercussão Geral, por meio do RE nº 640.452/RO (Tema 487). Sem o encerramento do julgamento, há a proposição de duas teses com diferentes parâmetros de limitação às multas por descumprimento de obrigação acessória.
De acordo com a tese proposta ministro relator, Roberto Barroso, o limite da multa deve ser fixado em 20% do valor do tributo devido, desde que haja uma obrigação principal subjacente [ou seja, um tributo devido]. Sob essa perspectiva, não há como afirmar que as multas estipuladas pela Lei nº 14.596/23 são confiscatórias e desproporcionais, uma vez que as bases de cálculo previstas no artigo 35 divergem das adotadas pela tese apresentada pelo ministro (valor do tributo).
Em contrapartida, o ministro Dias Toffoli propôs uma tese distinta. Quando não houver uma obrigação principal subjacente, a multa deve respeitar o limite de 20% do valor da operação vinculada à penalidade.
A aplicação desse entendimento à multa prevista no artigo 35 da Lei nº 14.596/23 leva à conclusão de sua legalidade e proporcionalidade, uma vez que o limite estabelecido foi de 5% (cinco por cento) sobre o valor da operação.
Com relação à jurisprudência do Carf, sob a vigência da Lei 9.430/96 (legislação anterior de TP), coube a análise dos casos que envolveram a aplicação da multa de 75% por descumprimento de obrigação acessória. Contudo, pela própria natureza e limitação do tribunal, o caráter confiscatório não foi objeto de discussão.
Conclusão
Posto isto, considerando a pendência de julgamento no Supremo Tribunal Federal (RE 640.452/RO – Tema 487), que será retomada em sessão presencial com o voto de outros nove ministros e ministras, é possível concluir que os percentuais introduzidos pelo artigo 35 da Lei nº 14.596/23 não possuem, na jurisprudência pátria, indícios de caráter confiscatório ou desproporcional.
Nesse sentido, a partir da comparação com os parâmetros adotados em outros países, a conclusão é de que as multas introduzidas pela nova Lei de Transfer Pricing não são desproporcionais. Sob a ótica comparada, há, inclusive, penalidades fixadas com índices superiores aos adotados pela Lei nº 14.96/23. Conclusão esta que poderá ser reforçada no julgamento pelo STF do Tema 487, caso a tese proposta pelo ministro Dias Toffoli seja adotada.
Bibliografia:
União Europeia. Tribunal de Justiça. Acórdão no Processo C-255/02,
União Europeia. Tribunal Português. Acórdão no Processo 01508/02 do STA e 025744 do STA
https://amp.theguardian.com/technology/2020/jan/01/google-says-it-will-no-longer-use- double-irish-dutch-sandwich-tax-loophole
CLAUSING K. A. (2003) – Tax motivated transfer pricing and Us intrafirm trade Prices – Journal of Public Economics 87 (2003)- Tribunal Norte Americano- Processo 2207-2223
GALBIATI W. (2014, Giugno 11) – Fisco, la Ue apre inchiesta su Fiat, Apple e Starbucks. Sotto accusa il transfer pricing – Repubblica “Economia&Finanza”. Disponibile su: http://www.repubblica.it
https://thesis.unipd.it/bitstream/20.500.12608/25695/1/Barbieri_Federica.pdf
DEL GATTO M. – Transfer Pricing: Linee guida OCSE, comparabilità e determinazione del prezzo – Università degli Studi G.d‟Annunzio di Chieti-Pescara
STF, RE 640452 (Tema 487)
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