O Uruguai está localizado estrategicamente posicionado no centro entre Brasil e Argentina, sendo o segundo menor território de um país sul-americano depois do Suriname. Com população de aproximadamente 3,4 milhões de habitantes, o Uruguai é terceiro país menos populoso da América do Sul, perdendo apenas para o Suriname e a Guiana.
O Uruguai é o único país da América do Sul que ostenta a condição de full democracy (democracia plena) de acordo com Índice de Democracia publicado pela unidade de inteligência da revista The Economist [1]. Segundo o ranking, o Uruguai é o país mais democrático da América do Sul com pontuação média de 8.66 sobre 10. Essa pontuação inclui quatro categorias: processo eleitoral e pluralismo, funcionamento do governo, participação política, cultura política e liberdades civis. Na categoria processo eleitoral e pluralismo, o Uruguai alcança impressionantes 10 pontos! Na categoria liberdades civis, recebeu 9.71, o que, novamente, impressiona.
Mas como podemos traduzir esses números?
Essas quatro categorias são decorrentes de uma cultura uruguaia de respeito a sua democracia constitucional, desde a redemocratização em 1985, assim entendida como uma democracia liberal representativa com ampla participação popular.
No início do ano de 2024, os deputados do Partido Nacional [2], de centro direita, apresentaram um projeto de lei para combater os chamados “deepfakes”, um acrônimo usado para se referir a áudios, imagens ou vídeos gerados por edição ou por meio de inteligência artificial (IA), que imitam a aparência e a voz característica de uma pessoa.
No projeto, buscaram garantir que a campanha eleitoral não seja contaminada por anúncios e notícias enganosas, e propõe penas de um a seis anos de prisão para quem gerar vídeos falsos sobre políticos ou pré-candidatos presidenciais de diferentes partidos.
Na véspera das eleições presidenciais, os partidos políticos uruguaios firmaram com as principais lideranças de imprensa um pacto onde se comprometeram a “não gerar ou promover notícias falsas ou campanhas de desinformação em detrimento de oponentes políticos” [3].
As eleições presidenciais de 2024, tanto no primeiro, como no segundo turno, transcorreram sem intercorrências relevantes, tendo sido Yamandú Orsi, da Frente Ampla, eleito no segundo turno, por pequena margem de diferença em relação ao candidato do Partido Nacional, Álvaro Delgado.
No último mês, além da eleição presidencial, os uruguaios também foram as urnas para decidir duas questões: uma relativa a direitos sociais sobre a forma de previdência social, em plebiscito impulsionado pela central única sindical (PIT-CNT) [4], onde se propunha a redução da idade mínima para aposentadoria de 65 para 60 anos e a abolição da previdência privada, alterando o art. 67 da Constituição; e outra relativa às liberdades individuais, em plebiscito sobre a autorização de operações policiais nas residências durante a noite, modificando o artigo 11 da Constituição. Ambos foram rejeitados.Na forma do artigo 331 da Constituição uruguaia, uma reforma constitucional pode ser iniciada por participação popular direta, desde que seja alcançado o percentual mínimo de 10% dos cidadãos, por iniciativa de dois quintos dos membros da Assembleia Geral (Poder Legislativo). Em ambos os casos, a reforma só se efetivará se alcançada a maioria absoluta em votação popular ou plebiscito.
Além disso, também podem os poderes legislativo e executivo iniciarem uma reforma constitucional, cujo projeto deve ser aprovado pela maioria absoluta dos membros da Assembleia Geral e, nesse caso, deve o poder executivo convocar uma Convenção Nacional Constituinte que deliberará sobre a reforma da Constituição e submeterá o projeto ao referendo popular.
Por fim, as leis constitucionais (ou de hierarquia constitucional) podem ser aprovadas por dois terços do total de membros de cada casa legislativa, mas para efetivamente modificarem a Constituição precisam de concordância da maioria absoluta do eleitorado, que deve ser convocado especialmente para votação das referidas leis.
Essa complexa fórmula integrada de máxima participação popular direta, em sinergia com a democracia representativa, para decidir temas estruturais da democracia constitucional uruguaia já levou a população a decidir sobre temas capitais e sensíveis como: a derrogação da lei de anistia; a independência do orçamento do Poder Judiciário; estatização da água potável; monopólio da empresa nacional de petróleo (Ancap); reformas eleitorais; reformas previdenciárias; diminuição da idade penal, entre outras.
Com os exemplos atuais e das práticas democráticas constantes, desde que o Uruguai recuperou sua democracia constitucional em meados dos anos 80 do século passado, é possível ver um processo eleitoral limpo e democrático, que garante eleições autênticas no país, associada a uma cultura de democracia e de participação popular constante na tomada de decisões políticas fundamentais.
A rejeição dos uruguaios pelo modelo de polarização e a preferência por moderação fazem o país avançar com largos passos de vantagem relativamente as liberdades civis, políticas e econômicas em relação aos demais países da região.
A título de exemplo, o Uruguai foi o primeiro país sul-americano a estabelecer o aborto legalizado e seguro, desde 2012. É o primeiro país a prever a isenção de pena no caso do chamado homicídio piedoso, quando o autor do homicídio comete o crime em razão de reiteradas súplicas da vítima, isso desde 1934. Em 2013, o Uruguai se tornou o primeiro país do mundo a legalizar e regulamentar a produção e o consumo da cannabis.
A condição de democracia plena do Uruguai é condizente com outra conquista do país: o primeiro colocado no Índice de Estado de Direito do World Justice Project [5].
Bons perdedores
Toda essa prosperidade de direitos políticos e civis faz com que o Uruguai receba ainda outro título: o de sexto país mais livre do mundo, obviamente o mais livre da América do Sul, de acordo com o Freedom in the World, da ONG americana Freedom House [6].
Com isso, lembro a música de Jorge Drexler que diz “¿quién le roba un beso a Maracaná? Uruguay nomás. Uruguay nomás…”, que faz alusão aos gritos da torcida da garra charrúa pela seleção de futebol, a celeste, quando comemora o feito histórico de ter ganhado a Copa do Mundo do Brasil em pleno Maracanã, em 1950.
Precisamos reconhecer racionalmente nossa derrota em relação aos uruguaios no futebol e na vida democrática, como um incentivo a aprimorarmos o nosso Estado Democrático de Direitos e as suas liberdades de forma plena na América do Sul. Quem sabe assim, poderíamos deixar essa derrota de 7×1 para traz, dessa vez não contra a Alemanha, mas contra o Uruguai, que nos dá uma goleada de democracia constitucional na prática. Até que consigamos, vamos seguir a música orgulhosa da torcida e dizer: “Uruguay nomás, Uruguay nomás”! … é o Uruguai e nenhum mais [7].
[1] https://www.eiu.com/n/campaigns/democracy-index-2023/
[2] http://www.diputados.gub.uy/data/docs/LegActual/Repartid/R1098.pdf
[3] https://www.undp.org/es/Firma_reafirmacion_pacto_etico_desinformacion
[4] https://ladiaria.com.uy/politica/articulo/2024/4/el-pit-cnt-alcanzo-el-minimo-de-270000-firmas-para-realizar-el-plebiscito-sobre-seguridad-social/
[5] https://worldjusticeproject.org/sites/default/files/documents/WJP-Global-ROLI-Spanish.pdf
[6] De acordo com os parâmetros o Uruguai alcança 96 pontos sobre 100 no medidor de respeito as liberdades https://freedomhouse.org/
[7] “Uruguai nomás” é uma expressão uruguaia que significa “Uruguai e nada mais” ou “Vamos, Uruguai!”. É usada para celebrar vitórias, conquistas e outras alegrias, e é considerada um ícone nacional. A expressão é uma abreviação de “Uruguai no más”, que por sua vez é uma abreviação de “Uruguai y nada más”.
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