TST e o combate à dispensa discriminatória fundada na Súmula 443

A Súmula nº 443 do Tribunal Superior do Trabalho prevê ser discriminatória a dispensa de empregado soropositivo (HIV) ou acometido por outra doença grave capaz de provocar estigma ou preconceito. Assim, uma vez dispensado o empregado, este terá direito à reintegração ao emprego, em vista da invalidade do ato. O entendimento supra foi publicado ao final de setembro de 2012, há mais de dez anos, após a análise minuciosa de aproximadamente 23 precedentes.

Nesta oportunidade, o TST, diante dessa nefasta discriminação, chegou à conclusão da necessidade de elaboração de uma súmula capaz de consolidar a proteção desses empregados, vítimas frágeis do abuso do poder diretivo dos empregadores.

As súmulas são, para a doutrina majoritária, fontes do Direito. Afinal, seus enunciados traduzem a jurisprudência dominante de determinado órgão ou tribunal sobre algum tema até então controvertido e causador de instabilidade e insegurança jurídica.

Ora, o empregado já se encontra naturalmente em condição de vulnerabilidade perante o empregador, seja ela técnica, econômica, financeira etc. Por tal razão, é necessária a proteção jurídica daqueles ainda mais fragilizados por questões de saúde, que podem ter suas chances no mercado trabalho minadas e, com isso, extinta a fonte de renda para a garantia de suas necessidades básicas.

Tratava-se e ainda se trata de questão afeta à dignidade da pessoa humana, fundamento de nossa República Federativa, de modo que, não poderia o TST tomar decisão diferente. Em resumo, com o posicionamento adotado, o Tribunal Superior do Trabalho tem pacificado o entendimento de que o direito potestativo do empregador, em dispensar empregados sem justo motivo encontra limites.

Esses limites são confirmados pelos princípios constitucionais assecuratórios do direito à vida, ao trabalho, à dignidade da pessoa humana e a não discriminação, respaldados pelos artigos 1º, III e IV, 3º, IV, 5º, caput e XLI, 7º, I, 170 e 193 da Constituição Federal de 1988; pelas previsões contidas na Lei nº 9.029/1985, que vedam práticas discriminatórias para efeitos admissionais ou de permanência na relação de trabalho; além das Convenções 111 e 117 da Organização Internacional do Trabalho.

Ocorre que, a expressão “outra doença grave que suscite estigma ou preconceito” é aberta e inexata. A consequência disso são as dúvidas para os próprios trabalhadores e empregadores em identificá-las no momento de dispensa, mas, principalmente, um desafio interpretativo para os juízes e tribunais trabalhistas.

O problema reside no fato de que ainda não existe um rol certo e determinado que contenha quais doenças seriam consideradas graves a ponto de gerar estigma ou preconceito. Deste modo, cabe aos julgadores determinarem, nos casos concretos, quais seriam tais doenças ou situações, o que provoca críticas dos positivistas, os quais sugerem a violação de princípios como o da legalidade, da reserva legal e da separação dos poderes, além do controle do poder potestativo do empregador.

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Críticas à parte, em caso de relatoria do ministro Maurício Godinho Delgado, datado de março de 2023, a 3ª Turma do TST reconheceu a dispensa discriminatória de empregada que foi despedida no curso da licença médica, e com perícia agendada no INSS, por ser acometida com quadro grave de TEPT (transtorno de stress pós-traumático) e TP (transtorno de pânico). Vejamos:

“A) AGRAVO DE INSTRUMENTO. RECURSO DE REVISTA. […]. Agravo de instrumento provido. B) RECURSO DE REVISTA. PROCESSO SOB A ÉGIDE DA LEI 13.015 /2014 E ANTERIOR À LEI 13.467 /2017. DISPENSA DISCRIMINATÓRIA. EMPREGADO PORTADOR DE DOENÇA PSIQUIÁTRICA INCAPACITANTE. INDENIZAÇÃO POR DANO MORAL DECORRENTE DA DISPENSA DISCRIMINATÓRIA. Presume-se discriminatória a ruptura arbitrária do contrato de trabalho, quando não comprovado um motivo justificável, em face de circunstancial debilidade física causada por doença grave. Esse entendimento pode ser abstraído do contexto geral de normas do nosso ordenamento jurídico, que entende o trabalhador como indivíduo inserto numa sociedade que vela pelos valores sociais do trabalho, pela dignidade da pessoa humana e pela função social da propriedade (arts. 1º, III e IV, e 170, III e VIII, da CF). Não se olvide, outrossim, que faz parte do compromisso do Brasil, também na ordem internacional (Convenção 111 da OIT), o rechaçamento a toda forma de discriminação no âmbito laboral. Na esfera federal, sobressai o disposto no art. 1º da Lei 9.029 /1995, que veda a adoção de qualquer prática discriminatória e limitativa para efeito de acesso à relação de trabalho, ou de sua manutenção, por motivo de sexo, origem, raça, cor, estado civil, situação familiar, deficiência, reabilitação profissional, idade, entre outros. Na esteira desse raciocínio, foi editada a Súmula 443 /TST, que delimita a pacificação da jurisprudência trabalhista neste aspecto, com o seguinte teor: “Presume-se discriminatória a despedida de empregado portador do vírus HIV ou de outra doença grave que suscite estigma ou preconceito. Inválido o ato, o empregado tem direito à reintegração no emprego”. Importante registrar que, seguindo a diretriz normativa proibitória de práticas discriminatórias e limitativas à manutenção da relação de trabalho, tem-se que a não classificação da doença do empregado como suscetível de causar estigma ou preconceito, a teor da Súmula 443 desta Corte Superior, não constitui, por si só, em óbice à constatação de dispensa discriminatória, quando tal prática ilícita emergir do acervo probatório produzido nos autos. Nesse passo, se o ato de ruptura contratual ofende princípios constitucionais basilares, é inviável a preservação de seus efeitos jurídicos. […]. Na hipótese, extrai-se do acórdão recorrido que ” a reclamante laborou de 07/12/2011 a 04/05/2017, sendo dispensada imotivadamente com aviso prévio indenizado. Todavia, há provas nos autos de que, à época da dispensa, a autora não gozava de capacidade laboral e, portanto, não poderia ter sido desligada “. O TRT afirmou que, do conteúdo probatório constante dos presentes autos, extrai-se que há atestado – assinado em 20/04/2017 – por médica psiquiatra, confirmando que a Obreira encontrava-se em tratamento psiquiátrico, no qual consta recomendação de afastamento do trabalho até a data da perícia – 09/06/2017. […] Nesse contexto, a Corte de Origem manteve a sentença que entendeu ser devida a reintegração da Obreira, em razão de ter sido dispensada doente. […] Não obstante todas essas premissas, entendeu que não houve dano moral e indeferiu o pagamento de indenização por dano moral em razão de despedida discriminatória. Nesse cenário, evidencia-se dos elementos fáticos delineados pela Corte Regional que a Reclamante foi dispensada doente e que a Ré detinha conhecimento sobre o seu quadro de saúde – de incontestável natureza grave. Desse modo, considera-se que a decisão regional, ao entender que não houve discriminação na dispensa da Reclamante, foi proferida em dissonância ao entendimento consubstanciado na Súmula 443 /TST. Registre-se, outrossim, que a conduta discriminatória é gravemente censurada pela ordem jurídica, especialmente a partir dos comandos constitucionais de 5.10.1988 (Preâmbulo do Texto Máximo; art. 1º, III; art. 3º, I e IV; art. 5º, caput e inciso I; art. 5º, III, in fine, todos preceitos da Constituição da República). O caráter discriminatório da dispensa restou evidenciado nos autos, mormente pelos dados fáticos constantes do acórdão regional – o que não foi desconstituído pela Reclamada, haja vista que não há notícias, no acórdão recorrido, de que a dispensa tenha validamente decorrido de outro motivo. Forçoso concluir, desse modo, que é inequívoco o dano moral sofrido pela Reclamante, pois a caracterização da dispensa discriminatória configura ato ilícito que atentou contra a sua dignidade, a sua integridade psíquica e o seu bem-estar individual – bens imateriais que compõem seu patrimônio moral protegido pela Constituição -, ensejando a reparação moral, conforme autorizam os incisos V e X do art. 5º da Constituição Federal e os arts. 186 e 927, caput, do CCB/2002. Desse modo, considera-se que o Tribunal Regional, ao entender que não houve discriminação na dispensa da Reclamante, decidiu em contrariedade ao entendimento consubstanciado na Súmula 443 /TST. Recurso de revista conhecido e provido”. (TST, AIRR -1000934-94.2017.5.02.0702, 3ª Turma, relator ministro Maurício Godinho Delgado, DEJT 31/3/2023).

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O caso é bastante significativo, tendo em vista que o recurso de revista da trabalhadora foi conhecido justamente por contrariedade à Súmula 443 do TST e ao artigo 186 do CC/2022, quando a reclamante se viu frustrada em suas tentativas de receber a devida proteção e reparação jurídica, tanto em primeira, quanto em segunda instância.

Destaca-se que foi dado provimento ao recurso de revista para reformar o acórdão do Tribunal Regional e reconhecer o término da relação de trabalho por ato discriminatório do empregador, acrescentando-se a condenação ao pagamento de indenização por danos extrapatrimoniais, no importe de R$ 30 mil.

Na inicial, a trabalhadora pretendeu o reconhecimento da dispensa discriminatória, a reintegração ao emprego, a manutenção do plano de saúde fornecido pelo empregador e a indenização por danos morais. As principais alegações da autora estavam fundadas em prova documental.

Contudo, o juízo de 1º grau não reconheceu a dispensa discriminatória e igualmente julgou improcedente o pedido de indenização por danos extrapatrimoniais da autora, apesar de o conjunto probatório o levar a determinar sua reintegração e a manutenção do plano de saúde.

Restou comprovado que o empregador tinha conhecimento de que a trabalhadora estava em licença e, mesmo assim, a convocou para realizar exame de retorno, tendo esta sido dispensada dentro do ambulatório médico, por representantes da empresa.

A decisão a quo foi confirmada pelo acórdão da 6ª turma do Tribunal Regional do Trabalho da 2ª Região que, apesar de manter a reintegração ao emprego e a consequente manutenção do plano de saúde, mesmo após recurso da reclamada, negou provimento ao recurso ordinário da reclamante não reconhecendo a dispensa discriminatória e negando o direito à indenização, sob o fundamento de que o quadro psicológico que acometeu a trabalhadora, “embora lamentável, não suscita estigma ou preconceito”.

Ora, a ordem cronológica dos fatos e o conjunto probatório escancararam a discriminação perpetrada pelo empregador em face da empregada. Porém, somente na instância extraordinária trabalhista foi dada a devida atenção ao caso concreto, mesmo não havendo motivos de ordem técnica, financeira, econômica, ou jurídica, para sua dispensa.

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Assim, a importante decisão do TST, que se valeu da interpretação analógica, finalística e teleológica da Súmula 443, felizmente, garantiu a proteção necessária à trabalhadora no caso em comento, após a dispensa discriminatória sofrida.

Fonte: Conjur