Poucas espécies tributárias exemplificam com tanta nitidez a tensão entre funcionalidade normativa e voluntarismo político quanto o IOF — Imposto sobre Operações de Crédito, Câmbio e Seguro, ou relativas a Títulos e Valores Mobiliários.
Embora nascido com pretensões regulatórias, como ferramenta de intervenção estatal nos mercados, o IOF tem sido constantemente manipulado em função de objetivos arrecadatórios imediatistas, transformando-se num instrumento à mercê da conjuntura fiscal. Em 2025, esse fenômeno assumiu contornos coreográficos, e o que se viu foi o Poder Público ensaiando um espetáculo descoordenado — típico de quem entendeu mal a lição do sr. Miyagi.
Sim, refiro-me à célebre cena de Karatê Kid: “bota casaco, tira casaco”. O problema é que, no Direito Tributário, a repetição sem método não forma o contribuinte, apenas o desgasta. Não há sabedoria oculta quando o Estado impõe obrigações fiscais em uma semana e as desfaz na outra. Há apenas desequilíbrio institucional e erosão da confiança.
O vaivém normativo de 2025: IOF como instrumento de improviso
No dia 11 de junho, o Poder Executivo editou o Decreto 12.499, promovendo uma reestruturação abrangente das alíquotas do IOF. Alegava-se, na exposição de motivos, a intenção de “harmonizar alíquotas” e “promover maior neutralidade tributária”, em prol da política monetária e da ampliação do investimento estrangeiro.
Não se passaram duas semanas e o Congresso Nacional, invocando o art. 49, V, da Constituição, aprovou o Decreto Legislativo 176/2025, sustando os efeitos da norma presidencial. O argumento parlamentar? Desvio de finalidade: o Executivo teria utilizado o tributo com propósito arrecadatório, esvaziando sua natureza extrafiscal.
Submetida ao Supremo Tribunal Federal, a controvérsia desaguou na ADC 96 e nas ADIs 7827 e 7839. Em 16 de julho, o ministro Alexandre de Moraes restabeleceu parcialmente o decreto presidencial, reconhecendo a regularidade da majoração das alíquotas, exceto no ponto em que se tentou incluir na incidência do IOF as chamadas operações de risco sacado.
IOF e sua função extrafiscal: um manto constitucional que não comporta improvisos
O art. 153, §1º, da Constituição Federal permite ao Poder Executivo alterar as alíquotas do IOF por decreto, desde que respeitados os limites legais. Trata-se de concessão excepcional de competência tributária, fundada na natureza extrafiscal do imposto: o IOF não é concebido como tributo de arrecadação, mas como instrumento de política monetária, cambial e de regulação de crédito.
Não se trata de formalismo. Essa função específica é o que justifica a mitigação dos princípios da legalidade e da anterioridade, normalmente rígidos em matéria tributária. Retirar do IOF sua vocação regulatória equivale a despir o tributo de sua legitimidade e, por consequência, minar a constitucionalidade de sua disciplina excepcional.
Ao reconhecer a validade do Decreto 12.499/2025, o STF entendeu que a majoração das alíquotas, em si, não configurou desvio de finalidade. O Ministério da Fazenda apresentou justificativas técnicas para cada alteração: desde a desoneração cambial para remessas de investimento estrangeiro direto, até a tentativa de disciplinar os FIDCs, instrumentos usados com crescente frequência como veículos de elisão tributária.
A tentativa de tributar o que a lei não alcança: “risco sacado” e o ponto fora da curva
Mas a tentação criativa foi longe demais. O Decreto 12.499/2025, ao alterar o art. 7º do Decreto 6.306/2007, passou a equiparar as operações de “risco sacado” às operações de crédito, instituindo a sua tributação pelo IOF. Eis o passo em falso na coreografia normativa.
As chamadas operações de risco sacado, como bem reconheceu o próprio STF, não configuram operações de crédito nos termos legais. Tratam-se de adiantamentos comerciais com cessão de recebíveis, em que não há assunção de dívida por instituição financeira — não há mútuo, não há financiamento, não há relação bancária direta.
Ao tributar essa operação via decreto, o Poder Executivo extrapolou sua competência. Criou, por ato infralegal, uma nova hipótese de incidência tributária, sem previsão legal específica. Aqui, como bem decidiu o STF, houve ofensa frontal ao princípio da legalidade tributária (art. 150, I, da CF). Nem mesmo o IOF, com sua elasticidade funcional, pode ter seu fato gerador expandido por decreto.
Segurança jurídica e a lição não aprendida
O caso do “risco sacado” revela o que há de mais preocupante na forma como o Estado lida com o sistema tributário: a inversão da ordem hierárquica das normas e a instrumentalização do contribuinte como variável de ajuste fiscal. A cada nova alteração do IOF por decreto — bota casaco, tira casaco — o investidor estrangeiro hesita, o mercado recua e o contribuinte se retrai.
E quando o Estado força a analogia onde não cabe — como no caso do risco sacado — o que se tem não é inovação, mas usurpação normativa. A estabilidade tributária, já frágil, se desfaz no gesto impulsivo de quem confunde regulação com arrecadação.
Considerações finais: o casaco não é tática de guerra fiscal
A história recente do IOF não é apenas um caso de vaivém normativo. É um sintoma. Um sintoma de como o aparato estatal ainda resiste em compreender que o Direito Tributário é campo de limites, e não de experimentações.
Mas a lição persiste: não se regula mercado com improviso. E o contribuinte não é boneco de treinamento. Entre bota casaco e tira casaco, o que está em jogo é a credibilidade do Estado e a solidez do sistema tributário.
Fonte: Jota