Suprema Corte dos EUA rejeita ardil das fabricantes de armas

A Suprema Corte dos Estados Unidos rejeitou, pela segunda vez em menos de três meses, uma tentativa ardilosa de vender armas no país sem ter de cumprir restrições impostas por lei federal a fabricantes e distribuidoras: a de oferecer pela internet conjuntos (ou kits) de peças para compradores montarem facilmente as armas em casa — as chamadas armas fantasmas (ghost guns).

Fabricantes de armas tentam driblar
a lei para vencer armas livremente
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No ano passado, o Birô de Álcool, Tabaco, Armas de Fogo e Explosivos (ATF — Alcohol, Tobacco, Firearms and Explosives) divulgou regras para a aquisição de armas fantasmas. Basicamente, as fabricantes e distribuidoras dessas armas têm de obedecer às mesmas regras impostas para a comercialização de armas normais, tais como ter número de série, registro e a obrigação de o comprador obter um atestado de bons antecedentes.

Sem número de série impresso na estrutura ou no receptor da arma, fica difícil para os órgãos de segurança rastreá-la em investigações de crimes. Sem atestado de bons antecedentes (background check), pessoas que não poderiam adquirir uma arma, como criminosos condenados ou acusados de violência doméstica, poderão fazê-lo sem dificuldades.

Fabricantes e distribuidoras que oferecem armas fantasmas na internet resolveram contestar essas regras na Justiça. Para isso, moveram uma ação no Tribunal Federal da Região Norte, situado em Amarillo, Texas, que foi distribuída ao juiz federal Reed O’Connor.

Esse é um dos dois tribunais de preferência dos conservadores-republicanos para mover ações politicamente motivadas, com a certeza de uma decisão favorável dos juízes Reed O’Connor e Matthew Kacsmaryk, dentro do esquema de judge-shopping dos EUA. Ambos foram nomeados pelo ex-presidente Donald Trump. O outro é o da Região Sul do Texas, onde atua o juiz Drew Tipton, nomeado pelo ex-presidente George Bush.

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Como era de se esperar, O’Connor decidiu a favor das fabricantes das armas fantasmas, em junho deste ano. Ele argumentou que os kits são isentos das leis federais que exigem atestado de bons antecedentes e número de série porque “partes de armas não são armas”. E completou: “Portanto, o kit não pode ser classificado como uma arma. Só as armas de fogo completas podem”.

Da mesma forma, o juiz entendeu que receptores de armas quase completos, vendidos nos kits das armas, são isentos porque “o que pode se tornar ou pode ser convertido em um receptor funcional não é, em si, um receptor”.

Em agosto, a Suprema Corte rejeitou, por 5 votos a 4, a decisão de O’Connor. Em vez disso, concordou com o argumento do Departamento da Justiça, que argumentou que as estruturas e os receptores de armas fantasmas são facilmente acabados: “Em alguns casos, para construir uma arma funcional basta fazer uma única perfuração na estrutura do kit; em outros, basta lixar um pequeno trilho de plástico”.

Assim, a Suprema Corte declarou que fabricantes e comerciantes de armas não podem se evadir da lei federal dessa forma ardilosa. “As leis se aplicam a qualquer arma que foi projetada para ser facilmente convertida para expelir um projétil pela ação de um explosivo. Isso se aplica à estrutura e ao receptor de armas montadas a partir de um kit de peças.”

Poder excessivo
Porém, o ministro Neil Gorsuch mencionou, em voto dissidente, que alguns membros da Suprema Corte, incluindo ele próprio, preocupam-se com o poder excessivo de juízes singulares de tribunais federais, que tomam decisões que estabelecem políticas para todo o país. No caso da decisão de O’Connor, por exemplo, todas as fabricantes e distribuidoras de armas fantasmas do país ficariam isentas das exigências da lei federal.

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“Um juiz federal deve pensar duas vezes e, talvez, mais duas vezes antes de tomar uma decisão de tão ampla repercussão”, ele escreveu.

A pedido das empresas, O’Connor concordou que essa ressalva abria uma brecha para emitir uma nova decisão sobre as armas fantasmas. Em setembro, o juiz decidiu que apenas as duas companhias que eram partes da ação ficariam isentas das exigências da lei federal. As demais seriam obrigadas a cumprir a lei se quisessem vender armas fantasmas.

De qualquer forma, essa é uma decisão que teoricamente teria um escopo limitado, mas que, na prática, tem efeito em todo o país, uma vez que as duas empresas vendem os kits de armas fantasmas pela internet e qualquer um, em qualquer estado, pode encomendá-los.

De volta à Suprema Corte, os ministros suspenderam, em uma ordem de apenas um parágrafo, e outra vez por 5 votos a 4, os efeitos das decisões de O’Connor temporariamente — ou até que o Tribunal Federal da 5ª Região volte a julgar a questão, agora de acordo com as orientações da Suprema Corte.

O Tribunal da 5ª Região, o mais conservador-republicano do país e que tem um histórico de decisões a favor de causas republicanas, havia concordado com a primeira decisão de O’Connor. Não será surpresa se a disputa chegar à Suprema Corte pela terceira vez.

Os votos a favor do governo foram das três ministras liberais — Sonia Sotomayor, Elena Kagan e Ketanji Brown Jackson — e dos ministros conservadores John Roberts (presidente da corte) e Amy Coney Barrett. Votaram a favor das fabricantes os ministros conservadores Clarence Thomas, Samuel Alito, Neil Gorsuch e Brett Kavanaugh.

O caso é Garland v. Blackhawk Manufacturing Group.

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Com informações adicionais de Vox, SCOTUS blog, Courthouse News, Sportskeeda, Pasadena Now e Spectrum News.

Fonte: Conjur