Encontra-se em consulta pública a reformulação das normas que regem o processo administrativo sancionador da Anvisa, a Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Consulta Pública nº 1.297/24). Dada a natureza punitiva dos processos, a gravidade das sanções aplicáveis e a amplitude das competências da agência sanitária, o tema se apresenta da maior relevância. Afinal, na aplicação de sanções, o Estado exibe seu avesso, pois se organiza para infligir um mal aos particulares. Essa inversão de sua atividade-fim demanda salvaguardas e um processo administrativo que mereça este nome.
A revisão do processo foi provocada pelo onipresente Tribunal de Contas da União (TCU), que diagnosticou a atuação sancionatória da Anvisa — centrada ainda na Lei nº 6.437/77 — como ineficiente, dada a longa duração dos procedimentos e a baixa taxa de conversão e recolhimento de multas.
Em que pese a louvável busca da eficiência — e o interesse geral em processos efetivos e céleres —, o texto sob consulta está aquém do que se pode esperar de um sistema de justiça administrativa compatível com as exigências constitucionais em vigor. A proposta, como se encontra, repete vícios antigos do processo administrativo no país: descompromisso com o contraditório participativo, com a verdade material e com a independência de autoridades julgadoras [1].
De início, preocupa a ausência da identificação dos princípios que devem nortear a interpretação e aplicação da norma. A par disso, ainda nas definições (artigo 2º), deixa a proposta de indicar que a autoridade julgadora será diversa da autuante, estando livre de relação hierárquica com aquela, em atendimento ao contraditório e à imparcialidade. A omissão não é banal. Há décadas, a Corte Europeia de Direitos Humanos impõe a promoção da imparcialidade em julgamentos administrativos, ressaltando que ela deve ser aparente e efetiva [2].
Entendimento nos EUA
Nos EUA, a Suprema Corte entende que o processo contencioso perante as agências deve assegurar que a autoridade julgadora exerça seu juízo de valor de forma independente, livre de pressões e influências das partes ou de outras autoridades [3]. A cumulação de atribuições investigatórias ou acusatórias com competências decisórias acarreta a contaminação do agente, com o desejo, ainda que inconsciente, de ver suas teses confirmadas ao final da relação processual: i.e., a vontade de vencer o processo — “will to win” na expressão da jurisprudência [4].
Quando às provas, a proposta admite uma perigosa materialidade indiciária (artigo 2, XIII) e compreende a comprovação do ilícito como faculdade do agente estatal (artigo 15) — e não como dever inerente ao exercício do poder de polícia, ancorando a aplicação de graves punições em presunções ou ficções jurídicas. É fundamental, aqui, disciplinar de forma clara o dever de a agência fiscalizar seus regulados com respaldo probatório, sem prejuízo de se regular também os casos nos quais a formação de provas ou documentos seja inviável, ao menos no momento da autuação; e o eventual dever de o particular, diante determinadas circunstâncias, produzir as provas requeridas pela Anvisa.
A imposição de sanções fundadas em indícios ou simples declarações das autoridades autuantes — via presunção de veracidade — é, há muito, rejeitada nos demais sistemas da cultura jurídica ocidental [5], pois subverte o conceito de processo, inviabiliza a paridade de armas e impõe ônus da prova de fatos negativos, dentre outros problemas [6]. É dos fatos que decorrem as pretensões tuteladas pelo Estado. A reconstrução crível desses mesmos fatos e sua análise imparcial são requisitos essenciais de um sistema de justiça administrativa democraticamente estruturado.
Processo sancionador da Anvisa
Na prática, a proposta parece reservar ao particular um único direito: apresentar petições escritas, a serem inseridas digitalmente no sistema eletrônico da agência. O procedimento aparece como uma sucessão de atos formais, onde não são exigidas provas do ilícito; o espaço para a sua contraposição é extremamente estreito; não são garantidas oitivas presenciais ou a apresentação de testemunhas; a indicação de peritos ou prazos para a submissão de estudos técnicos; ou mesmo, a imparcialidade das autoridades julgadoras. No julgamento colegiado, quando existente, não se assegura o uso da palavra, idealmente após o voto do relator.
Com tantas deficiências — que passam também pelas regras previstas para a celebração de acordos —, fica difícil compreender o processo sancionador proposto pela Anvisa como uma ferramenta de persuasão, apta a articular um diálogo aberto entre Estado e cidadão, acerca dos direitos e fatos em causa. A participação do particular se limita ao preenchimento de lacunas em uma ciranda de formalidades digitais: um “falar para as paredes”.
É impossível deixar de relacionar as limitações da proposta com o simplismo de seus objetivos: celeridade e eficiência. Ora, o Estado democrático de direito não é, nem promete ser, a forma mais ágil de governo ou administração [7]. Sua lógica de custo-benefício é outra e seus processos não são linhas retas entre o auto de infração e o recolhimento de multas. Devido processo, ampla defesa e contraditório são estradas mais longas, porém, seguras.
Credibilidade do sistema
Garantias processuais impõem custos e demandam tempo. Pode-se argumentar que processos regidos pela supremacia do interesse público, ou por presunções de veracidade, facilitam a atuação estatal, com celeridade e economia. Essa tese, porém, é incompatível com o texto constitucional em vigor. A assimilação da ampla defesa e do contraditório no processo administrativo no rol do artigo 5º da Constituição demonstra a sua centralidade no ordenamento brasileiro, inviabilizando a barganha desses direitos por possíveis — e improváveis — benefícios estatísticos.
Difícil acreditar que uma atuação incontrolável do Estado gere bons frutos, mesmo considerando-se o aspecto quantitativo do problema. A reiterada violação a direitos extrapola a esfera de interesses dos lesados, pois compromete a própria credibilidade do sistema, corroendo sua legitimidade. Um processo administrativo insuficiente, na melhor das hipóteses, acarreta uma judicialização excessiva das pretensões em jogo. Na pior, constitui solo fértil para abusos e desvios, dentro e fora dos autos.
A eficiência tem lugar na lógica processual, mas ele é delimitado: serve à otimização de processos, com o emprego de novas tecnologias de comunicação, apreensão, transmissão e armazenamento de dados. Elas contribuem para uma distribuição mais eficiente dos recursos materiais e humanos da administração, facilitando a apreensão de provas digitais e incrementando a acessibilidade dos procedimentos. Mas, especialmente em processos sancionadores, a eficiência viabilizada pela inovação precisa operar a favor — e não contra — garantias fundamentais.
[1] Há outros problemas na Proposta, tais como a disciplina dos acordos consensuais. Para não cansarmos o leitor, serão deixados para uma oportunidade futura.
[2] Marie-Louise Loyen vs. France, Strasbourg, 5 de julho de 2005. Corte Europeia de Direitos Humanos. A mesma orientação foi adotada em Procola vs. Luxemburgo. Strasbourg, 28 de setembro de 1995; e Kleyn vs. The Netherlands, Strasbourg, 6 de maio de 2003. Neste último caso, a Corte reconheceu a impossibilidade de a autoridade julgadora atuar também como conselheira do Estado nas atribuições da agência ou órgão em questão.
[3] “(…) esse requisito de neutralidade em processos decisórios contenciosos (“adjudicative proceedings”) deixa a salvo as duas preocupações centrais do devido processo legal processual: a prevenção da privação de direitos dos particulares que se apresentem injustificadas ou equivocadas; e a promoção da participação e do diálogo” Marshall vs. Jerico Inc (446, U.S., 238; 1980). No mesmo sentido: Boutz vs. Economou (438, U.S. 478; 1978).
[4] AMAN JR., Alfred C.; MAYTON, William T. Administrative Law. St. Paul: West Group, 2001, p. 248.
[5] Na França, ver as decisões do Conselho de Estado narradas em PLANTEY, Alain. BERNARD, François-Charles. La Preuve Devant Le Juge Administratif. Paris: Economica, 2003, p. 92. Na Espanha, PÉREZ, Jesús Gonzáles. Justicia Administrativa. Madrid: Civitas, 1999, p. 158 e seguintes. Na Itália, Conselho de Estado: Cons. St., IV 24.2.1981 n. 191. Nos EUA, desde a reforma do Administrative Procedure Act. Quando a ação administrativa é intentada ex officio pela agência, por exemplo, em processos restritivos de direitos, a ela incumbe o ônus da prova, com base na regra geral do interesse (APA, 556-d).
[6] Já tratamos do tema em Processo Administrativo e Democracia: uma reavaliação da presunção de veracidade. Fórum: Belo Horizonte, 2007 e, juntamente com outros aspectos da justiça administrativa, Autoritarismo e Estado no Brasil: tradição, transição e processo. FGV: Rio de Janeiro, 2016.
[7] SCHMITTER, Philippe C. e KARL, Terry Lynn. What Democracy is… and is Not. Journal of
Democracy, Volume 2, Number 3, Summer 1991, p. 75-88.
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