Por Willer Tomaz
21/06/2023 | 09h00
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Por meio da Lei n. 13.964/2019 (Pacote Anticrime), o legislador federal alterou profundamente o artigo 3º do Código de Processo Penal e criou a figura do “juiz das garantias”, estabelecendo, em síntese, que o juiz que atuar na fase de inquérito não pode atuar na fase de instrução e julgamento.
A norma estava prevista para entrar em vigor em 23 de janeiro de 2020, mas às vésperas, duas liminares dos ministros Dias Toffoli e Luiz Fux, do Supremo Tribunal Federal, suspenderam por 180 dias e por tempo indeterminado, respectivamente, a eficácia da lei em relação ao novo instituto, voltando o tema ser debatido somente agora em junho de 2023, no julgamento das ADIs 6.298, 6.299, 6.300 e 6.305, onde são questionados, dentre outros: (i) inaplicabilidade da norma no âmbito do Tribunais; (ii) a inexequibilidade por ausência de estrutura suficiente no Judiciário para a sua implementação e funcionamento regular; (iii) vício de iniciativa por caber aos Tribunais a proposta, tendo em vista a necessidade de alteração das leis de organização judiciária respectivas e de criação de novos cargos; (iv) inconstitucionalidade e desproporcionalidade quanto à eficácia imediata da lei; (v) violação ao regime fiscal por ausência de previsão orçamentária para os impactos financeiros.
A questão é tão complexa que o Conselho Nacional de Justiça editou a Portaria CNJ n. 214, de 26 de dezembro de 2019, instituindo Grupo de Trabalho para estudar os efeitos e impactos da aplicação da Lei n. 13.964/2019 junto aos órgãos do Poder Judiciário.
Não divergimos do ministro Dias Toffoli quanto à necessidade de implementação do juiz de garantias de modo consciente, consistente e sem criar outros gargalos para os órgãos da jurisdição e para os jurisdicionados, sob pena de se tornar um instrumento ineficaz e malvisto.
Em sua substância, não obstante, o instituto bem se harmoniza com a Constituição Federal e, dada a sua relevância em prol dos direitos básicos do acusado, urge ser colocado em prática, seja por aval do Supremo Tribunal Federal no julgamento das ADIs, seja através de nova lei.
Isso porque o juiz das garantias servirá ao controle de legalidade da investigação criminal como um todo e resguardará os direitos mais elementares do acusado, dentre eles o de ser processado e julgado perante autoridade judiciária competente e imparcial, conforme preconiza o artigo 5º, incisos XXXVII, LIII e LIV, da Constituição.
No Brasil, o juiz das garantias ainda é uma novidade, embora já seja objeto do PL n. 8.045/2010, que dispõe sobre o novo Código de Processo Penal, em tramitação na Câmara dos Deputados. Mas em países como França, Itália, México e Estados Unidos, o juiz das garantias já é integrado à tradição jurídica.
Devemos lembrar que a Constituição Federal de 1988 estabeleceu uma nova ordem onde o processo penal deixou de ser mero procedimento de concretização do jus puniendi e passou a ser verdadeiro instrumento de salvaguarda de direitos e de preservação da liberdade (STF, HC 162650, Rel. Min. CELSO DE MELLO, j. 21/11/2019).
Noutro ângulo, o processo penal possui diversas fases com escopos distintos, não sendo condizente que o juiz do inquérito, que decretou prisões e determinou medidas cautelares de natureza pessoal ou real com espeque nos elementos unilaterais da acusação, seja exatamente o mesmo juiz responsável pela posterior instrução e pelo julgamento da causa.
É que, segundo da psicologia social, o ser humano é naturalmente inclinado à chamada “dissonância cognitiva”, fenômeno estudado desde a década de 1950 e que consolidou um movimento psicoterapêutico baseado nos métodos de redução da dissonância a partir da pesquisa pioneira de Leon Festinger, professor de psicologia social da Universidade de Stanford.
De acordo com a Teoria da Dissonância Cognitiva, a pessoa busca a validação das suas crenças e ideologias ainda que a realidade se revele contrária, tendo em vista o estado de desconforto e tensão diante da contestação (FESTINGER, Leon. Teoria da dissonância cognitiva. Trad. Eduardo Almeida. Rio de Janeiro: Zahar Editores, 1975. 249 p.).
Com o julgador não é diferente, já que ele está sujeito a falhas e vieses ao se valer de heurísticas, ao agir e raciocinar para solucionar problemas e tomar decisões, sendo que, a exemplo, “há flagrante dissonância quando o julgador, em sede de cognição sumária, ao analisar uma medida de urgência, faz um juízo positivo da probabilidade do direito alegado, mas depois, no juízo de cognição exauriente, constata que não existe o direito afirmado. Mesmo que o primeiro juízo tenha sido de mera probabilidade (e não de certeza), o magistrado, dependendo da hipótese, sentirá certo desconforto por ter reconhecido a plausibilidade de um direito inexistente” (ANDRADE, Flávio da Silva. A tomada da decisão judicial criminal à luz da psicologia: heurísticas e vieses cognitivos. Revista Brasileira de Direito Processual Penal, Porto Alegre, v. 5, n. 1, p. 507-540, jan./abr. 2019).
Nesse sentido, o juiz que impôs medidas gravosas na investigação tenderá à necessidade íntima de confirmação dos seus pronunciamentos anteriores, prejudicando a sua imparcialidade na condução do processo, ainda que de forma inconsciente.
Ademais, como já alinhavamos em opinião publicada no Conjur, sob o título “República da inquisição: o casamento ilícito entre Estado-juiz e Estado-acusador”, temos um claro exemplo na Operação Lavajato, que embora tenha combatido o crime organizado, demonstrou para quem tem olhos o quão facilmente a função de julgar pode ser perder na de acusar, implicando a ruína das garantias fundamentais do investigado.
Na situação acima, a violação ao devido processo legal se deu graças à ausência de controles eficazes contra a quebra do dever de impessoalidade e imparcialidade do magistrado, quem atuou em todas as fases do processo e acabou por partilhar de interesses do Ministério Público, mediante ajuste da melhor estratégia para a acusação.
Como remédio, o instituto do juiz das garantias tem exatamente o objetivo de resguardar a imparcialidade do julgamento e de salvaguardar os direitos dos acusados em geral ao mitigar a dissonância cognitiva naturalmente presente no comportamento humano, bem como desvios éticos e de consciência, voluntário e involuntários por parte do julgador.
A bem da verdade, só militam contra o instituto questões de ordem financeira e formal, pois o juiz das garantias fortalece os princípios do devido processo legal e do juízo natural, humaniza e assegura o processo penal acusatório, aperfeiçoa o sistema de justiça e atende as mais variadas cartas de direitos humanos das quais o Brasil é signatário.
*Willer Tomaz, sócio do escritório Aragão & Tomaz Advogados Associados