IA propõe política fiscal ideal, mas desafios surgem na justiça tributária e na tributação da economia digital
Um sistema de aprendizagem profunda, nomeado por The AI Economist[1], elaborou, através de simulações econômicas, o que os idealizadores, baseados em teóricos da economia, chamaram de politica fiscal ideal, equitativa, justa que encoraja a igualdade, aumenta a produtividade e proporciona maior bem estar social.
Segundo os pesquisadores envolvidos no projeto, é possível que haja um trabalho conjunto entre o AI Economist e os humanos de modo que a inteligência artificial possa ajudar, principalmente os governantes, na concepção de políticas fiscais ideais que beneficiem o maior número de pessoas.
Dessa afirmação, cabe a crítica: Qual seria a configuração de um sistema tributário justo e o quão tendenciosos podem ser os dados que moldarão os algoritmos de aprendizado desse sistema?
O imposto sobre os rendimentos do trabalho e do capital apresenta, idealmente, a melhor qualidade de justiça, pois consegue concretizar a medida da capacidade contributiva através da imposição de alíquotas progressivas. No entanto, existe um desequilíbrio no tratamento tributário entre o capital e o trabalho.
Além das alíquotas progressivas, um sistema tributário progressivo deve ser estruturado em harmonia com a concessão de créditos, deduções e incentivos; com a incidência criteriosa dos impostos sobre propriedades e patrimônio; com políticas que proporcionem a redução da carga sobre os mais pobres nos impostos sobre o consumo e com uma efetiva progressividade das pessoas jurídicas.
De acordo com estimativas recentes[2], a alíquota média efetiva global do imposto de renda das pessoas jurídicas diminuiu de aproximadamente 30% na década de 1960, para cerca de 25% na década de 1980, e 18% em 2020. Esta redução impacta diretamente nas receitas públicas e compromete a progressividade do sistema tributário, além de exercer pressão sobre a tributação do rendimento das pessoas físicas, essencialmente sobre os rendimentos do trabalho.
Entretanto, apesar da imprecisão dos números sobre o futuro do trabalho, não podemos ignorar o aperfeiçoamento constante na dinâmica da substituição (total ou parcial) dos trabalhadores provocada pelas tecnologias inteligentes.
Se, por um lado, surgirão novas profissões tecnológicas e a necessidade de trabalhadores qualificados e bem remunerados, por outro, estão a diminuir os empregos tradicionalmente “do meio” e a aumentar o trabalho de menor complexidade, instável, desgastante, sem vínculo laboral, disfarçado de flexível, mas que, na verdade, trata-se de trabalho precarizado com uma pressão descendente sobre os seus salários. Esta situação reforça a responsabilidade das novas tecnologias no alargamento da desigualdade salarial entre trabalhadores qualificados e os demais.
São alterações profundas na natureza do trabalho que provavelmente terão um impacto negativo sobre a arrecadação do IRPF incidente sobre os rendimentos do trabalho e das contribuições da seguridade social e, ao mesmo tempo exigirão do Estado aumento das despesas, inclusive com subsídios sociais.
Em contrapartida, o sistema de produção, distribuição e concentração de riqueza está sofrendo mudanças significativas. A inteligência artificial apresenta vantagem em relação à inteligência humana em um pequeno, mas crescente número de domínios limitados, daí decorre o risco de extinção de algumas profissões e o esvaziamento de outras.
À medida que essa tecnologia é incorporada por mais e mais empresas, a tendência é observarmos uma diminuição dos custos, com consequente aumento dos lucros e o enfraquecimento do poder de reivindicar uma parte dos lucros que o próprio trabalho possibilita[3].
Os dados de cidadãos, empresas e governos, passaram a ser um ativo dos mais relevantes para a geração de riqueza nas economias globais. A depender do modelo de negócio, os dados, fornecidos gratuitamente, são otimizados e utilizados como fonte de receita, incremento dos lucros e maximização dos resultados de empresas privadas. Seja com a criação de novos produtos e funcionalidades, personalização do cliente ou como fonte para treinar padrões – prever comportamentos, intenções e desejos – em sistemas de Inteligência Artificial, inclusive com o intuito de substituir a força de trabalho humana.
Em vista deste cenário, os critérios de repartição dos impostos, pensados em outros contextos históricos e econômicos, precisam ser readequados à contemporaneidade. A presença do Estado, através da atividade arrecadatória, se justifica em função da caracterização de uma atividade lucrativa, cuja tendência é ser ainda mais valiosa no futuro, e da necessidade de eliminar, ou pelo menos reduzir, as externalidades negativas decorrentes desse mercado digital, entre as quais, a redução das receitas tributárias.
Com a identificação e consequente tributação dessas novas fontes de rendimentos não se pretende negar os benefícios da robótica, penalizar as empresas automatizadas ou desencorajá-las a aderirem às novas tecnologias. A questão que se coloca é como poderemos nos certificar que os benefícios advindos da presença de robôs e da inteligência artificial serão compartilhados por toda a coletividade.
Manter o sistema tributário baseado no regime de apropriação e acumulação do passado, é reconhecer sua ineficácia futura. É fundamental que o legislador identifique as fontes de riqueza geradas nas empresas pela adoção de tecnologias inteligentes e, em consonância com a aplicação da capacidade contributiva, garanta uma distribuição equitativa da carga tributária. O reconhecimento de uma nova base tributável, que não seja a atividade laboral, pode ser um caminho que deve ser explorado e será crucial na promoção da justiça tributária em um mundo digital.
[1]Stephan Zheng, Alexander Trott, Sunil Srinivasa, Nikhil Naik, Melvin Gruesbeck, David C. Parkes, Richard Socher. The AI Economist: Improving Equality and Productivity with AI-Driven Tax Policies. 2020. Harvard University. Disponível em:https://arxiv.org/pdf/2004.13332.pdf.
[2]World Inequality Report (2022). Disponível em: https://wir2022.wid.world/ .
[3]PORTO, Lilia. Capitalismo digital: enfraquecimento do trabalho, novos conflitos e oportunidades. O futuro das coisas. Disponível em:https://ofuturodascoisas.com/capitalismo-digital-enfraquecimento-do-trabalho-novos-conflitos-e-oportunidades/
Fonte: Jota