A decisão do STF na ADPF 976 é histórica ao enfrentar diretamente, a partir da Corte Constitucional, diversos problemas da população de rua.
O decisum determina medidas imediatas a serem adotadas pelos entes federativos e institui verdadeiro processo estrutural, direcionando a reestruturação normativa, institucional e prática destes entes. Também tutela, desde logo, a liberdade, a integridade física, a posse e a propriedade de pessoas em situação de rua, ao estabelecer regras contra a arquitetura hostil e a apreensão arbitrária de pertences, dentre outros direitos historicamente violados.
Justamente em razão da existência de múltiplas, sistemáticas e reiteradas violações de direitos de pessoas em situação de rua, os autores da ADPF 976 se socorreram do Judiciário, buscando sanar as falhas decorrentes de atos omissivos e comissivos do Poder Público.
O ministro Alexandre de Moraes, relator da ação, reconheceu que eles buscavam verdadeira “reestruturação institucional diante de um quadro grave e urgente de desrespeito a Direitos Humanos Fundamentais”. Diante disso, ao acolher parcialmente os pedidos iniciais, entendeu haver “violação maciça de direitos humanos, a indicar um potencial estado de coisas inconstitucional”.
Vê-se, neste ponto, que não houve reconhecimento, de plano, do estado de coisas inconstitucional (ECI) quanto aos direitos da situação de rua. Mesmo assim, entendeu caber ao STF “concretizar efetivamente os Direitos Fundamentais, mediante alongadas e crônicas omissões das autoridades responsáveis que desrespeitem a Constituição Federal”, fazendo referência à ADPF 347-MC (relator ministro Marco Aurélio, Tribunal Pleno, DJe de 19/2/2016), pioneira no reconhecimento do ECI no Brasil.
A própria existência de pessoas em situação de rua é uma grave violação do direito à moradia (artigo 6º, CF), enquanto a vida cotidiana desta população revela violação a outros direitos, como o direito à assistência social (artigo 203 e seguintes, CF). A atuação estatal contra estas pessoas é muitas vezes marcada por violência, arquitetura hostil e higienismo, configurando graves violações à dignidade humana (artigo 1º, III, CF), à integridade física, ao direito de ir e vir e até mesmo aos direitos à posse e à propriedade (artigo 5º, “caput”, incisos II, III e XXII).
O direito à participação social da população de rua nas políticas públicas também é amplamente violado. Tal direito foi previsto pela Política Nacional da População de Rua, que estabeleceu que os entes da Federação aderentes “deverão instituir comitês gestores intersetoriais, integrados por representantes das áreas relacionadas ao atendimento da população em situação de rua, com a participação de fóruns, movimentos e entidades representativas” da população de rua (artigo 3º do Decreto 7.053/2009). No processo em análise, o STF constatou que apenas cinco estados e 15 municípios aderiram à Política Nacional.
Também se reconheceu a violação do direito à água e ao saneamento, a impedir o atingimento das metas de universalização da Lei nº 14.026, de 15 de julho de 2020 (Marco Civil do Saneamento). Outrossim, tratou da violação aos direitos sociais à educação e ao trabalho, à assistência social e à renda, assim como dos problemas do acolhimento institucional e da moradia, como se detalhará a seguir.
Além disso, a decisão entendeu que no caso de indivíduos que sofrem um acúmulo de vulnerabilidade, pessoas em situação de “hiperhipossuficiência”, como mulheres, população LGBTQIAP+, negros, crianças, deve haver respeito às suas particularidades quando da elaboração das políticas públicas locais.
Este quadro está a exigir a adoção de medidas complexas e diversas, por vários órgãos estatais (multipolaridade), com uma recomposição institucional que readeque “elementos em alguma medida consolidados ou arraigados no mundo dos fatos”, devendo o Poder Judiciário agir “de maneira ativa e criativa para este fim” [1]. Reclama, assim, procedimentos típicos de um processo estrutural.
O ministro Alexandre de Moraes trouxe definitivamente ao debate jurídico um conceito que sintetiza diversas violações de direitos da população de rua: a aporofobia. Trata-se de noção desenvolvida pela filósofa espanhola Adela Cortina [2], que pode ser sintetizado com o “odio, repugnancia u hostilidad ante el pobre, el sin recursos, el desamparado”. Em suma, a aporofobia pode ser entendida como a discriminação contra os pobres.
Realmente, o ódio, a repugnância e a hostilidade contra a população de rua não poderiam ser mais evidentes em nossa sociedade. Não apenas em posturas individuais, mas também em políticas estatais de repressão (policial), de circulação (travestidas de zeladoria urbana, de limpeza de calçadas) e de arquitetura hostil (construção de uma cidade excludente, de circulação permanente, na qual as pessoas não podem permanecer nas ruas).
A população de rua é invisibilizada até mesmo no Censo do IBGE, que conta apenas a população domiciliada. Pelo Censo oficial, assim, não sabemos quantas pessoas estão nesta situação, em violação ao quanto estabelecido no Decreto 7.053/2009 (artigo 7º, III e VI). Esta é uma forma direta de sabotar quaisquer políticas públicas voltadas a esta população. Trata-se da mais óbvia invisibilizarão institucional.
Para compreender este fenômeno, o ministro relator afirmou em sua decisão:
“Nesse sentido, é válido entender a aporofobia como violadora dos objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil, nomeadamente aquele relacionado ao combate a todas as formas de discriminação, estatuído no artigo 3°, IV, da CFRB: Artigo 3º Constituem objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil: (…) IV – promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação.”
Assim, a aporofobia estatal viola o objetivo constitucional de promover o bem de todos sem discriminações indevidas e desumanas. Vê-se, aqui, a densificação jurídica de um conceito filosófico, dando-lhe validade e envergadura constitucional. A decisão do STF implica numa verdadeira proibição da aporofobia.
Duas dimensões da ação estatal são diretamente impactadas por esta proibição: a) a cidade deve ser projetada sem equipamentos excludentes, sem projetos que expulsem a população de rua das áreas públicas; b) a limpeza urbana de espaços públicos em que haja população de rua deve se submeter a regras específicas, como aviso prévio e vedação de subtração de pertences.
Regras para a atuação do poder público na limpeza urbana em locais com população de rua foram desenvolvidas em São Paulo, após demanda do Núcleo de Cidadania e Direitos Humanos da Defensoria Pública e de Movimentos Sociais, originando o Decreto Municipal nº 57.069, de 17 de junho de 2016.
Na época, o Padre Julio Lancellotti era cético quanto à viabilidade de tal regramento, embora nós acreditássemos na necessidade de tal regulamentação. Isto porque a atuação do município se dá mediante atos administrativos e, como tais, devem observar as limitações impostas pelos direitos dos particulares. No caso, em especial, pelos direitos à posse, à propriedade, ao direito de ir e vir e à integridade física das pessoas em situação de rua.
Realmente, como o padre Julio previa, houve extrema dificuldade na aplicação do decreto, que foi deformado algumas vezes antes da sua extinção definitiva por gestões municipais posteriores. Agora, com uma decisão emanada do STF, pode ser que tenhamos mais sucesso em assegurar os direitos da população de rua.
Uma solução certamente estruturante para os problemas da população é a moradia. Enquanto a proibição da aporofobia implica em medidas como o controle da atuação de órgãos estatais e o treinamento de pessoal (contenção do poder do Estado), a promoção da moradia exige medidas mais onerosas, como construção de moradias populares (medidas de caráter redistributivo que impactam a ordem econômica).
O ministro relator tratou longamente da questão da moradia em suas razões de decidir. Apontou, especificamente, o modelo Moradia Primeiro (“Housing First”), consagrado modelo internacional para atendimento à população de rua. Mencionou também diversas soluções internacionais que têm sido desenvolvidas em países como África do Sul, Uruguai e Chile.
Não obstante tenha tratado de maneira aprofundada sobre o tema, o dispositivo da decisão foi tímido ao determinar soluções habitacionais para a população de rua. O próprio ministro anotou a adoção de “medidas paliativas que também impulsionem a construção de respostas duradouras por parte do Estado”, mas este impulso, certamente, dependerá da mobilização de recursos e de vontade política dos entes federativos.
Assim, ao determinar a observância das diretrizes do Decreto Federal nº 7.053/2009 por Estados e Municípios, o ministro vinculou estes entes aos objetivos da Política Nacional para a População em Situação de Rua “assegurar o acesso amplo, simplificado e seguro aos serviços e programas que integram as políticas públicas de (…) moradia (…)” (artigo 7º, I), bem como a articulação da rede de acolhimento temporário com “programas de moradia popular promovidos pelos Governos Federal, estaduais, municipais e do Distrito Federal” (artigo 8º, §4º).
Além disso, o ministro relator determinou que num plano a ser elaborado pelo Executivo federal, deve haver previsão de que as demandas da população em situação de rua sejam contempladas na Política Nacional de Habitação. É dizer, um plano que deve prever a incorporação de um direito a uma política ainda em formulação. Há ainda um longo caminho para a efetiva moradia digna.
Por outro lado, lidando diretamente com a questão da falta de vagas em abrigos em alguns lugares, preconizou como solução imediata a disponibilização imediata de barracas para quem solicitar abrigo. Certamente, uma solução realista, mas que não enfrenta imediatamente o problema estrutural da falta de moradia. Permanecemos, assim, na velha seara das soluções “programáticas”, em que a efetivação universal de um direito fica postergada para um momento posterior em que houver recursos suficientes.
Enfim, pode-se analisar a decisão do ministro Alexandre de Moraes em quatro tipos de mandamentos: um de observância normativa, de cumprimento imediato; um conjunto de obrigações positivas e negativas, também de cumprimento imediato; e duas obrigações que obrigam o diagnóstico e o planejamento de políticas públicas (com parâmetros mínimos a serem observados). Estes tipos de mandamentos contidos na decisão refletem os próprios direitos materiais em questão.
Primeiro, a obrigação de observância normativa determina que as diretrizes do Decreto Federal nº 7.053/2009 devem ser integralmente cumpridas pelos estados, Distrito Federal e municípios. Os objetivos e diretrizes do decreto são bastante amplas e refletem princípios e direitos da própria Constituição Federal. Por exemplo, o decreto estabelece como diretrizes: a) a promoção dos direitos civis, políticos, econômicos, sociais, culturais e ambientais; b) a articulação e integração das políticas e a participação da sociedade civil na elaboração, acompanhamento e monitoramento das políticas públicas (artigo 6º do decreto).
Porém, há ações concretas decorrentes desta adesão normativa, especificamente, a necessidade de criação, pelos entes da Federação, de comitês gestores intersetoriais, “integrados por representantes das áreas relacionadas ao atendimento da população em situação de rua, com a participação de fóruns, movimentos e entidades representativas desse segmento da população” (artigo 3º do decreto).
Segundo, o conjunto de obrigações positivas e negativas, também de cumprimento imediato, consiste principalmente em medidas decorrentes da proibição de aporofobia. São medidas que atendem imediatamente o objetivo constitucional de combate a todas as formas de discriminação, estatuído no artigo 3°, IV, da CF, além de outros direitos como o à liberdade de ir e vir, à integridade física, à posse e à propriedade da população de rua. Também constam ali obrigações para assegurar o abrigamento digno, bem como o acesso ao saneamento básico.
Neste sentido, como visto, o ministro proibiu a adoção de técnicas de “arquitetura hostil” ou “arquitetura da exclusão” contra a população de rua. Também determinou a adoção de procedimentos para ações de “zeladoria urbana” em locais com população de rua, proibindo-se “o recolhimento forçado de bens e pertences, assim como a remoção e o transporte compulsório de pessoas em situação de rua”.
Por fim, a decisão estabeleceu verdadeiras medidas de processo estrutural, com pretensões cooperativas e dialógicas, consistentes na necessidade de realização de diagnósticos da situação de rua pelos municípios e Distrito Federal; e na realização de um “Plano de Ação e Monitoramento para a efetiva implementação da Política Nacional da População de Rua” pelo Executivo Federal. Tais mandamentos são dotados de prospectividade, dando à atividade jurisdicional um enfoque “direcionado ao futuro, procurando servir como mola propulsora para mudanças de comportamento gerais e continuadas” [3].
Em suma, a decisão do STF na ADPF 976 é histórica e necessária. Traz definitivamente ao ordenamento jurídico pátrio a proibição da aporofobia. Porém, não enfrenta a contento a questão da moradia para a população de rua, que seria a solução estrutural nesta temática. Sem adentrar na questão habitacional, os entes federativos dificilmente avançarão suficientemente para superar as discriminações desumanas contra a população de rua.
[1] ARENHART, Sérgio Cruz, et al. Curso de Processo Estrutural. São Paulo: Thomson Reuters Brasil, 2021, p. 78.
[2] CORTINA, Adela, Aporofobia, el rechazo al pobre. Um desafio para la democracia, Barcelona, Paidós, 2017, p. 14.
[3] ARENHART, Sérgio Cruz, et al. Curso de Processo Estrutural. São Paulo: Thomson Reuters Brasil, 2021, p. 86.
Fonte: Conjur – Por Rafael Lessa Vieira de Sá Menezes