Se não é possível desistir de ADI, por que seria em Reclamação?

De como nasceu a Reclamação Constitucional: a clarividência do ministro 

Vão seria o poder, outorgado ao Supremo Tribunal Federal de julgar em recurso extraordinário as causas decididas por outros tribunais, se lhe não fora possível fazer prevalecer os seus próprios pronunciamentos, acaso desatendidos pelas justiças locais. A criação dum remédio de direito para vindicar o cumprimento fiel das suas sentenças, está na vocação do Supremo Tribunal Federal e na amplitude constitucional e natural de seus poderes. Necessária e legitima é assim a admissão do processo de Reclamação, como o Supremo Tribunal tem feito.

Com essas palavras, no longínquo ano de 1952, o ministro Rocha Lagoa, do STF, sustentava a importância da Reclamação, a partir da clássica teoria dos poderes implícitos, nos casos em que a justiça local deixasse de atender à decisão do Supremo Tribunal Federal.

Desde seu surgimento pretoriano, passando pela inclusão no regimento interno, até sua incorporação no texto da Constituição de 1988, muito já se escreveu sobre esse relevante mecanismo de jurisdição constitucional, destinado à preservação da competência da Corte e, sobretudo, à garantia da autoridade de suas decisões (artigo 102, I, l, CR), em especial de seus provimentos vinculantes (artigo 988, III, CPC).

Trata-se, como já afirmamos nos Comentários à Constituição do Brasil, de uma medida jurisdicional cuja própria evolução ao longo dos últimos anos demonstra haver se tornado uma ação constitucional voltada à proteção da totalidade da ordem constitucional.

Ou seja, atualmente, a Reclamação Constitucional é um instrumento fundamental para garantir própria a eficácia das decisões do guardião da Constituição. Uma espécie de mater actio, isto é, aquela que garante as ações e os recursos constitucionais. Ou melhor: a Reclamação é a ação das ações constitucionais. Afinal, ela tem a função de  guardar a eficácia — também a efetividade! — das demais ações.

Dito de outro modo, a Reclamação não se destina diretamente à tutela de direitos subjetivos do reclamante, mas sim a garantir a própria jurisdição do tribunal, visto que o seu correto e adequado manejo assegura a fiscalização do cumprimento dos provimentos da Suprema Corte.

A Reclamação como a ação de controle que faz o controle do controle

Como se isso não bastasse, não se pode perder de vista que a reclamação também possui uma dimensão relacionada ao controle das decisões exaradas em controle abstrato de constitucionalidade. Veja-se: a reclamação possibilita controle-do-controle. Ou melhor: o controle-sobre-o-resultado-do-controle.

Nesse sentido, o ministro Edson Fachin já explicitou que, desde a Rcl 4.374, o Supremo Tribunal Federal, “ao julgar reclamações, redefiniu o alcance e o sentido de suas próprias decisões apontadas como parâmetros da reclamação”, visto que, sabidamente, “a abertura hermenêutica da jurisdição constitucional exige a utilização da reclamação com todas suas potencialidades instrumentais”.

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A Reclamação é disponível? Como poderia, se a ADI não o é?

A questão teórica a ser enfrentada pela dogmática constitucional, nesse contexto, é a seguinte: se a Reclamação é dotada de tão importante papel no exercício da jurisdição constitucional, a ela poderia ser aplicado, sem reservas, o instituto processual da desistência? Ou ainda: seria admissível a disponibilidade da reclamação, cuja renúncia dependeria de simples ato privativo do proponente sucedido de mera homologação pelo juízo competente?

Penso que a resposta é — e tem de ser — negativa, por conta da inevitável expansão do interesse de agir — não mais particular, porém público — após a proposição da reclamação constitucional. Em outras palavras: a Reclamação não pertence ao proponente; ela não tem donos; ela não pertence nem mesmo à Suprema Corte; ela é de interesse público, porque seu conhecimento e julgamento transcende.

Ora, a Reclamação não é uma ação comum ou qualquer (artigo 485, §5º, CPC). Aliás, a restrição à desistência pode ser facilmente encontrada no ordenamento jurídico em outras ações notadamente marcadas por seu caráter público: ação penal incondicionada (artigo 42, CPP) e ação civil pública (artigo 5º, §3º, Lei 7.347/85), por exemplo.

E, a meu ver, esse mesmo raciocínio se estende — naturalmente e por razões óbvias — às ações de controle de constitucionalidade, tanto concentrado quanto difuso. Como se sabe, segundo dispõe a Lei 9.868, uma vez proposta a ação direta, não se admitirá desistência (artigo 5º). Aplica-se o mesmo, por analogia, à arguição de descumprimento de preceito fundamental (ADPF 572, Rel. Min. Edson Fachin); e, ainda, aos recursos extraordinários, após o reconhecimento da repercussão geral (RE 693.456 RG), visto que uma tese há de ser fixada sobre a questão constitucional, “independentemente do interesse subjetivo que esteja em jogo”; ou, ainda, nos incidentes de resolução de demandas repetitivas, por força de lei (artigo 976, §1º, CPC).

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Repito: a palavra-chave é transcendência. E esse me parece o ponto central. Se nas ações e recursos envolvendo controle de constitucionalidade não se admite a desistência, então o que dizer da reclamação destinada a verificar a eficácia — leia-se, observância e cumprimento — do controle de constitucionalidade?

Tudo indica, por corolário lógico, que ninguém pode dispor da reclamação pelo mesmo motivo que ninguém pode dispor da ação direta de inconstitucionalidade. Qualquer entendimento contrário incorreria em inevitável paroxismo. Imagine-se, a reclamação — ação que controla o resultado do controle de constitucionalidade — assumiria uma conotação privatista, o que seria inconcebível em uma democracia constitucional, em que a teoria constitucional e a teoria do processo não podem mais ser confundidas com uma espécie da teoria geral do processo, tal qual ocorria antes do fenômeno da constitucionalização do Direito (e do processo!).

Minha conclusão, portanto, caminha na seguinte direção: toda Reclamação com fundamento na garantia da autoridade das decisões da Suprema Corte deve, obrigatoriamente, ser conhecida e processada até seu julgamento final, por conta do interesse público que lhe subjaz, salvo se o relator entender pela negativa de seguimento, na forma regimental.

O caráter eminentemente público da Reclamação e a necessidade de superação da timidez jurisprudencial atual sobre o tema

Quando alguém provoca o Supremo, todos queremos saber o que a Corte pensa a respeito. Isso porque o interesse é público.

Há, entretanto, uma timidez da jurisprudência sobre a matéria: (1) inadmissibilidade da desistência de reclamação cujo mérito já tenha sido decidido (por todas, Rcl 66.885, Rel. Min. Cristiano Zanin; Rcl 66.866, Rel. Min. Carmen Lúcia); (2) inadmissibilidade da desistência de reclamação cujo julgamento já tenha sido iniciado (por todas, Rcl 1.503-QO, Rel. Min. Ricardo Lewandowski; Rcl 60.811, Rel. Min. André Mendonça).

Nada que não possa ser corrigido e adaptado. Em nome do interesse público. É um easy case. Portanto, avancemos. E, com isso, não me refiro a nenhum overruling, nem distinguishing, mas apenas a necessidade de expandir a ratio decidendi que tem orientado a Corte, dando mais um passo na defesa da jurisdição constitucional, tal qual feito em 1952, quando a reclamação foi gerida pelo próprio Tribunal.

E os fundamentos, além de fortes, são precisos. Para isso, trago à colação uma coisa nova no âmbito da interpretação-aplicação do Direito. Falo da hermenêutica da função. Ela está presente no clássico exemplo de Recaséns Siches sobre os “cães na plataforma do trem”. Se uma lei proíbe a entrada de cães na estação, não precisamos colocar uma nota de rodapé ou uma infinidade de parágrafos para dizer que “estão proibidos também ursos e quaisquer animais perigosos”. Tampouco não é necessário que o legislador explicite que, ao proibir cães, não se está a proibir o cão-guia do cego.

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E por que é assim? Simples, porque há uma função. E a hermenêutica da função traz a lume o implícito. Desse modo, o velado, o não-dito, exsurge claramente; ele aparece na função. A hermenêutica da função vem desenvolvida indiretamente por  Wittgenstein, , assim como por Lon Fuller e, em especial, por Alasdair MacIntyre, no livro After Virtue. Vejamos seu argumento: das premissas que dispõem, por exemplo, que (a) “o relógio não marca as horas corretamente” e (b) “o fazendeiro teve um índice de produção maior do que todos os outros”; seguem-se, logicamente, as conclusões: (aa) “o relógio é ruim” e (bb) “o fazendeiro é bom”.

Isso ocorre porque, explica MacIntyre, “o conceito de relógio não pode ser definido independentemente do conceito de um bom relógio e o conceito de fazendeiro independentemente do bom fazendeiro”.

Voltando ao exemplo dos cães na plataforma, retira-se da descrição “proibido cães na plataforma” a obviedade de que o cão-guia do cego não está proibido. E que, sim, ursos estão vetados. Isso se deve à existência de uma hermenêutica da função, da coisa, do objeto, da lei. Há uma questão implícita que, se interpretada a contrario sensu, conspurcaria o sentido originário da norma, como ocorreria se afirmássemos que, por estarem proibidos apenas cães, ursos seriam permitidos. Qual sentido teria isso?

Numa palavra: sendo a reclamação uma ação de controle das ações de controle de constitucionalidade, é da sua própria função a indisponibilidade. Afinal, as discussões submetidas ao crivo da jurisdição constitucional sempre ultrapassam a esfera dos meros interesses subjetivos das partes. O que está em jogo, nesse caso, são direitos e garantias constitucionais. Públicos e indisponíveis, pois.

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