30 anos do Plano Real: entre DRU e sistema de metas de inflação

O Plano Real completa 30 anos em 2024. Institucionalmente, sua origem coincide com a edição da Medida Provisória nº 542, de 30 de junho de 1994.

A MP nº 542/1994 foi reeditada e alterada diversas vezes até ser formalmente convertida na Lei nº 9.069, de 29 de junho de 1995, que “dispõe sobre o Plano Real, o Sistema Monetário Nacional, estabelece as regras e condições de emissão do Real e os critérios para conversão das obrigações para o Real, e dá outras providências”.

Entre os diversos instrumentos normativos que lhe subsidiaram a consecução ao longo dessas três décadas, destacam-se os institutos da Desvinculação de Receitas da União (DRU) e o Sistema de Metas de Inflação (SMI).

A desvinculação de receitas foi estabelecida e redesenhada sucessivas vezes nos artigos 71, 72, 76, 76-A e 76-B do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias (ADCT) ao longo dos seus 30 anos de vigência. O Sistema de Metas de Inflação, por seu turno, foi fixado pelo Decreto 3.088, de 21 de junho de 1999, onde persiste há 25 anos de forma relativamente estável, sem maiores alterações.

Originalmente, a desvinculação de receitas foi concebida como Fundo Social de Emergência (FSE), com posteriores redesignações para Fundo de Estabilização Fiscal (FEF) e desvinculação de receitas da União, a qual foi estendida ulteriormente aos estados e aos municípios, donde a tríade DRU, DRE e DRM.

O FSE foi instituído pela Emenda Constitucional de Revisão nº 1, de 1º de março de 1994, para viger até 1995, “com o objetivo de saneamento financeiro da Fazenda Pública Federal e de estabilização econômica”. Supostamente os recursos parcialmente desvinculados seriam “aplicados no custeio das ações dos sistemas de saúde e educação, benefícios previdenciários e auxílios assistenciais de prestação continuada, inclusive liquidação de passivo previdenciário, e outros programas de relevante interesse econômico e social”.

O decurso do tempo comprovou que a alegada finalidade de desvincular parcela significativa das receitas destinadas à seguridade social supostamente para custear as ações de saúde, previdência e assistência social era falaciosa. A bem da verdade, a razão estrutural dos instrumentos de desvinculação FSE/FEF/DRU era mitigar a relação de instrumentalidade entre as contribuições sociais e o Orçamento da Seguridade Social previsto nos artigos 165, §5º, III, 195, §2º, 198, §1º e 204, todos da Constituição de 1988.

Desde sua instituição até os presentes dias, foram 12 Emendas Constitucionais, que cuidaram — direta ou indiretamente — da desvinculação de receitas, prevendo-a, redesignando-a, ampliando-a e, sobretudo, prorrogando-a no ADCT. A tabela abaixo contempla os respectivos dados basilares:

Como se não bastassem tantas alterações, começa a ser aventada a 13ª emenda constitucional sobre a desvinculação de receitas, vez que o governo federal tem buscado alternativas de ajuste fiscal que mitiguem a necessidade de uma revisão imediata da Lei Complementar 200/2023 (Regime Fiscal Sustentável, alcunhado vulgarmente de “Novo Arcabouço Fiscal”) já em 2025.

A pauta que começa a ser ventilada na imprensa seria não só a de prorrogar a DRU para além de 31/12/2024, como também de estender seus efeitos sobre a sistemática dos pisos em saúde e educação. Tal proposta de ampliar o escopo da DRU para mitigar o alcance do dever federal de gasto mínimo em saúde e educação trata-se de um inconstitucional e incoerente retrocesso em relação ao artigo 5º da Emenda 59/2009 e artigo 2º da Emenda 103/2019, que, respectivamente, acrescentaram ao artigo 76 do ADCT os §§3º e 4º, visando a excluir tais recursos vinculados da incidência daquele instituto.

Aliás, a redação atualmente vigente dos artigos 76, 76-A e 76-B é contrária à inserção dos pisos em saúde e educação nas hipóteses de desvinculação de receitas da União, dos estados e dos municípios:

“Art. 76. São desvinculados de órgão, fundo ou despesa, até 31 de dezembro de 2024, 30% (trinta por cento) da arrecadação da União relativa às contribuições sociais, sem prejuízo do pagamento das despesas do Regime Geral de Previdência Social, às contribuições de intervenção no domínio econômico e às taxas, já instituídas ou que vierem a ser criadas até a referida data.

[…]

§ 2° Excetua-se da desvinculação de que trata o caput a arrecadação da contribuição social do salário-educação a que se refere o § 5º do art. 212 da Constituição Federal .

[…]

§ 4º A desvinculação de que trata o caput não se aplica às receitas das contribuições sociais destinadas ao custeio da seguridade social.

 Art. 76-A. São desvinculados de órgão, fundo ou despesa, até 31 de dezembro de 2032, 30% (trinta por cento) das receitas dos Estados e do Distrito Federal relativas a impostos, taxas e multas já instituídos ou que vierem a ser criados até a referida data, seus adicionais e respectivos acréscimos legais, e outras receitas correntes.

Parágrafo único. Excetuam-se da desvinculação de que trata o caput:

I – recursos destinados ao financiamento das ações e serviços públicos de saúde e à manutenção e desenvolvimento do ensino de que tratam, respectivamente, os incisos II e III do § 2º do art. 198 e o art. 212 da Constituição Federal;

[…]

Art. 76-B. São desvinculados de órgão, fundo ou despesa, até 31 de dezembro de 2032, 30% (trinta por cento) das receitas dos Municípios relativas a impostos, taxas e multas, já instituídos ou que vierem a ser criados até a referida data, seus adicionais e respectivos acréscimos legais, e outras receitas correntes.

Parágrafo único. Excetuam-se da desvinculação de que trata o caput:

I – recursos destinados ao financiamento das ações e serviços públicos de saúde e à manutenção e desenvolvimento do ensino de que tratam, respectivamente, os incisos II e III do § 2º do art. 198 e o art. 212 da Constituição Federal;

[…]”

Segundo José Roberto Afonso [1], “[…] vale criticar um pouco mais a ideia da desvinculação, que as autoridades federais enxergam como o caminho necessário para se racionalizar o gasto [público] e implantar políticas fiscais anticíclicas”, porque “[…] não há relação de causa e efeito — isto é, nem vincular, muito menos desvincular, por si só, asseguram boas ou más performances do gasto”. Embasam a afirmação em pauta as constatações feitas pelo citado autor (2004, p. 19-21) de que:

a) “num exemplo extremo, se as contribuições para a seguridade social fossem convertidas em impostos de livre aplicação, por si só, isso não significaria desobrigar a previdência social de pagar aposentadorias e pensões, nem mesmo aos que ainda trabalham, mas têm direitos adquiridos”; embora seja sempre “alegado que, sem tal processo [de desvinculação], seria impossível cumprir as metas fiscais, porém, as mais duras firmadas com o FMI, inclusive após a elevação da meta de superávit primário para patamar nunca observado na história recente, foram sucessiva e plenamente cumpridas”;

b) “após a implantação do caixa único do Tesouro Nacional, sempre há opção de simplesmente contingenciar as dotações orçamentárias e manter entesourado os recursos, como atalho mais curto para assegurar a geração do superávit”;

c) “no âmbito estadual e municipal, o atendimento das metas de superávit primário tem sido fruto justamente de uma vinculação: de proporção da receita corrente para pagamento mensal do serviço da dívida renegociada com o Tesouro Nacional”;

d) existe severa contradição no “discurso oficial recente de que a vinculação prejudica a eficiência e a eficácia da provisão de serviços sociais básicos, porque elas [as vinculações de receitas para a seguridade social e de percentual mínimo de gastos para saúde e educação] foram aprovadas no Congresso justamente com o objetivo inverso”;

e) enquanto “o pretexto [da desvinculação] foi de assegurar a continuidade do financiamento e da despesa com benefícios e serviços sociais básicos, inclusive para permitir a pactuação de uma nova divisão de responsabilidades entre esferas de governo que promovesse a descentralização das ações e também para custear o aumento dos gastos correntes resultantes das novas e maiores inversões esperadas”, efetivamente, “é inegável que a política fiscal do governo federal foi e continuará sendo beneficiada pela desvinculação de 20% de sua receita tributária”, sendo que “o maior efeito prático desta medida era liberar contribuições da seguridade (Cofins, CSLL) para financiar os benefícios dos servidores [públicos] inativos”, o que seria burla à diferenciação dos regimes geral e próprio de previdência social; e, enfim,

f) cumpre lembrar o relevante papel de poupança interna da “[…] vinculação que foi desenhada com um regime especial, visando gerar uma poupança pública no presente que financie o gasto futuro, ou mesmo procure evitá-lo — caso particular da destinação constitucional da contribuição sobre receitas (do PIS/PASEP) para aplicações através do BNDES e para custeio do seguro-desemprego, no âmbito do Fundo de Amparo aos Trabalhadores (o FAT)”.

Em meio a tantas controvérsias e inconsistências, fato é que a desvinculação — que fora criada para durar inicialmente dois anos — já se prolonga por três décadas. O supostamente provisório se perenizou de forma errática em meio a 12 Emendas Constitucionais (ECR nº 1/1994, bem como EC’s nº 10/1996, 17/1997, 27/2000, 42/2003, 56/2007, 59/2009, 68/2011, 93/2016, 103/2019, 126/2022 e 132/2023).

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Tamanho redesenho no arranjo constitucional da desvinculação de receitas (independentemente do nome que a veicule: FSE/FEF/DRU/DRE/DRM) contrasta com a manutenção praticamente inalterada do Decreto 3.088, de 1999, que fixou o Sistema de Metas de Inflação.

Passados 25 anos desde sua edição, não houve mudança significativa no Decreto 3.088, nem mesmo em função da edição da Lei Complementar 179, de 24 de fevereiro de 2021, que modificou profundamente o regime jurídico do Banco Central. A autoridade monetária passou a gozar de mandato fixo para seus dirigentes, para que pudesse não só perseguir as metas de inflação, mas também para que devesse institucionalmente “zelar pela estabilidade e pela eficiência do sistema financeiro, suavizar as flutuações do nível de atividade econômica e fomentar o pleno emprego”, na forma do parágrafo único do artigo 1º da LC 179/2021.

Muito embora a institucionalidade do Sistema de Metas de Inflação pareça mais estável, ela é, em essência, lacunosa. A forma como a política monetária tem sido conduzida no Brasil traz consigo severos impactos sociais, econômicos e fiscais, que mereceriam debate mais detido e aprimoramento intertemporal.

Diferentemente do que se sucede com a DRU, há uma interdição temática à reflexão sobre como aprimorar o devido processo da política monetária em que se dá o manejo da taxa básica de juros pelo Banco Central, visando a entregar a inflação dentro dos limites de oscilação da meta projetada pelo Conselho Monetário Nacional.

No Texto para Discussão 2403, do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada, Luís Carlos Magalhães e Carla Rodrigues Costa suscitam que as despesas financeiras decorrentes, majoritariamente, da atuação finalística do Banco Central seriam uma categoria ausente na tematização da agenda de ajuste fiscal do Brasil:

“a elevada despesa com serviços de juros da dívida pública federal é um fator importante que dificulta a obtenção do equilíbrio fiscal, como também o crescimento econômico do país. As evidências apresentadas no trabalho sugerem que a obtenção de equilíbrio fiscal sustentável requer alteração da atual institucionalidade da gestão da dívida pública, herdada do período de alta inflação. Além disso, por diversas regras de funcionamento dos mercados primários e secundários da dívida pública, discutidas no trabalho, este equilíbrio impede que a despesa pública com serviço de juros convirja para padrões internacionais. Ao custo fiscal do arranjo institucional da gestão da Dívida Pública Mobiliária Federal interna (DPMFi), somam-se os custos das complementaridades institucionais construídas nas últimas décadas com a política monetária e cambial. Essas complementaridades criam uma rede de arranjos institucionais com atributo de path dependence, o que dificulta sua alteração de forma a reduzir esses custos fiscais.” (Magalhães; Costa, 2018, p. 7)

Larissa Dornelas e Fábio Terra oferecem diagnóstico semelhante sobre o mercado da dívida pública no Brasil, que congrega tanto a gestão de liquidez da política monetária, quanto o resultado da política fiscal no âmbito do Sistema Especial de Liquidação e Custódia (Selic):

“[…] houve no Brasil uma fusão dos mercados monetário e de dívida pública com a criação do Sistema Especial de Liquidação e Custódia (SELIC), em 1979, de modo que se passou a ter no País um único e grande mercado de dívida pública, chamado de mercado SELIC, no qual se marca a taxa básica de juros no Brasil, a taxa Selic. Nele utilizam-se os mesmos títulos públicos, emitidos pelo Tesouro Nacional (TN), para a realização tanto da política monetária quanto para a gestão da dívida pública. Dessa forma, no mercado SELIC instrumentalizam-se operações de mercado aberto, além de se transacionarem títulos para fins fiscais, já que todas as transações que envolvem títulos públicos se dão em seu âmbito.

[…] a estrutura do sistema financeiro nacional (SFN) convencionou-se e habitou-se com o perfil da circulação de títulos no tempo da zeragem automática e da alta inflação: a demanda por ativos financeiros centra-se em compor carteira com investimentos de curto prazo, com liquidez elevada, que gere rentabilidade com baixo risco.

[…] por conta da pós-fixação dos títulos públicos componentes da dívida mobiliária (inclusive nos usados nas operações compromissadas), a taxa de juros básica do BCB precisa permanecer em patamares elevados para ter eficácia no controle inflacionário. Porém, como esta taxa é a mínima que remunerará outros ativos no País, inclusive do rendimento dos títulos públicos para fins fiscais, gera-se assim, uma contaminação da política monetária na gestão da dívida pública, cuja volatilidade da taxa Selic, quando ocorre, impregna-se nos juros dos títulos da política fiscal e, dada a elevada taxa básica historicamente praticada, tem-se um alto custo para o financiamento do governo. Como se não bastasse o alto e volátil custo do financiamento da dívida pública, cria-se um ciclo vicioso: cobram-se altos prêmios pela falta de credibilidade de um governo que emite dívida de curto prazo e, com a continuidade desse perfil de dívida, o custo dela aumenta.”

As análises coincidem, mas sequer chegam a ser debatidas amplamente nas arenas públicas mais expressivas de reflexão sobre os rumos das contas públicas, a despeito de as despesas com juros alcançarem cerca de 8% do PIB ao ano. Nesse contexto, soa contraditória, quando não enviesada a preferência por pautar a desvinculação dos gastos sociais (pisos em saúde e educação, garantia de que os benefícios da previdência e da assistência social não sejam inferiores ao salário mínimo etc), antes de qualquer retomada séria desse ajuste ausente sobre as despesas financeiras.

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Neste aniversário de 30 anos do Plano Real, desvendar tamanho impasse é ponto de partida e dever de equidade, para que seja possível tanto lhe corrigir os rumos, quanto lhe resguardar sustentabilidade e legitimidade para as próximas décadas.


[1] AFONSO, José Roberto. LRF: por que parou? Rio de Janeiro, 2004, p. 19-21.

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