Protecionismo verde: obstáculos às metas de descarbonização e transição energética

Em nosso último artigo, abordamos a questão das barreiras comerciais ao comércio em um mundo já repleto de desafios e incertezas. Neste contexto, falamos sobre como as barreiras ao comércio exterior, não apenas aquelas visíveis e apresentadas em forma de tarifa, mas também as barreiras não tarifárias e mais complexos e obscuras afetam negativamente o comércio exterior e enfraquecem a posição dos exportadores no mercado internacional.

De forma bastante alinhada à esta análise, ainda que com contornos mais específicos, os colegas Rosaldo Trevisan [1] e Leonardo Branco [2], em seus brilhantes artigos que se seguiram, trataram de como as barreiras ao comércio dentro do contexto da proteção ao meio ambiente vêm configurando o que se passou a chamar de “protecionismo verde” e trazendo distorções ao comércio sob uma bandeira que, a priori, parece legítima.

Legitimidade da proteção das fronteiras por razões ambientais

A bandeira nos parece legítima porque está inserida em um discurso de sustentabilidade e se volta para a necessária mudança de hábitos e focos anteriormente consolidados e que vêm gerando prejuízos extensos e cada vez mais visíveis sobre o meio ambiente e a qualidade de vida.

Embora as políticas restritivas em prol da proteção do meio ambiente sejam, em sua grande maioria, recentes, a preocupação e a legitimidade desse tipo de protecionismo foram endereçadas pelo Gatt 1947.

Em seu artigo XX, sobre exceções gerais à regra da não discriminação, o Gatt permite que os estados adotem medidas de restrição ao comércio “necessárias à proteção da saúde e da vida das pessoas e dos animais e à preservação dos vegetais”.

Em outras palavras, a legitimidade de medidas de proteção ambiental que afetem negativamente o comércio exterior é tida como legítima e possível há muitas décadas. Portanto, o ponto a ser discutido não é se faz sentido ou não restringir o comércio para garantir políticas sustentáveis, mas quando estas realmente são necessárias e aplicáveis de forma adequada.

O próprio caput do artigo XX destaca que a legitimidade dessas medidas de proteção está atrelada à confirmação de que elas “não sejam aplicadas de forma a constituir quer meio de discriminação arbitrária, ou injustificada a, entre os países onde existem as mesmas condições, quer uma restrição disfarçada ao comércio internacional”.

Por sua vez, a jurisprudência da OMC trouxe importantes contribuições sobre como essas situações devem ser analisadas e validadas, indicando como elementos centrais: (i) a análise sobre a importância real dos interesses e valores protegidos pela medida; (ii) a contribuição real da medida com o objetivo proposto; (iii) o grau de restrição comercial da medida; e (iv) a existência de alternativas razoáveis e com menor grau de restrição. [3]

Caso dos pneus usados

Em artigo publicado há mais de dois, abordamos a questão da sustentabilidade do comércio exterior para tratar, especificamente, das restrições à importação de remanufaturados.

Naquela oportunidade, mencionamos uma das disputas mais emblemáticas do Brasil no âmbito do Órgão de Soluções de Controvérsias (OSC) da OMC, o caso dos pneus recauchutados (DS332), popularmente conhecida como caso “Brazil — Retreaded Tyres“, que teve início em 2005 e cuja implementação da decisão final se deu em 2009.

Tal disputa trouxe grandes repercussões não apenas para o Brasil, mas se mostrou um grande marco na jurisprudência da OMC, tendo em vista que o órgão de apelação reconheceu o direito dos países em adotarem medidas restritivas de comércio para salvaguardar o meio ambiente e evitar a importação de resíduos sólidos. [4]

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Não obstante a decisão ter sido vista pelo Brasil como uma vitória, não se pode olvidar de que se reconheceu o direito a medidas restritivas por razões ambientais e, especificamente sobre o caso concreto, reconheceu-se que a medida restritiva imposta era necessária, contribuiria com o objetivo real e que não existiam alternativas menos gravosas. No entanto, como a medida se restringia a países que não estivessem no âmbito do Mercosul, a decisão final do órgão de apelação foi de que, como estava, a medida era arbitrária e injustificada, sendo necessário que o Brasil adequasse sua aplicação para que valesse contra todos os países ou contra nenhum.

Diante disso, optou-se pela adequação da restrição para todas as origens. A principal consequência disso foi a consolidação de uma política brasileira bastante restritiva sobre a importação de bens que não sejam novos, independente da finalidade do bem ou de seu estado, seja ele usado, recondicionado ou remanufaturado.

Por muito tempo, a política brasileira parecia legítima e coerente. Todavia, diante dos novos contextos nacional e internacional, em que políticas a favor do meio ambiente, da descarbonização, da sustentabilidade, da economia circular e da transição energética ganham força, a regra geral se mostra ultrapassada e descontextualizada.

Políticas atuais e seu reflexo sobre o comércio exterior

Como dito, o governo brasileiro vem, nos últimos anos, apostando no fortalecimento de políticas voltadas ao meio ambiente, à descarbonização e à transição energética. São exemplos disso: a Política Nacional de Resíduos Sólidos, a Política Nacional de Biocombustíveis (“RenovaBio”)​, a Lei de Incentivo aos “Combustíveis do futuro”, o Sistema Brasileiro de Comércio de Emissões de Gases de Efeito Estufa (SBCE), a Política Nacional de Transição Energética (PNTE), o Programa de Aceleração da Transição Energética (Paten) e a Nova Indústria Brasil.

Merece especial atenção a chamada Nova Indústria Brasil, que nada mais é do que a nova política industrial do governo federal e que se pauta em seis pilares, sendo o quinto especialmente relevante ao tema aqui tratado, visto que trata de “Bioeconomia, descarbonização, e transição e segurança energéticas para garantir os recursos para as futuras gerações”.

Dentre as expectativas do governo nesta frente, chama a atenção as seguintes metas: (i) promover a indústria verde, reduzindo em 30% a emissão de CO2 por valor adicionado da indústria, atualmente em 107 milhões de toneladas por trilhão de dólares; (ii) ampliar em 50% a participação dos biocombustíveis na matriz energética de transportes, que atualmente é de 21,4%; e (iii) aumentar o uso tecnológico e sustentável da biodiversidade pela indústria em 1% ao ano.

Trata-se de metas ambiciosas e que demandam grandes investimentos em capacidade instalada e tecnologia para que a indústria nacional as atinja. Por outro lado, caso fornecido o apoio adequado e um ambiente regulatório compatível, podem permitir que a indústria brasileira não apenas se torne mais sustentável, mas poderá criar novos nichos de atuação e exportação.

Como representante do setor privado, tenho tido a oportunidade de conviver e auxiliar diversas empresas brasileiras que estão dispostas e motivadas a fazerem dessas metas uma grande oportunidade de negócio. Todavia, o caminho não tem sido fácil e a principal razão não está nos altos investimentos necessários, mas nos obstáculos legais a serem enfrentados.

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Combustíveis sustentáveis

Neste cenário, um dos setores que talvez esteja com mais dificuldades em viabilizar essas transições é o de combustíveis. Isto porque, os combustíveis sustentáveis são aqueles que, ao invés de derivarem de componentes fósseis, utilizam como matéria-prima insumos renováveis ou derivados de resíduos domésticos e industriais — como óleos e gorduras usados, sebo animal, lixo orgânico e resíduos agrícolas.

É neste ponto que as atuais políticas restritivas de importação aparecem como um grande obstáculo, já que, apenas de o Brasil gerar insumos e resíduos em quantidades adequadas para esses processos, ainda não há tecnologias e oferta real desses em forma adequada para abastecer a indústria.

Não há dúvidas de que existe lixo orgânico, óleos usados, sebo animal e outros resíduos correlatos em abundância no país. Todavia, sem que haja uma cadeia organizada e que consiga alinhar e processar oferta e demanda em quantidades e, principalmente, em qualidade para uso como matriz energética, o desafio para que os combustíveis sustentáveis sejam efetivamente produzidos se torna quase impossível de ser vencido.

A saída para este impasse é, necessariamente, a revisão da atual política de importação de produtos usados e resíduos sólidos, de forma a permitir que a indústria brasileira possa, pelo menos em um primeiro momento, ter acesso aos insumos de que precisa e, com o início desse processo e amadurecimento do mercado, haja espaço e experiência para que os fornecedores nacionais se organizem e profissionalizem para se tornarem fontes viáveis.

No cenário atual, não bastasse a regra absoluta de proibição de importação desses insumos — por não se enquadrarem nas exceções de bens de capital, informática ou do §1º do art. 35 da Portaria Secex nº 249/2023 —, tem-se ainda um aumento dos obstáculos com os desdobramentos da Política Nacional de Resíduos Sólidos (PNRS).

A PNRS, criada por meio da Lei nº 12.305/2010, busca trazer inovações no que concerne a redução da geração de resíduos, a reutilização, a reciclagem e a destinação ambientalmente adequada dos resíduos sólidos, além de alinhar as regras nacionais à Convenção de Basileia sobre o Controle de Movimentos Transfronteiriços de Resíduos Perigosos e seu Depósito — tendo, para tanto, imposto a proibição de importação de resíduos definidos como “Outros resíduos”.

Neste contexto, foi publicado em abril de 2025 o Decreto nº 12.438 que tratava das exceções à proibição de importação de resíduos sólidos, justamente na toada de dar acesso à indústria aos insumos de que precisa para avançar com a transição energética. Além dos critérios de análise para determinação da viabilidade de importação, o Decreto trouxe lista anexa contendo autorização de importação para resíduos classificados 20 itens da NCM.

Infelizmente, menos de um mês após a publicação este decreto foi revogado e substituído pelo Decreto nº 12.451/2025, uma versão mais enxuta e restrita do original e que exclui todas as autorizações de importação inicialmente fornecidas.

Segundo os principais veículos de informação, a mudança de postura do governo se deve à grande pressão das associações e sindicatos voltados à representação dos catadores de lixo, que se viram ameaçados com a possibilidade de competir com as importações.

Política sustentável e comércio exterior

Diante do cenário apresentado e das últimas ocorrências, resta claro que, embora o Brasil esteja empenhado em defender políticas sustentáveis e mudanças estruturais na indústria, estas ainda não reverberam de forma coerente no universo aduaneiro.

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Primeiramente porque, como visto, ainda que a necessidade e a contribuição real das políticas atuais reflitam questões reais e relevantes, os interesses políticos e interferências setoriais arbitrárias ainda ditam o ritmo das mudanças.

No caso do Decreto nº 12.438/2025, por exemplo, a pressão dos catadores foi suficiente para revogar todas as autorizações previamente concedidas e que abarcavam rejeitos de valor econômico que nada tinham a ver com a atividade dos catadores de lixo.

Interessante é que, novamente movido por pressões políticas, o governo buscou uma forma mais leve e discreta de garantir a conformação de outros poucos setores relevantes e que foram afetados negativamente pela revogação. Por meio de portaria interministerial publicada três dias após o novo decreto, alguns produtos tiveram a autorização de importação restaurada.

O que esses episódios demonstram é que atingir as metas do novo plano industrial não será fácil, principalmente porque as regras de comércio exterior não foram consideradas no momento de aprovação de todos esses marcos normativos — como é a praxe. Com efeito, os meios e os fins acabam ficando distantes e a realização das políticas se torna um desafio muito maior do que deveria ser.

Comércio exterior é parte da solução

Nossa visão não é de que cabe uma abertura ampla e irrestrita a resíduos de valor econômico, tampouco defende-se que as políticas nacionais de incentivo à sustentabilidade sejam desconsideradas como parte da estratégia. Todavia, quando medidas são pensadas e metas são traçadas é indispensável que o governo considere se há, de fato, condições para tanto.

No caso da transição energética e dos biocombustíveis está claro que o pontapé inicial dependerá de insumos estrangeiros, não apenas em termos de tecnologia, mas também no fornecimento de insumos.

O Brasil já é exportador de muitos rejeitos de valor econômico para este tipo de atividade o que nos coloca numa posição contraditória ao negar que os mesmos sejam importados.

E para aqueles que possam pensar “se exportamos, então é porque não há necessidade de oferta externa”, basta lembrarmos do caso do etanol, cuja oferta sempre ficou sujeita aos interesses dos produtores, que se alternavam entre produção de combustível e açúcar, a depender das tendências do mercado internacional e não da demanda interna.

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[1] Artigo “As aduanas e o ‘protecionismo verde’ em ‘tempos difíceis’”, publicado em 01/06/2025 e disponível no link.

[2] Artigo “COP30 e programa Mover: compensação ambiental nas importações”, publicado em 15/06/2025 e disponível no link.

[3] Dentre os casos que trataram desse tema e que debateram os critérios em questão, destaca-se: Brazil – Retreaded Tyres (DS332), Indonesia – Chicken (DS484), Brazil – Taxation (DS497 e DS472), EC – Tariff Preferences (DS246), China – Publications and Audiovisual Products (DS363), EC – Asbestos (DS135) e Korea – Beef (DS161 e DS169).

[4] O caso dos pneus também ganhou muito destaque nacionalmente devido às intensas discussões judiciais paralelas que ocorreram no seu decorrer, o que levou, inclusive, ao envolvimento do STF no tema por meio da Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) nº 101/DF.

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