Súmula Carf sobre créditos extemporâneos: formalismo que prejudica o direito

O contencioso a respeito do PIS/Cofins está longe de se resolver. Nem mesmo a implementação da reforma tributária é uma promessa de que esse problema chegará ao fim, pois milhões de processos (administrativos e judiciais) existentes continuarão sendo objeto de discussão nos tribunais, como espólio da litigiosidade que gravita em torno dessas contribuições.

E muito disso se deve ao fato de que, a cada avanço normativo, surge uma nova interpretação administrativa que reabre batalhas. O mais recente capítulo envolve o aproveitamento dos chamados créditos extemporâneos [1] e a súmula recentemente aprovada pelo Carf [2] nos seguintes termos:

“O aproveitamento de créditos extemporâneos da contribuição para o PIS/Pasep e da Cofins exige a apresentação de DCTF e Dacon retificadores, comprovando os créditos e os saldos credores dos trimestres correspondentes”.

À primeira vista, pode parecer mais uma medida para a racionalização e celeridade de julgamentos, o que estaria em sintonia com a busca pela duração razoável dos processos administrativos federais que versem acerca de exigências tributárias [3]. Mas, no fundo, trata-se de algo mais grave: uma interpretação que, com a devida vênia, subverte a lei, esvazia a lógica da não cumulatividade e coloca a existência de uma obrigação acessória acima do direito material.

Tratamento normativo dos créditos extemporâneos

Os artigos 3º, § 4º das Leis nº 10.637/2002 e 10.833/2003 [4] são de clareza vítrea: o crédito não aproveitado em determinado mês pode sê-lo nos meses subsequentes. Nenhuma condição adicional, nenhum requisito de retificação, nenhum apego ao calendário fiscal. A lei é de uma objetividade elogiosa e realista ao admitir que a vida empresarial é complexa e que nem sempre o aproveitamento do crédito será tempestivo.

Embora a corrente predominante no Carf no âmbito das turmas ordinárias tenha entendimento massivo no sentido de que o direito material ao crédito independe da retificação das obrigações acessórias [5], no âmbito da CSRF a divisão interpretativa é clara, podendo ser dividida em duas correntes: uma posição que pode ser chamada de formalista e outra que pode ser cunhada como substancialista.

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A corrente formalista, representada pelos acórdãos como 9303-007.510 [6], 9303-009.653 e 9303-009.738, sustenta que sem a retificação dos documentos fiscais correlatos (DCTF e Dacon) não há crédito válido.

Por sua vez, a corrente materialista, exemplarmente destacada nos acórdãos 9303-006.248 [7], 9303-008.635 e 9303-009.893, consagra aquilo que nos parece óbvio: a lei não condiciona o aproveitamento do crédito a esse tipo de burocracia ou, em outros termos, a legislação privilegia a substância em detrimento da forma [8].

A súmula aprovada, todavia, indevidamente sacramenta a primeira visão, de caráter formalista, o que redunda em um notório paradoxo, pois estamos diante de uma súmula que esvazia justamente o direito que a lei quis garantir.

Crítica à súmula aprovada pelo Carf

A exigência de retificação dos documentos fiscais exigida na súmula aqui criticada não é apenas um capricho. É, em verdade, uma distorção. Primeiro, porque desloca o foco da discussão: em vez de se debater se o crédito existe e se é legítimo, o que acaba sendo objeto de discussão é se o contribuinte cumpriu uma formalidade que a lei jamais impôs. Segundo, porque confere às obrigações acessórias — DCTF e Dacon — uma força que jamais tiveram: transformar-se em condição para a existência de um direito material, de índole constitucional.

Mais grave ainda: o Dacon já não existe. A exigência, portanto, é anacrônica, uma relíquia burocrática que a administração pública insiste em ressuscitar para negar créditos sob uma perspectiva formalista, o que, aliás, nos remete a seguinte pergunta: o que será da súmula quando aplicada a períodos posteriores à extinção dessa obrigação acessória? Nesse caso, a súmula será afastada por meio do distinguishing ou veremos aí o início de uma nova discussão quanto à aplicação equivocada de súmulas no âmbito da realização prática do Direito Tributário [9]?

Em suma: trata-se de um formalismo sem causa [10], que gera custo, litigiosidade e insegurança, sem entregar nenhuma contrapartida de justiça fiscal.

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Para os contribuintes, a mensagem é clara: quem não tiver a disciplina de retificar cada obrigação acessória, mesmo que o crédito seja legítimo, corre o risco de perder o direito ao crédito. Não por ter descumprido a lei, mas por não ter atendido a uma forma não contemplada pela ordem jurídica.

Conclusões

Para fins puramente arrecadatórios, pode parecer um triunfo para a administração pública: mais autuações, mais glosas, mais créditos exigíveis no curtíssimo prazo. Mas, a médio e longo prazo, é um verdadeiro tiro no pé: a litigiosidade aumenta, os processos abarrotam o Carf e o Judiciário, e a previsibilidade do sistema tributário se esvai.

A não cumulatividade deveria ser um princípio de racionalidade, o que se afasta com a súmula recém aprovada pela CSRF. Ao impor a retificação de declarações como condição para o crédito, a súmula não apenas cria um requisito inexistente, mas também revoga, por via interpretativa, os artigos 3º, § 4º das Leis nº 10.637/2002 e 10.833/2003.

Com a aprovação desse enunciado, não teremos um avanço em segurança jurídica. Teremos um retrocesso: a consagração de um formalismo que prejudica o Direito e que resultará, seguramente, em um volumoso contencioso judicial tributário.


[1] O que já foi objeto de tratamento nessa coluna por Thais de Laurentiis e Maysa de Sá Pittondo Deligne em preciso texto (aqui).

[2] Por maioria de votos, vencidas as conselheiras Cynthia Elena Campos, Denise Madalena Green Tatiana Josefovicz Belisário.

[3] Essa busca por um processo célere não pode ser um fim em si mesmo, sob pena de outros valores próprios de uma atividade tipicamente prudencial, como é o caso da atividade julgadora exercida pelo CARF, serem deixados de lado, tudo em favor de uma indevida jurisdição “drive-thru”. Aprofundando essas críticas, inclusive promovendo uma macro comparação com os sistemas herdeiros do “common law”, destacamos: RIBEIRO, Diego Diniz. A rescisão da coisa julgada com base em precedentes do STF e do STJ: uma análise crítica no processo judicial tributárioSão Paulo: Noeses, 2024.

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[4] Art. 3º Do valor apurado na forma do art. 2o a pessoa jurídica poderá descontar créditos calculados em relação a:
(…)
§4º O crédito não aproveitado em determinado mês poderá sê-lo nos meses subseqüentes.

[5] Vide Acórdãos 3302-013.823, 3402-012.254, 3301-013.421, 3201-006.671, 3201-01.593, 9303-008.635 e 9303-012.977.

[6] CRÉDITOS EXTEMPORÂNEOS. APROVEITAMENTO.
O aproveitamento de créditos extemporâneos de PIS não cumulativo está condicionado a apresentação dos Dacon retificadores dos respectivos trimestres, demonstrando os créditos e os saldos credores trimestrais, bem como das respectivas DCTF retificadoras.

[7] CRÉDITOS DA CONTRIBUIÇÃO NÃO CUMULATIVA. RESSARCIMENTO. CRÉDITOS EXTEMPORÂNEOS. PEDIDO DE RESSARCIMENTO. Na forma do art. 3º, § 4º, da Lei nº 10.833/2003, desde que respeitado o prazo de cinco anos a contar da aquisição do insumo, o crédito apurado não-cumulatividade do PIS e Cofins.

[8] Inclusive, para dar efetividade substancial ao princípio da não-cumulatividade no âmbito do PIS e da Cofins, princípio esse que apresenta guarida constitucional e, portanto, deve se sujeitar a uma hermenêutica que dê máxima efetividade a tal norma.

[9] Exatamente como já ocorrido em relação à aplicação da súmula Carf nº 11, o que foi denunciado por Carlos Augusto Daniel Neto em textos primorosos (aquiaqui e aqui) e cuja equivocada aplicação em matéria aduaneira foi felizmente corrigida pelo Superior Tribunal de Justiça, por meio de precedentes vinculantes formados no âmbito do REsp nº 2.147.578 e 2.147.583.

[10] É no mínimo paradoxal ver que o Carf, quando se trata de analisar planejamentos tributários e decidir acerca da manutenção ou não de débitos fiscais, acertadamente prestigia o propósito negocial e, em última ratio, a substância em detrimento da forma, mas ao tratar de créditos em favor do contribuinte, muda de posição e dá prevalência a uma racionalidade estritamente formalista em desfavor de uma posição substancialista.

Fonte: Conjur