Avanço digital explica explosão de estelionatos, não exigência de representação

O número de estelionatos explodiu nos últimos anos no Brasil. Porém, isso não se deve à inclusão na lei da necessidade de representação da vítima para o oferecimento da ação penal, segundo especialistas ouvidos pela revista eletrônica Consultor Jurídico. Para eles, o crescimento dos casos se deve ao maior uso de meios digitais pela população.

Anuário Brasileiro de Segurança Pública de 2025 revelou que houve um acréscimo de 408% nos registros do crime de estelionato no país entre 2018 e 2024. Só no ano passado, o Brasil teve aproximadamente 2,2 milhões de casos, o que equivale a quatro golpes por minuto.

Em 2019, com a lei “anticrime” (Lei 13.964/2019), passou a ser exigida a representação da vítima para o Ministério Público mover ação por estelionato. Antes disso, tratava-se de um crime de ação penal pública incondicionada.

Em 2021, o Supremo Tribunal Federal entendeu que as alterações legais quanto à necessidade de representação devem ser aplicadas aos processos em andamento, mesmo após o oferecimento da denúncia, desde que antes do trânsito em julgado (HC 180.421).

Sem relação

O delegado da Polícia Civil de Santa Catarina Lucas Neuhauser Magalhães, especialista em Direito Penal e Processual Penal pela Universidade Presbiteriana Mackenzie, afirma que, quando alguém decide cometer o crime de estelionato, não está preocupado se a vítima vai oferecer a representação criminal ou não.

“A grande verdade é que o estelionatário sempre imagina que não vai ser pego. E, ainda que seja pego, após as inúmeras camadas que ele utiliza para disfarçar a sua verdadeira identidade, ele sabe que dificilmente vai enfrentar uma pena privativa de liberdade. Então, geralmente, o crime compensa, porque a chance de ser descoberto é baixa e, se o for, a punição será branda.”

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Segundo Magalhães, o notável aumento do número de estelionatos se deve tanto à condição de ser um “crime que vale a pena” quanto às mudanças na dinâmica do delito. Especialmente o maior uso de meios digitais, inclusive para a circulação de dinheiro, o que foi impulsionado pela epidemia de Covid-19.

“Estelionatários passaram a ter a percepção de que o meio digital era mais interessante, porque traz um risco pessoal muito menor para os próprios criminosos. O sujeito não vai ter o risco de puxar uma arma de fogo no meio da rua, tomar um tiro, para, de repente, roubar R$ 200 de alguém que raramente carrega dinheiro vivo hoje em dia. Aplicando um golpe virtual, ele pode obter uma quantia muito maior da vítima sem ter de se expor tanto.”

O sociólogo Daniel Hirata, coordenador do Grupo de Estudos dos Novos Ilegalismos da Universidade Federal Fluminense (Geni-UFF), também entende que a exigência de representação da vítima não é o principal fator para o crescimento expressivo dos registros de estelionato no Brasil.

“Esse aumento está muito mais relacionado à maior facilidade de cometimento desses crimes, especialmente pela ausência de instrumentos eficazes na área de segurança pública — em sentido amplo — para investigação, análise criminal e persecução penal que estejam à altura do desafio. A possibilidade de realizar golpes com baixo risco de repressão e alta lucratividade é o que tem atraído cada vez mais criminosos para essa modalidade, sobretudo com o uso de meios digitais. Trata-se de um cenário em que a chance de punição é reduzida, enquanto o retorno financeiro é elevado, incentivando a prática.”

Representação faz sentido

O desembargador do Tribunal de Justiça de São Paulo Marcelo Semer, doutor em Direito Penal e Criminologia pela Universidade de São Paulo (USP), ressalta que a representação é necessária apenas para a propositura da ação penal, o que não necessariamente afeta o registro dos crimes. Portanto, não é isso o que explica o aumento de estelionatos. Semer, inclusive, defende que outros delitos patrimoniais cometidos sem violência estejam sujeitos à representação da vítima.

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“Muitas vezes, as situações se resolveram, as partes se compuseram, e as vítimas não têm interesse no prosseguimento da ação. Penso que elas deveriam ser consultadas. Eu apostaria no crescimento das relações e dos negócios virtuais para justificar o aumento de estelionatos, sinal de que ainda falta um aprendizado sobre os cuidados de cada tipo de transação. O Brasil é um país com altíssimo engajamento na internet e pouco conhecimento digital. Isso justifica, por exemplo, o altíssimo índice de fake news e sua influência por aqui, como já se apurou em outras pesquisas.”

Nessa mesma linha, a defensora pública do Rio de Janeiro Lúcia Helena Oliveira, mestre em Direito pela Universidade Estácio de Sá, destaca a necessidade de promover a educação digital para reduzir o número de estelionatos.

“Os golpes, com utilização de meios digitais, são cada vez mais frequentes e cada vez mais sofisticados. Há, ainda, uma falta de informações de muitas pessoas com relação a práticas digitais e eventuais golpes. Muitos desconhecem as nuances de tais práticas e como a sofisticação pode levar à obtenção de vantagens ilícitas. Penso que, nesse caso, seria necessário fomento à política pública de atualização e esclarecimento para as vítimas em potencial, ou melhor dizendo, esclarecimento de toda a sociedade.”

Na visão de Lúcia Helena, o fim da exigência de representação da vítima não ajudaria a reduzir o número de crimes. Isso porque o tipo penal do estelionato já sofreu algumas alterações que não influíram na quantidade de ocorrências.

“Quando se pensa no sentido de haver a representação para que haja ação penal pelo crime de estelionato, sugere-se algumas observações. A primeira é que não são todos os casos em que se exige representação. O legislador cuidou de preservar várias hipóteses, como, por exemplo, quando a vítima for pessoa criança ou adolescente, ou tiver mais de 70 anos de idade. A segunda é que exigir a representação é dar preferência à vontade da vítima, permitindo que ela possa escolher, mas isso não significa impunidade. O que precisamos é trazer mais esclarecimentos à população sobre seus direitos, de forma que a pessoa possa exercer seu direito de forma segura, evitando até mesmo a revitimização.”

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