Reconhecimento fotográfico no processo penal

CNJ fixa novas regras para o reconhecimento presencial e por fotografia do investigado durante o inquérito

Por Willer Tomaz*
27/02/2023 | 06h00

O reconhecimento do suspeito em sede policial é um dos procedimentos mais delicados da persecução penal, e um dos maiores responsáveis por erro judiciário.

Isso porque, conforme Nucci, a identificação de uma pessoa ou o reconhecimento de uma coisa por intermédio da visualização de uma fotografia pode não espelhar a realidade, dando margem a muitos equívocos e erros.

Isso, per si, confere ao ato valor probatório bastante relativo e, quando realizado na fase do inquérito, tem valor ainda mais reduzido, já que se deu sem o escrutínio da defesa, necessitando ser ratificado em juízo por força do Sistema da Persuasão Racional adotado no sistema brasileiro, ilustrado no artigo 155 do Código de Processo Penal, segundo o qual não se admite condenação fundada apenas em prova inquisitorial, haja vista o direito do réu à mais ampla defesa técnica e à autodefesa em toda a sua plenitude durante a fase bilateral e contraditória.

O Código de Processo Penal disciplina o reconhecimento de pessoas nos artigos 226 e 228.

No artigo 226, estabelece as regras básicas: primeiro, a vítima ou testemunha descreve as características físicas do suspeito (inciso I), o qual então é colocado, sempre que possível, ao lado de outras pessoas semelhantes, convidando-se a vítima ou testemunha a apontá-la (inciso II). Para a preservação da vítima ou testemunha, a autoridade policial providenciará para que não sejam intimidadas (inciso III), lavrando-se em seguida o Auto de Reconhecimento subscrito pela autoridade policial, pela vítima ou testemunha e por outras duas testemunhas presenciais (inciso IV).

Já o artigo 228 do Código de Processo Penal impõe a necessidade de que o reconhecimento por várias vítimas ou testemunhas se faça em separado, evitando-se qualquer comunicação entre elas.

Em julgamento exemplar e unânime, o Superior Tribunal de Justiça decidiu que o reconhecimento de pessoas deve observar o procedimento previsto no artigo 226 do Código de Processo Penal, cujas formalidades constituem garantia mínima para quem se encontra na condição de suspeito da prática de um crime, de modo que, à vista dos efeitos e dos riscos de um reconhecimento falho, a inobservância do procedimento descrito na referida norma processual torna inválido o reconhecimento da pessoa suspeita e não poderá servir de lastro a eventual condenação, mesmo se confirmado o reconhecimento em juízo.

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Por analogia, o reconhecimento por fotografia deve seguir o mesmo procedimento, as mesmas cautelas e há de ser visto como etapa antecedente a eventual reconhecimento pessoal.

O fato é que o texto legal lacunoso e a alta frequência de erro no reconhecimento do suspeito em sede inquisitorial confirma a precariedade da prova baseada na memória, cabendo ao Legislativo promover uma revisão do procedimento a fim de compatibilizá-lo com os direitos e garantias fundamentais.

Um estudo realizado pela University of Michigan Law School em conjunto com o Center on Wrongful Convictions at Northwestern University School of Law revelou que, a título de exemplo, o reconhecimento equivocado foi responsável respectivamente por 80%, 81% e 51% das condenações de pessoas inocentes por crime sexual, roubo e outros crimes violentos revertidas nos Estados Unidos entre 1989 e 2012.

Por outro ângulo, em pesquisa divulgada pela American Judicature Society, nota-se que, mesmo quando adotadas boas práticas procedimentais no reconhecimento, o percentual de erros é alarmante: houve equívoco em 41,6% das vezes em que as pessoas eram alinhadas simultaneamente, e em 30,9% das vezes em que eram alinhadas sequencialmente.

A Defensoria Pública do Rio de Janeiro realizou levantamentos e identificou que em 60% dos casos de reconhecimento fotográfico equivocado na fase inquisitorial, o inocente permaneceu preso preventivamente por aproximadamente 280 dias.

Logo, existe, de fato, certa inclinação humana ao erro nos procedimentos de reconhecimento do investigado, causando-lhe danos irreparáveis, sendo o fenômeno cada vez mais estudado na Psicologia do Testemunho, área da ciência focada em compreender as razões que levam uma pessoa a reconhecer um inocente como o autor dos fatos.

E foi buscando uma solução para essa grave distorção que o Conselho Nacional de Justiça (CNJ) editou a Resolução n. 484, de 19 de dezembro de 2022, fixando diretrizes para a realização do reconhecimento de pessoas em procedimentos e processos criminais.

Algumas regras merecem destaque, como o direito de a pessoa a ser reconhecida constituir advogado para acompanhar o procedimento de reconhecimento pessoal ou fotográfico (art. 2º, §2º), sendo que a autoridade policial deverá coletar elementos de materialidade e autoria idôneos antes de submeter qualquer pessoa ao procedimento de reconhecimento (art. 5º, §2º).

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Outrossim, o reconhecimento será preferencialmente presencial e pessoal, admitindo-se o reconhecimento fotográfico de forma secundária devidamente fundamentada, sendo que na impossibilidade de assim proceder-se, deverão ser priorizados outros meios de identificação do investigado (art. 4º).

A Resolução também estabelece que o procedimento de reconhecimento deve ser integralmente gravado em sistema audiovisual, com a disponibilização da gravação às partes quando solicitado (art. 5º, §1º).

Haverá também uma entrevista prévia, separada, reservada e detalhada com cada vítima ou testemunha, que serão indagadas sobre as características físicas do suspeito, sobre a dinâmica dos fatos, a distância aproximada a que estavam das pessoas que praticaram o fato delituoso, o tempo aproximado durante o qual visualizaram o rosto dessas pessoas, as condições de visibilidade e de iluminação no local, se lhe foi apresentada a pessoa ou alguma fotografia anteriormente, e ainda se conversou com algum agente policial, vítima ou outra testemunha sobre as características visuais do investigado (art. 6º).

O reconhecimento não será realizado se a vítima ou testemunha previamente tiver visualizado alguma imagem do suspeito ou conversado com agente policial, vítima ou testemunha sobre as características do investigado, bem como se sua descrição não coincidir com as características do investigado (art. 6º, §2º).

A regra é muito relevante, pois, conforme Altavilla, o reconhecimento é o resultado de um juízo de identidade entre uma percepção presente e uma passada. Reconhece-se uma pessoa ou uma coisa quando, vendo-a, se recorda havê-la visto anteriormente. Isto é, qualquer contato visual inoportuno poderá causar na vítima ou na testemunha o vício psicológico da familiarização pela repetição, aumentando as chances de uma falsa memória.

Aliás, por isso mesmo é que o procedimento de reconhecimento é irrepetível e só pode ser realizado uma única vez (art. 2ª, §1º).

Ademais, o reconhecimento poderá ser por alinhamento sequencial ou simultâneo com no mínimo outras 4 pessoas não relacionadas ao fato e que atendam igualmente à descrição dada pela vítima ou testemunha, devendo as pessoas ou fotografias serem semelhantes e exibidas em iguais condições de espaço e tempo (art. 8º, incs. I e II), evitando-se que uma seja destacada em relação à outra desde as características físicas até à exposição e condução ao procedimento de reconhecimento na Delegacia (art. 8º, §3º).

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Ao final, após apontar o suspeito, a vítima ou testemunha ainda será solicitada a indicar, com suas próprias palavras, o grau de confiança em sua resposta, não podendo a autoridade policial manifestar nenhuma informação ou gesto sobre se a resposta coincide ou não com a expectativa do reconhecimento (art. 9º, § único), de tudo se tomando nota para juntada ao processo juntamente com a gravação audiovisual do ato (art. 10).

Sabemos bem que a jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça e do Supremo Tribunal Federal apontam para a necessidade de observância das garantias mínimas previstas nos artigos 226 e 228 do Código de Processo Penal durante o reconhecimento de pessoas (HC n. 598.886/STJ, HC n. 652.284/STJ, REsp n. 1.954.785/STJ, HC n. 712.781/STJ e RHC n. 206.846/STF).

Mas a Resolução n. 484/2022 do CNJ, de forma ainda mais percuciente, veio a complementar as normas processuais para estabelecer uniformemente o modo como a polícia judiciária deve zelar pela higidez do procedimento, cuidando para que a pessoa convidada a realizar o reconhecimento não seja induzida ou sugestionada, garantindo-se a máxima precisão, credibilidade e isenção na produção da prova.

Com efeito, a norma represente importantíssimo avanço, resultado de esforços de grandes nomes como o ministro Rogerio Schietti, do Superior Tribunal de Justiça, quem liderou as pesquisas frente do Grupo de Trabalho instituído pela Presidência do CNJ, o que culminou na elaboração da Resolução n. 484/2022 do CNJ.

Certamente o trabalho técnico empreendido por esta instituição responsável pelo aperfeiçoamento da função jurisdicional renderá bons frutos com o incremento da qualidade da prova e com o respeito aos direitos e garantias fundamentais do cidadão, máxime porque fará valer os princípios constitucionais da dignidade da pessoa humana, do devido processo legal, da ampla defesa e da vedação às provas ilícitas, estampados no arts. 1º, inciso III, e no artigo 5º, incisos LIV, LV e LVI, da Constituição Federal.

*Willer Tomaz é advogado, sócio no escritório Aragão e Tomaz Advogados Associados


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