Exceção da verdade e CPIs – uma análise do PL 893/2025

Que as Comissões Parlamentares de Inquérito (CPIs) constituem instrumento de ação política das minorias é fato de amplo conhecimento. O estatuto constitucional das minorias parlamentares, fundado no artigo 58, § 3º, da Constituição [1], vem sendo construído por sucessivas decisões do Supremo Tribunal Federal, no sentido de proteger as minorias e afastar óbices procedimentais que as maiorias, em geral com apoio das mesas das Casas do Congresso, opuseram em todos os governos à criação das comissões de investigação parlamentar.

Também é notório que mesmo quando as minorias superam os obstáculos para obter as assinaturas necessárias para a criação (171 deputados e/ou 27 senadores) e instalação da comissão, a maioria constituída no plenário da Comissão não raro imprime um rumo e um ritmo para as investigações que acaba por atropelar a minoria e comprometer a busca da verdade real.

As comissões de inquérito parlamentar vivem uma tensão decorrente de sua dúplice natureza, política e judicialiforme. Nascidas da luta política, e sendo tanto consequência como causa de, por vezes, profundas alterações na correlação de forças no Parlamento e na vida política nacional, as CPIs são, por outro lado, dotadas de poderes de investigação próprios aos das autoridades judiciais.

Por isso, sua efetividade (e legitimidade perante a opinião pública) depende da capacidade que a comissão desenvolva durante os trabalhos de equilibrar sua natureza (e finalidade) política e um funcionamento que combine a regra da maioria e as normas do direito constitucional penal democrático, fortemente garantista. Com o Supremo Tribunal Federal frequentemente convodado a calibrar esse equilíbrio instável.

PL 893/2025 e a exceção da verdade

Um dos parlamentares com mais larga experiência em investigação parlamentar, o senador Espiridião Amin (PP-SC) apresentou projeto com o objetivo introduzir a exceção da verdade no funcionamento das CPIs, determinado que os respectivos incidentes constituam anexo do relatório final da comissão. Para isso, o senador propõe a alteração Lei nº 1.579/52, introduzindo-lhe novo artigo:

“Art. 4º-A. Nas Comissões Parlamentares de Inquérito, é lícito aos investigados ou parlamentares invocar a exceção da verdade nos casos que envolvam crimes contra a honra ou imputação de conduta ilícita a agentes públicos ou privados, desde que relacionada ao objeto da investigação parlamentar, ou no caso de informação ou fato que possa alterar o sentido da investigação, observado o artigo 339 do Decreto-Lei nº 2.848, de 7 de dezembro de 1940 – Código Penal.

Parágrafo único. Cada incidente de exceção da verdade será autuado em apartado, sendo encaminhado, junto com o relatório final, na forma de anexo, observado o artigo 6º-A, independentemente de deliberação da Comissão.”

O artigo 6º – A, introduzido pela Lei 13.367/2016, a que se refere o projeto, trata do relatório circunstanciado dos trabalhos da comissão, “com suas conclusões, para as devidas providências, entre outros órgãos, ao Ministério Público ou à Advocacia-Geral da União, com cópia da documentação, para que promovam a responsabilidade civil ou criminal por infrações apuradas e adotem outras medidas decorrentes de suas funções institucionais”.

Crimes contra a honra

A exceção da verdade é um mecanismo de defesa previsto no Código Penal – nos crimes de calúnia (artigo 138 do Código Penal) e, em casos específicos, de difamação (artigo 139 do Código Penal) – por meio do qual o acusado pode provar verdadeiras as acusações feitas contra o ofendido. Com isso evita-se que a Justiça seja utilizada indevidamente para punir quem divulga fatos verdadeiros de interesse público, ao tempo em que igualmente tutela a honra e a reputação contra imputações falsas.

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A exceção da verdade é admitida no crime de calúnia (imputar a alguém fato definido como crime), salvo se o ofendido for o presidente da República ou chefe de governo estrangeiro, quando o ofendido houver sido absolvido por sentença irrecorrível do crime que se lhe imputou ou não tenha sido por ele condenado em sentença definitiva.

No crime de difamação (imputar a alguém fato ofensivo à sua reputação), só é cabível a exceção da verdade se o ofendido for funcionário público e a ofensa estiver relacionada ao exercício de suas funções.

A exceção da verdade não é admissível no crime de injúria (artigo 140 do Código Penal), que envolve ofensa à dignidade ou decoro da vítima e cuja configuração independe da veracidade das afirmações injuriosas.

Assim, embora o projeto esteja tecnicamente bem assentado, é possível que a discussão nas comissões possa aperfeiçoá-lo no sentido de precisar o alcance da exceção da verdade, somente admissível para o crime de calúnia e em casos específicos de difamação, e não genericamente nos crimes contra a honra.

Experiência histórica das CPIs e limite ao poder da maioria

Marcos Santi, consultor legislativo aposentado do Senado, especialista na matéria, refere-se ao que denomina “o paradoxo das CPIs”, qual seja, o de que o instituto seja ao mesmo tempo instrumento das minorias (artigo 58, § 3º, CF) e funcione com base na regra constitucional da maioria (artigo 47, CF) (As CPIs e o Planalto, Editora Prismas, Curitiba, 2014)

Neste sentido, o PL 893/2025 insere-se no esforço interinstitucional de fazer valer o espírito da regra constitucional que assegura à minoria a criação de CPIs. Se as minorias podem criar uma comissão de investigação é imperativo lógico que devam ter poder sobre os rumos que ela terá.

O projeto nasce da constatação de que historicamente os relatórios das CPIs não têm sido suficientemente circunstanciados e nem sempre realizam os objetivos que motivaram sua criação. Segundo o senador Amin, com quem conversamos, isso se dá em razão do controle absoluto do rumo dos trabalhos imprimido pela maioria na comissão. Daí que o seu projeto vise dar às minorias parlamentares instrumentos mais efetivos para a busca da verdade real:

“ Esse procedimento, inclusive, evitará – como tem acontecido com incômoda frequência – que se formem maiorias nas CPIs que na prática impeçam o exercício da função investigativa e fiscalizatória por parte das minorias.”

O senador proponente considera que o processo jurídico-constitucional das CPIs será aprimorado se se introduzir nele, de forma imperativa – portanto, ao largo da deliberação da maioria -, o procedimento da exceção da verdade, nos crimes contra a honra ou imputação a agentes públicos ou privados de conduta ilícita com pertinência temática com o objeto da investigação parlamentar “ou no caso de informação ou fato que possa alterar o sentido da investigação.”

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CPIs e abuso de poder

Na justificativa do projeto defende-se que a introdução, expressa e imperativa, do incidente de exceção da verdade no processo jurídico-constitucional das CPIs, trará, como efeito benéfico, a contenção do abuso de autoridade, não raro praticado por membros da CPI contra depoentes e que tem suscitado a judicialização preventiva por parte de quem teme sofrer violação de suas garantias constitucionais:

“Além de colaborar para a efetividade das investigações e para a busca da verdade real, esse importante instrumento servirá também para evitar judicializações desnecessárias, ou mesmo abuso de autoridade, como se vê, por vezes, quando depoentes são acossados com a ameaça de prisão ou de processo, por indevida aplicação do art. 4º da Lei de CPIs, apenas por estarem falando aquilo que é verdade – e podem provar que é.”

O artigo 4º da Lei de CPIs, cuja aplicação abusiva o projeto quer evitar, diz que constitui crime “impedir, ou tentar impedir, mediante violência, ameaça ou assuadas, o regular funcionamento de Comissão Parlamentar de Inquérito, ou o livre exercício das atribuições de qualquer dos seus membros.”

Risco de banalização do uso da exceção da verdade

O experiente senador antecipa-se à contradita de que a introdução do procedimento da exceção da verdade nas CPIs possa vir a resultar na sua banalização pelo uso indevido e excessivo que dele venham a fazer os depoentes. A justificativa do projeto defende que, para conter quem se desvie em incontinência verbal não fundada em fatos, já existe a “responsabilização penal por denunciação caluniosa (Código Penal, art. 339), de modo que não há de se cogitar de qualquer temor acerca de possível banalização de acusações”. Ademais, é de se acrescentar, depoentes que compareçam na condição de testemunha em CPIs estão sujeitos a processo por crime de falso testemunho, previsto no artigo 342 do Código Penal.

Necessidade da nova lei

Crítica que ouvimos de senadores e especialistas é o de que o projeto é desnecessário, pois o artigo 6º da Lei das CPIs já prevê que “[o] processo e a instrução dos inquéritos obedecerão ao que prescreve esta Lei, no que lhes for aplicável, às normas do processo penal”.

A crítica não nos parece robusta. A lei tem também função pedagógica, cultural (de mudança de comportamentos de agentes públicos ou privados) e de especificação de comandos genéricos presentes no ordenamento. O projeto do senador Amin, ao explicitar o direito à exceção da verdade, não o está criando, pois já previsto no Código Penal.

O que faz o projeto é estabelecer, pedagogicamente, a possibilidade da exceção da verdade para o bom desenvolvimento da investigação parlamentar, quando presentes os seus requisitos, e, aí sim uma inovação, fixa a obrigatoriedade de que o respectivo incidente processual conste como anexo ao relatório final da comissão parlamentar, independente de deliberação do plenário (logo, restringindo, nesse particular, em proteção da minoria, o poder diretivo da maioria parlamentar).

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Assim, a ser aprovado o projeto, os relatórios das CPIs passarão a conter, em apartado, “independente de deliberação da Comissão” (fora do controle político da maioria parlamentar), os procedimentos incidentes de exceção da verdade para que deles tomem conhecimento o Ministério Público, “a fim de que este exerça sua inexpugnável prerrogativa de fazer juízo sobre a juridicidade das alegações”.

Projeto e seus méritos para além da polarização política

Tanto quanto possa se esperar isenção analítica nestes tempos encrespados de polarização política, é recomendável afastar do estudo do projeto a dramaticidade conjuntural a que a sua justificativa apela para fundamentar a necessidade da inovação na Lei das CPIs, qual seja, os atos de 8 de Janeiro:

“Um exemplo, entre tantos, foi visto na CPMI dos Atos de 8 de Janeiro – em que as alegações de omissão (dolosa ou culposa) das forças que deveriam fazer a segurança e a vigilância dos prédios públicos foram solenemente ignoradas, não obstante as robustas provas da veracidade dessas afirmações de alguns depoentes.”

É bom lembrar a obviedade de que as iniciativas de modificação do ordenamento jurídico invariavelmente surgem de necessidades concretas de natureza econômica, social, cultural, de defesa, enfim, respondem a um influxo conjuntural de caráter político. Mas a conjuntura muda e tudo o que hoje centraliza o debate político e agita as instituições será mais adiante pó na estrada e matéria de interesse exclusivo de historiadores. As leis, todavia, ficam e os aperfeiçoamentos institucionais que aportem se perenizam. Sempre foi assim e assim será.

Daí que é sobre uma dupla análise, retrospectiva e prospectiva, que o projeto deve ser avaliado. Por um lado, olhando para o passado, para o histórico das CPIs, há de se indagar se, houvera então a previsão legal que ora se propõe, as comissões de de investigação parlamentar teriam tido melhores instrumentos para sua efetividade e, graças a isso, eventualmente obtido melhores resultados. E prospectar o futuro para, com o que se colheu do olhar retrospectivo, perscrutar se se pode vislumbrar um melhor funcionamento das CPIs e maiores garantias para as minorias e para a busca da verdade real com a introdução da exceção da verdade nos inquéritos parlamentares na forma proposta pelo projeto.

Quem viver verá.


[1] Art. 58, § 3º As comissões parlamentares de inquérito, que terão poderes de investigação próprios das autoridades judiciais, além de outros previstos nos regimentos das respectivas Casas, serão criadas pela Câmara dos Deputados e pelo Senado Federal, em conjunto ou separadamente, mediante requerimento de um terço de seus membros, para a apuração de fato determinado e por prazo certo, sendo suas conclusões, se for o caso, encaminhadas ao Ministério Público, para que promova a responsabilidade civil ou criminal dos infratores.

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