A fragilidade da democracia mundo afora

A instituição da democracia, ao longo da história, já demonstrou exaustivamente sua superioridade em relação a regimes autoritários e protecionistas de poucos. Seus principais pilares são soberania popular, respeito aos direitos fundamentais e às leis, iguais para todos, separação de poderes, com sistema ativo de freios e contrapesos, além de eleições livres, justas e transparentes.

As Constituições democráticas sucedem, muitas vezes, governos absolutistas e autoritários. A democracia tem de ser ativa, militante, no sentido de se proteger, mas essa militância tem de ser contida. Caso contrário, a democracia militante, “não esperando que seus adversários se tornem maioria”, conduz ao legalista autocrático, que é realidade em muitos países. Hungria, Polônia e Rússia são exemplos clássicos. Nesta altura, a democracia militante mostra seu lado mais obscuro e a “autocracia legal” instala-se. Quem vai retirar o poder supremo de Putin?

O autocrata legalista é minucioso e astuto, em busca do poder absoluto, ou quase. Acusa os inimigos (ou adversários) de praticarem atos antidemocráticos, cria falsa situação de pânico, alega que determinado(s) partido(s) político(s) adota(m) discurso preconceituoso ou nocivo ao povo, combate associações, pretensamente de fins escusos, é ardiloso e convincente, mobiliza a opinião pública a seu favor ou a constrange, para fazer com que alterações das normas constitucionais e infraconstitucionais pareçam naturais e benéficas, e restringe educação ao povo. O objetivo final é fazer com que os canais democráticos que o conduziram ao poder sejam fechados e seu cargo de mandatário-mor, perpetuado.

Jam-Werner Muller [1] defende uma legislação internacional que apoie intervenções multinacionais em defesa das democracias mais frágeis. A ONU, a OEA, a União Europeia e muitas outras entidades, nenhuma conta atualmente com real força para intervir. Débeis sanções econômicas e retórica eloquente não passam de matéria ilusionista preenchendo noticiários.

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Os seus temores têm-se justificado mundo afora. Povo facilmente enganado, apoiando mudanças antidemocráticas, até por plebiscitos ou referendos de alterações que muito prometem. Quando passam a viger, só cumprem a parte que interessa ao propositor. Legislativo corrupto, que não se insurge, e Judiciário inerte ou corroborativo, uma vez pressionado ou agraciado. Mídia também (os insurgentes já foram previamente debelados).

Antídoto

A situação atual, pós-eleições, da Venezuela demonstra cabalmente o que se está discutindo. Trata-se de um ditador protegido por um pretenso regime democrático, em que as normas constitucionais relevantes para preservar a estrutura que o elegeu (ou melhor, que serviram para eleger seu antecessor) foram todas reformadas, ou melhor, deformadas. O Legislativo, as Forças Armadas e o Judiciário estão corrompidos, dando-lhe completa condição de exercer seu autoritarismo. E o povo tenta abandonar o país. A democracia militante levou à perda total. A mídia que sobrou é conivente.

Kim Lane Schepelle [2] alerta para aquelas ações, que significam risco à democracia, e defende, talvez utopicamente, que o grande antídoto seria o povo conhecer e debater as leis corriqueiramente, diariamente, preparando-se para detectar as pretensões golpistas dos governantes. Isso seria a democracia militante plena, sem excessos, com o povo ciente, culto e participativo diretamente no sentido de proteger o regime.

Sem real desenvolvimento humano, a essência democrática tende a evaporar. Na democracia representativa, cada voto tem de ser consciente e extremamente valorizado, e já passou da hora de o Judiciário, ao menos a Suprema Corte, ter seus ministros eleitos, por período determinado, e não indicados para cargos vitalícios. Obrigar-se-iam à transparência e à produtividade para serem reeleitos e o sistema só teria a ganhar em dignidade e autoproteção.


Referências

[1] Muller JW. Protecting Popular Self-Government from the People? New Normative Perspectives on Militant Democracy. Annu. Rev. Polit. Sci. 2016. 19:249–65

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[2] Scheppele,KL. Autocratic Legalism. The University of Chicago Law Review. 2018. Disponível em: https://lawreview.uchicago.edu/print-archive/autocratic-legalism

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