Em artigo publicado nesta coluna em 29/4/2020 tratamos das idas e vindas da evolução jurisprudencial a respeito do direito à correção monetária do ressarcimento do saldo credor da escrita do IPI [1].
Na coluna de hoje, por sua vez, abordaremos outro aspecto dessa saga: a do direito à obtenção do ressarcimento do saldo credor da escrita do IPI, escriturado por transporte de períodos anteriores, direito esse garantido aos contribuintes sem nenhuma limitação pelo artIGO 11, da Lei nº 9.779/99[2], mas que vem sendo sistematicamente negado pela Administração Tributária, agora com o aval da Câmara Superior de Recursos Fiscais do Carf. Aliás, é sobre esse recente posicionamento da CSRF que iremos nos debruçar. Antes, todavia, convém contextualizar o tema sob análise.
Com o advento do artigo 11, da Lei nº 9.779/99 o legislador ordinário ampliou o alcance do princípio da não cumulatividade do IPI[3], passando a conferir aos contribuintes desse imposto não só o direito de transportar o saldo credor de escrita para os períodos seguintes para fins de abatimento com os débitos gerados por operações futuras[4], mas também o direito de compensar esse saldo credor com outros tributos ou de obter seu ressarcimento em espécie, observadas as normas expedidas pela Receita Federal.
A regulamentação do artigo 11 da Lei nº 9.779/99 foi objeto inicialmente do disposto nos seguintes prescritivos: art. 14 da IN 210/2002; art. 16 da IN 460/2004; art. 16 da IN 600/2005; art. 16 da IN 900/2008; art. 21 da IN 1.300/2012; art. 40 da IN 1.717/2017; e, finalmente, art. 43 da IN 2.055/2021[5], atualmente em vigor. Em nenhuma dessas Instruções Normativas existe ou existiu texto expresso no sentido de impedir que os contribuintes obtenham o ressarcimento em dinheiro do saldo credor que foi escriturado no trimestre-calendário objeto do pedido de ressarcimento em virtude de transporte de trimestres anteriores. Não há qualquer restrição normativa nesse sentido.
A jurisprudência do Carf, tanto no âmbito das câmaras baixas como no âmbito da CSRF vinha reconhecendo, de forma majoritária, o direito ao ressarcimento do saldo credor de escrita acumulado transportado de trimestres anteriores ao trimestre de referência do pedido de ressarcimento, conforme, exemplificativamente, decidiram os Acórdãos 3403-003.574[6], de 25/02/2015; 3401-008.374[7], de 21.10.2020; 9303-005.881[8], de 19.10.2017; 9303-007.144[9], de 11.07.2018; e 9303-007.910[10], de 24.01.2019.
A CSRF, contudo, deu uma guinada nesse posicionamento consolidado e a partir do Acórdão 9303-007.148[11], de 11.07.2018, passou a negar o direito expressamente previsto no artigo 11, da Lei nº 9.779/99, com a seguinte ementa:
ESCRITA FISCAL. SALDO CREDOR ACUMULADO. TRIMESTRES CALENDÁRIO ANTERIORES. MANUTENÇÃO DO CRÉDITO. POSSIBILIDADE. COMPENSAÇÃO OU RESSARCIMENTO. VEDAÇÃO LEGAL.
Admite- se a manutenção, na escrita fiscal, do crédito de IPI remanescente de outros trimestres-calendário e sua utilização para dedução de débitos do IPI de períodos subsequentes da própria empresa ou da empresa para a qual o saldo for transferido. Contudo, apenas o saldo credor correspondente ao crédito básico escriturado no mesmo trimestre-calendário pode ser objeto de pedido de ressarcimento/compensação.
É interessante notar que o sobredito acórdão julgou matéria inexistente naqueles autos, uma vez que pretensamente teria reformado o Acórdão 3402-004.071, que em momento algum tratou do direito ao ressarcimento do saldo credor de escrita transportado de períodos anteriores. A decisão contida no Acórdão 3402-004.071 se limitou a declarar o direito do contribuinte a pleitear, em um único documento formal (PER), saldos credores apurados em mais de um trimestre-calendário, em face de o PER ter sido transmitido antes do advento da IN SRF 728/2007, que estabeleceu a limitação no sentido de que cada PER só poderia se referir ao ressarcimento de saldo credor correspondente a um trimestre calendário.
Apesar de o Acórdão 9303-007.148 ter julgado matéria estranha à controvertida na decisão que pretendeu reformar, ele vem sendo citado como fundamento dos julgados que o sucederam sem que haja um maior senso crítico acerca desse ponto, como ocorre, por exemplo, no Acórdão 9303-008.675[12], de 16.05.2019, cujo trecho do voto condutor segue abaixo:
(…) No mérito, esta Turma enfrentou a mesma questão em julgamento realizado em 11/07/2018, tendo sido o Acórdão nº 9303-007.148 assim ementado:
ESCRITA FISCAL. SALDO CREDOR ACUMULADO. TRIMESTRESCALENDÁRIO ANTERIORES. MANUTENÇÃO DO CRÉDITO. POSSIBILIDADE. COMPENSAÇÃO OU RESSARCIMENTO. VEDAÇÃO LEGAL.
Admite-se a manutenção, na escrita fiscal, do crédito de IPI remanescente de outros trimestres-calendários e sua utilização para dedução de débitos do IPI de períodos subsequentes da própria empresa ou da empresa para a qual o saldo for transferido. Contudo, apenas o saldo credor correspondente ao crédito básico escriturado no mesmo trimestre calendário pode ser objeto de pedido de ressarcimento/compensação.
Transcrevo o Voto Vencedor do ilustre Conselheiro Andrada Márcio Canuto Natal, que adoto como razões de decidir (…).
Outra nota de destaque, é que na mesma sessão de julgamento do dia 11.07.2018 a CSRF veiculou os Acórdãos 9303-007.144[13] e 9303-007-148[14] imaginando que estava julgando a mesma matéria, mas com resultados diametralmente opostos, pois no primeiro Acórdão reconheceu, por unanimidade de votos, o direito de o contribuinte obter o ressarcimento do saldo credor formado por transporte de saldos credores de períodos anteriores e, no segundo julgado, negou esse direito por voto de qualidade.
Não obstante, existe ainda um outro sério problema nesse atabalhoado overruling[15]. Ao se comparar a composição da CSRF quando dos julgamentos retratados nos Acórdãos n. 9303-007.144 e 9303-007.910, favoráveis ao aproveitamento de saldo credor, com a composição desse mesmo órgão quando da veiculação do Acórdão n. 9303-007.148, restritivo ao aproveitamento de saldo credor, não se observa sequer uma única mudança na composição daquele órgão julgador [16].
É bem verdade que a mudança de pessoas em um determinado órgão julgador não deve ser fundamento hábil a justificar um overruling, mas o mínimo que se espera nessa situação é que o julgador que venha a alterar seu posicionamento justifique essa guinada[17], já que seu posicionamento para uma dada matéria, como expressão das manifestações do órgão julgador no qual ele está inserido, se sujeitam aos deveres de estabilidade, coerência e integridade (artigo 926 do CPC). Logo, a alteração do posicionamento pessoal de um julgador também implica, em última análise, mudança de uma posição institucional, o que demanda — repita-se — um pesado ônus argumentativo [18].
Por fim, existe ainda outro problema, inclusive para fins de conhecimento de recursos especiais interpostos pela Fazenda Nacional nessa questão. Isso porque, o Acórdão Carf nº 9303-007.148, que vem sendo tratado como pretensamente representativo da posição restritiva da CSRF, foi veiculado em 11/7/2018. Acontece que o Acórdão nº 9303-007.910, proferido pela mesma CSRF e permissivo em relação ao uso de saldo credor de IPI, é de 24.01.2019, ou seja, posterior e antagônico àquele que vem sendo indevidamente tratado como representativo da posição consolidada da CSRF para a matéria. Em verdade, o Acórdão CARF n. 9303-007.148 é uma decisão anacrônica, já que superado por entendimento posterior em sentido contrário daquele mesmo órgão, o que impede, inclusive, que lhe seja atribuído o status de paradigma para fins de interposição de recurso especial [19].
Como se vê, a saga do direito ao ressarcimento do saldo credor de escrita gerado por transporte de períodos anteriores ainda está longe de ser pacificada no Carf, cabendo aos contribuintes a dura missão de apontar não só os equívocos da interpretação das Instruções Normativas, desconectadas das normas de hierarquia superior que pretenderam regulamentar; mas também as diferenças entre ressarcimento de saldo credor acumulado na escrita por transporte de trimestres anteriores de cumulação de saldos credores de mais de um trimestre no mesmo PER e, ainda, essa preocupante e inexplicável alteração da jurisprudência do tribunal, pautada pelo reconhecimento de recursos especiais julgados com base um acórdão “paradigma” anacrônico e, portanto, inservível para essa função.
[1] Disponível em: https://www.conjur.com.br/2020-abr-29/direto-carf-jurisprudencia-carf-pedidos-ressarcimento-ipi. Acessado em 04.09.2023.
[2] Art. 11. O saldo credor do Imposto sobre Produtos Industrializados – IPI, acumulado em cada trimestre-calendário, decorrente de aquisição de matéria-prima, produto intermediário e material de embalagem, aplicados na industrialização, inclusive de produto isento ou tributado à alíquota zero, que o contribuinte não puder compensar com o IPI devido na saída de outros produtos, poderá ser utilizado de conformidade com o disposto nos arts. 73 e 74 da Lei no 9.430, de 27 de dezembro de 1996, observadas normas expedidas pela Secretaria da Receita Federal do Ministério da Fazenda.
[3] CF/88, art. 153, IV, § 3º: Compete à União instituir impostos sobre (…) IV – produtos industrializados (…) § 3º – O imposto previsto no inciso IV (…) II – será não-cumulativo, compensando-se o que for devido em cada operação com o montante cobrado nas anteriores; (…).
[4] Lei nº 4.502/64, art. 27: Quando ocorrer saldo credor de impôsto num mês, será êle transportado para o mês seguinte, sem prejuízo da obrigação de o contribuinte apresentar ao órgão arrecadador, dentro do prazo legal previsto para o recolhimento, a guia demonstrativa dêsse saldo.
[5] Art. 43. Na hipótese de remanescerem, ao final do trimestre-calendário, créditos do IPI passíveis de ressarcimento depois de efetuadas as deduções e transferências admitidas na legislação, a pessoa jurídica poderá requerer à RFB o ressarcimento do saldo credor ou utilizá-lo na compensação de débitos próprios relativos a tributos administrados pela RFB.
- 1º São passíveis de ressarcimento ou de compensação somente os créditos do IPI escriturados no trimestre-calendário de referência do pedido de ressarcimento, observado o disposto no § 2º.
- 2º Podem compor o saldo credor passível de ressarcimento ou de compensação somente:
I – os créditos do IPI relativos a entradas de matérias-primas, produtos intermediários e material de embalagem para industrialização;
II – os créditos presumidos do IPI, como ressarcimento da Contribuição para o PIS/Pasep e da Cofins, previstos na Lei nº 9.363, de 1996, e na Lei nº 10.276, de 2001, excluídos os valores recebidos por transferência da matriz; e
III – os créditos presumidos do IPI de que tratam os incisos III a VIII do caput do art. 12 do Decreto nº 7.819, de 2012, nos termos do art. 15 do referido Decreto, excluídos os valores recebidos por transferência da matriz.
- 3º Os créditos presumidos do IPI a que se refere o inciso II do § 2º poderão ter seu ressarcimento requerido ou sua compensação declarada à RFB somente depois da entrega, pelo estabelecimento matriz da pessoa jurídica, do Demonstrativo do Crédito Presumido (DCP) do trimestre-calendário de apuração.
[6] Conselheiro Relator Antonio Carlos Atulim.
[7] Conselheira Relatora Fernanda Vieira Kotzias.
[8] Conselheiro Relator Demes Brito.
[9] Conselheira Relatora Vanessa Marini Cecconello.
[10] Conselheiro Relator Luiz Eduardo de Oliveira Santos.
[11] Conselheiro designado para o voto vencedor Andrada Márcio Canuto Natal.
[12] Conselheiro Relator Rodrigo da Costa Pôssas.
[13] Conselheira Relatora Vanessa Marini Cecconello.
[14] Conselheiro designado para o voto vencedor Andrada Márcio Canuto Natal.
[15] A qualificação crítica ao pretenso overruling praticado pela CSRF é aqui designada porque, em verdade, para que de fato essa guinada configurasse a superação de um precedente, ela demandaria um pesado ônus argumentativo, a ser justificado por mudanças de caráter econômico e/ou político e/ou social e/ou jurídico relevantes, que implicasse a configuração de um outro contexto para a questão. Não é o caso, já que não há uma linha sequer no citado Acórdão n. 9303-007.148 a fundamentar tal superação.
[16] Em todos os casos referidos a CSRF era composta pelos seguintes Conselheiros: Andrada Márcio Canuto, Tatiana Midori Migiyama, Luiz Eduardo de Oliveira Santos, Demes Brito, Jorge Olmiro Lock Freire, Érika Costa Camargo Autran, Vanessa Marini Cecconello e Rodrigo da Costa Pôssas.
[17] Ressalte-se que mantiveram seus posicionamentos inalterados os Conselheiros representantes dos contribuintes (Tatiana M. Migiyama, Demes Brito, Érika C. C. Autran e Vanessa M. Cecconello), pelo direito ao uso do saldo credor, bem como um Conselheiro representante do fisco (Jorge O. L. Freire), pela impossibilidade de transposição do saldo credor.
[18] Aqui cabem todas as críticas já tecidas em outro texto nosso a respeito da inexistência de um modelo metodologicamente adequado de precedentes no âmbito do CARF: ConJur – A jurisprudência do Carf e a inexistência de modelo de precedentes. Acessado em 04.09.2023.
[19] Na linha da Súmula n. 83 do STJ (Não se conhece do recurso especial pela divergência, quando a orientação do Tribunal se firmou no mesmo sentido da decisão recorrida.)
Fonte: Conjur