Terceiro adquirente, obrigação propter rem e coisa julgada

A estrutura formal do processo judicial pressupõe sempre a existência de duas partes contrapostas. É famosa a máxima medieval, cuja paternidade é atribuída a Bulgarus: “iudicium est actus trium personarum, iudicis, actoris et rei”. Assim como ocorre com os elementos objetivos da demanda (causa petendi e petitum), que permanecem em regra inalterados até a sentença, as partes que se encontram presentes no início da ação conduzirão o processo até o seu final.

É possível, no entanto, haver modificação superveniente do elemento subjetivo da demanda durante a tramitação do processo, quando uma das partes falece ou, então, tratando-se de pessoa jurídica, é ela sucedida ou incorporada por outra.

Nestes casos, havendo sucessão a título universal, aplicam-se as disposições dos artigos 110, 313 e 687 do Código de Processo Civil, procedendo-se à substituição da parte pelo seu sucessor legal, a quem são transferidas todas as posições jurídicas atinentes ao objeto da sucessão, inclusive as de natureza processual.

Note-se que, depois de exaurida a prestação jurisdicional, ultimada com o julgamento do recurso especial, o Superior Tribunal de Justiça orienta-se no sentido de inadmitir o pleito de substituição da parte, decorrente de sucessão universal, devendo ser ele apreciado ao ensejo da execução, perante o juízo para esta competente (AgReg. no REsp. n. 174.201-SP, 6ª T., relator ministro Fernando Gonçalves).

Adquirente como substituto

Regrando, por outro lado, as repercussões processuais da sucessão inter vivos, preceitua o artigo 109 do Código de Processo Civil que: “A alienação da coisa ou do direito litigioso por ato entre vivos, a título particular, não altera a legitimidade das partes”. Infere-se que a pendência do processo não é óbice — e nem poderia ser — à fluência normal do comércio jurídico, inclusive no que concerne ao bem ou ao direito litigioso.

O adquirente poderá ingressar no processo e substituir a autor ou o réu, dependendo de quem tenha sido o transmitente, desde que a parte contrária manifeste o seu consentimento (artigo 109, parágrafo 1º). Extrometida a parte substituída ou figurando apenas como assistente simples, o sucessor, passando a atuar como parte, fica obviamente sujeito à coisa julgada.

O adquirente ou cessionário também poderá intervir no processo, assumindo a posição de “parte” e não de assistente litisconsorcial do alienante ou cedente (artigo 109, parágrafo 2º).

Todavia, não ocorrendo qualquer destas hipóteses, consoante os termos do parágrafo 3º do artigo 109: “Estendem-se os efeitos da sentença proferida entre as partes originárias ao adquirente ou cessionário”.

E, em tal senso, de fato, a 4ª Turma do Superior Tribunal de Justiça, ao ensejo do julgamento do Recurso Especial nº 1.421.034-RS, da relatoria do ministro Luis Felipe Salomão, decidiu que:

“No Código de Processo Civil de 1973, os limites subjetivos da coisa julgada encontravam-se, expressamente, insertos no artigo 472, segundo o qual ‘a sentença faz coisa julgada às partes entre as quais é dada, não beneficiando, nem prejudicando terceiros’. Nada obstante, além de alcançar quem efetivamente figura como parte em uma dada relação jurídica processual, a autoridade da coisa julgada também se estende ao seu sucessor, ‘porque todo fenômeno de sucessão importa sub-rogação em situações jurídicas e aquele é sempre um prolongamento do sucedido como centro de imputação de direitos, poderes, obrigações, faculdades, ônus, deveres e sujeição’ (Dinamarco, Cândido Rangel. Fundamentos do processo civil moderno, t. 2, 6ª ed. São Paulo, Malheiros, 2010, p. 1.145-1.146)…”.

Visão da doutrina sobre a vinculação do adquirente

Assim, tendo havido alienação da coisa ou do direito litigioso, se o processo continuar entre as partes originárias, qual seria o fundamento jurídico da vinculação do adquirente à autoridade da coisa julgada?

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Desde há muito esse tema tem ocupado a atenção da doutrina.

Pela ampla possibilidade de o adquirente intervir no processo e assumir, a partir do negócio celebrado com o transmitente, a posição de parte, a moderna doutrina italiana sustenta ser mais favorável a posição do sucessor no direito italiano, do que nos sistemas alemão e brasileiro, que condicionam o ingresso do adquirente no processo à aquiescência da parte contrária (Luiso, Principio del contraddittorio ed efficacia della sentenza verso terzi, Milano, Giuffrè, 1981, pág. 53).

Dispõe a alínea 2ª do parágrafo 265 do Código de Processo Civil alemão (ZPO): “A alienação ou a cessão [da coisa litigiosa] não influi no processo. O sucessor não está autorizado, sem o consentimento da parte contrária, a assumir o processo como parte principal em lugar do substituído ou a promover uma intervenção principal…”).

Para Sergio Menchini, na esfera do direito italiano, a comunicação da imutabilidade do comando da sentença ao sucessor não fere o princípio constitucional do devido processo legal por duas diferentes razões, a saber: a) é resguardada a possibilidade de o sucessor intervir no processo e participar efetivamente do contraditório (ainda que posticipato), devendo para tanto ter ciência do litígio; e b) a vitória da parte estranha à transmissão não pode ser frustrada, de sorte a constrangê-la, se demandante, a repropor a ação em face do sucessor; ou, se demandada, expor-se a uma nova ação, ajuizada pelo sucessor, sobre o mesmo objeto (Regiudicata civile, Digesto delle discipline privatistiche, vol. 16, Torino, Utet, 1997, pág. 458).

Doutrina processual brasileira

No entanto, no âmbito do nosso direito processual, a situação em que o adquirente fica à margem do processo é que gera toda a problemática sobre a qual muito se discute. Entendo que, para a solução dessa relevante questão, a melhor doutrina, em perfeita simetria com a regra do artigo 18 do Código de Processo Civil, é a que reconhece o transmitente legitimado extraordinário, que atua como substituto processual do adquirente ou cessionário, estranho do processo. E por essa razão — repita-se — o sucessor não escapa da “zona” de eficácia direta da sentença e da autoridade da coisa julgada.

Quanto ao transmitente, suportará ele, consequentemente, como parte formal, apenas os efeitos processuais da sentença.

Esclareça-se, ainda, que se impõe, como pressuposto da extensão da coisa julgada ao sucessor, o conhecimento da litispendência.

Na doutrina brasileira coube a Carlos Alberto Alvaro de Oliveira demonstrar que existem situações nas quais o direito material ressalva a boa-fé do terceiro adquirente, podendo este furtar-se à eficácia da sentença por meio de remédio processual próprio.

Sim, porque se escusável o não conhecimento da litispendência, fica o adquirente, em consequência, obstado a participar do processo. Nesse caso, não se afigura admissível sujeitá-lo à autoridade da coisa julgada, sob pena de ferir a garantia do devido processo legal. (Alienação da coisa litigiosa, 2ª ed., Rio de Janeiro, Forense, 1984, pág. 244 ss).

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Mas, “quando tudo se passa de maneira clara: tanto o alienante quanto o adquirente praticam conscientemente negócio sobre o bem que sabem constituir objeto de disputa judicial”, a comunicação da coisa julgada material ao sucessor é inegável (cf. Humberto Theodoro Júnior, Curso de direito processual civil, vol. 1, 58ª ed., p. 1.168).

Examinando a alienação feita pelo réu no curso de ação reivindicatória e, portanto, em fraude à execução, pondera Arruda Alvim que a coisa julgada é oponível ao adquirente de boa-fé, porque este, tendo adquirido a non domino, é, na verdade, adquirente de nada, e somente lhe remanesce, diante da eficácia da sentença contra o réu-“transmitente”, que, igualmente, nada lhe transferiu, o direito de deduzir a sua boa-fé, para pleitear perdas e danos (O terceiro adquirente de bem imóvel do réu, pendente ação reivindicatória não inscrita no registro de imóveis, e a eficácia da sentença em relação a esse terceiro, no direito brasileiro, Libro homenaje a Jaime Guasp, Granada, Colmares, 1984, pág. 153.)

Jurisprudência do STJ

E, de fato, era exatamente essa a orientação que iluminava a jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça, no sentido de que “a penhora de unidade condominial não pode ser autorizada em prejuízo de quem não tenha sido parte na ação de cobrança na qual se formou o título executivo. Necessária a vinculação entre o polo passivo da ação de conhecimento e o polo passivo da ação de execução” (4ª T., min. Marco Buzzi, REsp nº 1.955.545/SP).

Todavia, por paradoxal que possa parecer, mais recentemente, a 3ª Turma do Superior Tribunal de Justiça acabou superando esse entendimento, a partir da análise da natureza das obrigações propter rem, para estender a eficácia da coisa julgada ao terceiro adquirente, ainda que ele não tenha participado e nem mesmo tido ciência do processo em que formado o título executivo judicial.

Assim, alterando então o antigo posicionamento, o leading case, salvo engano, que acabou por aperfeiçoar a nova orientação, já revelada no precedente julgamento do Recurso Especial nº 1.683.419/RJ, provém do julgamento do Agravo Interno no Recurso Especial nº 1.851.742/PR, com voto condutor da ministra Nancy Andrighi, lastreado em consistentes fundamentos, textual:

“… Com efeito, diversamente do sustentado pela agravante, a atual jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça orienta no sentido de que a obrigação de pagamento das taxas condominiais possui natureza propter rem, razão pela qual deve ser exigida de quem consta na matrícula do imóvel como seu proprietário.

Entende-se, deveras, que a obrigação dos condôminos de contribuir para a conservação da coisa comum é dotada de ambulatoriedade, extraída do artigo 1.345 do Código Civil de 2002, segundo o qual ‘o adquirente de unidade responde pelos débitos do alienante, em relação ao condomínio, inclusive multa e juros moratórios’.

Conforme se depreende desse dispositivo legal, a transmissão da obrigação ocorre automaticamente, isto é, ainda que não seja essa a intenção do alienante e mesmo que o adquirente não queira assumi-la. Com efeito, ‘a responsabilidade pelo pagamento das despesas condominiais acompanha a pessoa do adquirente, que não pode eximir-se com alegação de que os encargos foram gerados anteriormente à aquisição do imóvel” (LOPES, João Batista. Condomínio, 8ª ed. São Paulo: Editora RT, 2003, pág. 98).

O sentido dessa norma, consoante destacado no Recurso Especial n.  1.683.419/RJ (3ª Turma, DJe 26/02/2020) é intuitivo: fazer prevalecer o interesse da coletividade dos condôminos, permitindo que o condomínio receba, a despeito da transferência de titularidade do direito real sobre o imóvel, as despesas indispensáveis e inadiáveis à manutenção da coisa comum, impondo ao adquirente, para tanto, a responsabilidade, inclusive pelas cotas condominiais vencidas em período anterior à aquisição.

Outrossim, no plano processual, partindo-se da premissa de que o próprio imóvel gerador das despesas constitui garantia ao pagamento da dívida, prevalece o entendimento de que o proprietário do imóvel pode ter seu bem penhorado no bojo de ação de cobrança, já em fase de cumprimento de sentença, mesmo que não tenha figurado no polo passivo da fase de conhecimento.

Aliás, no que concerne à coisa julgada, não se olvida de que, nos termos do artigo 506 do CPC/15, os respectivos efeitos, como regra, apenas se operam inter partes, não beneficiando nem prejudicando estranhos à relação processual em que se formou.

No entanto, referida regra não é absoluta e comporta exceções. Em determinadas hipóteses, a coisa julgada pode atingir, além das partes, terceiros que não participaram de sua formação.

É o que ocorre, exatamente, na hipótese de alienação da coisa ou do direito litigioso.

A respeito, o artigo 109, parágrafo 3º, do CPC/15 dispõe expressamente que ‘estendem-se os efeitos da sentença proferida entre as partes originárias ao adquirente ou cessionário’.

Trata-se de previsão legal que, verdadeiramente, faz irradiar a terceiros os efeitos da coisa julgada, em virtude da modificação da situação jurídica da coisa ou bem litigioso.

Nessa toada, na hipótese em julgamento, a conclusão que se alcança é que, sendo a agravante responsável pelo pagamento das despesas condominiais pela aquisição da propriedade do imóvel, não há necessidade de o condomínio promover nova ação contra ela, na medida em que a sentença prolatada na fase de conhecimento lhe é eficaz…”.

Conclui-se, portanto, que, acerca desta questão, o Superior Tribunal de Justiça superou antigo posicionamento, passando a admitir que o terceiro adquirente se sujeita à coisa julgada material, uma vez que, a teor do artigo 109 do Código de Processo Civil, o alienante que permanece no processo, continuando como legitimado, age em nome próprio na defesa do direito do adquirente, ainda que este desconheça demanda pendente sobre o bem adquirido.

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Ressalvando a minha opinião pessoal, já exposta no meu livro (Limites Subjetivos da Eficácia da Sentença e da Coisa Julgada, 2ª ed., São Paulo, Marcial Pons, 2020, pág. 165), como advogado do contencioso civil, não posso deixar de compartilhar com os meus colegas operadores do direito, essa importante alteração pretoriana, sobre questão de grande interesse prático, que inclusive já foi recentemente secundada pela 4ª Turma do Superior Tribunal de Justiça, no julgamento do Agravo Interno no Recurso Especial nº 1.819.441/SP, relatado pelo ministro Marco Buzzi.

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