O que o jogo de cartas Uno ensina sobre a reforma tributária?

Nesta onda de filmes que remetem a brinquedos clássicos, já se cogitam de películas sobre a boneca PollyPocket e sobre o jogo de cartas Uno. Não desejo aqui discutir os filmes, ou a mensagem subjacente à postura da Barbie ou do Ken no mais recente filme deste naipe, algo que, conquanto interessante, transbordaria em muito os limites formais e materiais desta coluna. Mas um livro, relacionando o jogo de cartas Uno à Teoria do Direito, este ainda precisa ser escrito.

O Direito é uma realidade institucional (John Searle), tal como o jogo Uno, compondo-se de regras que constituem realidades novas, que só existem porque se pactua sua existência. Também preveem hipóteses e prescrevem condutas a serem atendidas se e quando essas hipóteses acontecerem, suscitando dúvidas sobre se as regras são aplicáveis a esta ou àquela situação, sobre qual o sentido das regras, o que efetivamente prescrevem, sobre se incidiram etc.

Ocorreu a hipótese de incidência? O fato efetivamente ocorrido se subsume a ela? É o que se discute quando alguém, diante de carta com o número sete sido lançada sobre a mesa — e que obriga todos a permanecerem em silêncio — produz leve ruído com a boca, e se inicia uma discussão sobre se aquilo foi, ou não, uma “fala”. A pessoa ia começando a falar, percebeu o deslize, e transformou a fala em um bocejo, uma tosse ou um espirro, para disfarçar. Ou, diversamente, espirrou mesmo, mas de forma ruidosa. Incide a regra? Você, leitora, se já brincou de Uno, certamente conhece alguma história — e talvez uma briga — em torno do sentido, do alcance e da aplicabilidade das regras deste jogo.

Qual o sentido do texto normativo? Quando se coloca uma carta com o sete, que, já se disse, obriga todos a ficarem em silêncio, o silêncio deve ser mantido por uma rodada completa, ou até que algum jogador coloque outro sete? Surge aí mais espaço para discussão, que pode ser acalorada ao ponto de pôr em risco amizades ou namoros.

Já curioso sobre as relações entre o jogo e a Teoria do Direito, e usando o primeiro como recurso didático para ensinar aos meus alunos institutos da segunda, chegou-me uma inusitada história, vivida por uma amiga durante sua juventude, quando fez intercâmbio no exterior: uma criança da qual ela eventualmente era baby-sitter gostava muito do jogo (que minha amiga levara consigo do Brasil), mas não conhecia bem suas regras nem falava português. Minha amiga, jogando com a criança, quando estava perdendo, mudava um pouco as regras, dando-lhes interpretação peculiar e “inovadora”. Se questionada, lia com toda a autoridade as instruções constantes do manual em português, traduzindo-as ao seu gosto para o idioma da criança. Com um sorriso levemente maligno, alegou ser essa sua suave e inofensiva vingança pelas muitas peraltices que tinha de aguentar. O episódio me remeteu à Igreja Católica na Europa Medieval, quando as bíblias estavam todas escritas em latim, idioma que a imensa maioria da população, analfabeta, sequer conhecia. A Igreja então dizia que a bíblia determinava o que ela, sua autorizada intérprete, queria. Lembra-nos, ainda, da importância da transparência e da cognoscibilidade das leis e demais atos normativos. Quando as leis são escritas de modo não facilmente compreensível, incrementa-se o risco de interpretações arbitrárias e manipulativas.

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Pode-se com jogo, ainda, ilustrar a discussão sobre as fontes do direito, quando se discute a legitimidade de uma interpretação dada a uma regra, em momento de conflito, e se vai buscar a caixa, o manual de instruções, ou algum site na internet onde estão as “verdadeiras” regras, se recorrem a terceiros para dirimi-lo, consultam-se amigos versados e considerados autorizados no jogo etc.

Os exemplos são muitos, e talvez fiquem para o livro a ser escrito. Por enquanto, hoje nesta coluna, pretendo examinar apenas a necessidade de as regras serem claras, e previamente conhecidas por todos, para que com isso se evitem manipulações, ou mesmo se frustre a dignidade e a liberdade de quem precisa conhecer previamente as consequências de suas condutas para poder decidir autonomamente como se conduzir. E pretendo fazê-lo tendo em mente o texto aprovado pela Câmara dos Deputados da Proposta de Emenda Constitucional 45/2019, da “reforma tributária”. Sobretudo porque, em se tratando de projeto ainda em gestação, a clareza do texto é indispensável também ao devido processo legal legislativo, e à própria democracia, com reflexos sobre a legitimidade do que se aprova.

Há inúmeros aspectos que podem e merecem comentário e exame profundo, quanto ao texto da PEC. Mas pontuo apenas dois, nos quais a falta de clareza pode fazer com que depois se leia o que se quiser na caixa do jogo escrito em língua enigmática, ou na Constituição, se aprovado o texto da proposta: (1) o imposto seletivo será não cumulativo? (2) IBS e CBS se poderão sobrepor a outros impostos, como o ITBI ou o IOF?

Nenhum desses pontos parece claro, e depois será possível ler na Constituição o que se quiser ler. Melhor deixar claro agora, para que as decisões sobre o que está sendo aprovado sejam conscientes.

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Quanto à não cumulatividade do imposto seletivo, o texto da PEC não é explícito em afirmar se ela será, ou não, adotada. Mas estabelece que o imposto poderá incidir na produção, na importação ou na comercialização de bens e serviços prejudiciais à saúde e ao meio ambiente, deixando espaço para que o legislador estabeleça sua incidência em todas essas etapas, cumulativamente. Se um produto prejudicial ao meio ambiente for importado, usado como insumo para a fabricação de outro igualmente nocivo, depois revendido e passando por dois ou três intermediários até seu consumo final, haverá inúmeras incidências? Será possível abater em cada uma delas, o montante incidente nas anteriores? Caso não seja possível o abatimento, o ônus do tributo será maior não porque o produto é mais nocivo, mas só porque se submete a mais operações antes de ser consumido? Serviços nocivos poderão abater créditos do imposto seletivo já incidente sobre insumos nocivos? Nada disso está claro, e minha amiga, lendo as instruções na caixa do Uno para a criança que jogava com ela e não falava português, vai poder dizer que as regras significam o que ela quiser que signifiquem.

O mesmo pode ser dito do âmbito de incidência do IBS e da CBS. Estabelece-se que incidem sobre qualquer operação com bens e serviços, sendo os primeiros tangíveis ou intangíveis, materiais ou imateriais. Abrangerá operações com bens imóveis, em duplicidade com o ITBI?

Não satisfeito com a amplitude da noção de “bens”, o texto, ao tratar da definição de serviço, estabelece que “a lei complementar de que trata o caput poderá estabelecer o conceito de operações com serviços, seu conteúdo e alcance, admitida essa definição para qualquer operação que não seja classificada como operação com bens” (§ 7º do artigo 156-A). Qualquer operação que não seja classificada como sendo “com bens”, poderá ser uma operação com serviços, de sorte a ser abarcada pelo IBS? E se se tratar de operação relativa a títulos ou valores mobiliários? Operação de seguro? De câmbio? E se se tratar de qualquer outro fato? Toda e qualquer situação que não se enquadre como “operação bom bens” pode ser classificada como “operação com serviços”? Coçar a cabeça? Escrever um artigo para a ConJur? Ler esse artigo? TUDO o que não for enquadrável como operação com bens, poderá ser definido como serviço! Isso tornará não apenas sem sentido a competência impositiva residual prevista no artigo 154 da CF/88, mas levará a uma sobreposição indevida — porque vedada pela intepretação conjunta do artigo 154 e do artigo 146 — de competências impositivas, que poderão mesmo perder o sentido. Alguém pode dizer que está implícito, no caso, que não será assim. Mas a obscuridade poderá levar a que, como crianças que não falam português, sejamos enganados pela babysitter que domina o indecifrável idioma constante da caixa do jogo.

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Em última análise, o caráter lacônico e confuso de algumas disposições da PEC 45/2019 leva a incerteza quanto à cumulatividade do imposto seletivo e ao âmbito de incidência do IBS e CBS. Abre-se espaço, com isso, para interpretações e manipulações que podem corroer a justiça e a equidade do sistema tributário. Tal como no jogo, onde as regras precisam ser entendidas por todos os participantes, o Direito deve ser formulado de maneira que seus destinatários possam compreendê-lo, garantindo um campo de jogo equilibrado. Evitar a linguagem enigmática é assegurar que o jogo seja disputado de forma justa, com todos os participantes cientes das regras, podendo assim exercer sua liberdade e autonomia de forma informada e consciente. Até porque, em se tratando das regras constitucionais de contenção do poder tributário, as consequências do conflito podem ir muito além de uma mera briga entre amigos, dos quais eles mesmos riem depois. No caso da PEC, talvez não seja engraçado.

Fonte: Conjur – Por Hugo de Brito Machado Segundo