A recente reedição do livro de Guy de Lacharrière de 1980, La politique juridique extérieure, com o prefácio de François Alabrune, embaixador da França nos Países Baixos, reflete a relevância atemporal em compreender o papel e a influência do direito nas relações internacionais.
A “política jurídica exterior” também revela a importância de investigar a maneira como os estados podem fazer uso do direito internacional com o objetivo de promover seus interesses políticos e estratégicos. Entretanto, é particularmente desafiador examinar a interseção entre as dinâmicas jurídica e política dos Estados. O estudo das narrativas surge como uma ferramenta para descobrir, por trás da argumentação jurídica, histórias carregadas de interesses políticos e estratégicos capazes de influenciar o resultado de um caso (Otten, 2016).
O projeto Latin Tales é desenvolvido pelo Centro de Pesquisa em Direito Global da FGV Direito Rio, com o objetivo de perceber as narrativas empregadas pelos estados da América Latina perante cortes e tribunais internacionais, em particular, perante a Corte Internacional de Justiça. O projeto inova ao adotar uma abordagem multidisciplinar e multi-metodológica, com conceitos e métodos do direito internacional, da ciência política e das relações internacionais.
Com vistas a explorar tal objetivo, o projeto piloto do Latin Tales investiga as narrativas dos estados do Sul Global no âmbito do procedimento consultivo sobre mudanças climáticas do Tribunal Internacional do Direito do Mar.
Aumento da participação dos Estados nas CTIs
Casos envolvendo interesses comuns têm sido cada vez mais levados a cortes e tribunais internacionais (CTIs); em procedimentos contenciosos (Ucrânia v. Federação Russa; Gâmbia v. Mianmar; África do Sul v. Israel), e consultivos (Consequências Jurídicas, Mudanças Climáticas, Direito de Greve), os quais contam com crescente participação de Estados que não são partes da controvérsia e atores não estatais.
Isso indica que a comunidade internacional está voltando seus olhos às CTIs para encontrar um equilíbrio entre os objetivos individuais dos Estados e aspirações ligadas aos interesses comuns (Klabbers, 2021).
Dado o aumento da participação estatal e seu poder de influência no resultado final de determinado caso, a investigação das narrativas apresentadas em CTIs adquire extrema importância. Para tanto, deve-se desenvolver uma metodologia consistente que explore o processo por meio do qual uma história é contada.
Como os juristas geralmente empregam narrativas para preencher o direito de significados (Devinat, 2016), a investigação dos fatores políticos que podem influenciar os discursos jurídicos traz grandes contribuições para o estudo dessas histórias.
Articulando discursos políticos e jurídicos
Em 21 de maio de 2024, o Tribunal Internacional de Direito do Mar foi o primeiro órgão judicial internacional a emitir um parecer consultivo sobre mudanças climáticas. Um total de 34 Estados (18 do sul global: Brasil, China; Congo, Indonésia, Egito, Chile, Bangladesh, Nauru; Belize, Guatemala, Serra Leoa, Micronésia, Djibuti, Ruanda, Vietnã, Índia, Moçambique e Maurício), nove organizações internacionais e dez atores não estatais enviaram submissões escritas ao Tribunal do Mar nesse caso.
O número significativo de participantes é reflexo do interesse crescente de vários atores com objetivo de influenciar a interpretação jurídica do tribunal e expressar suas opiniões sobre as mudanças climáticas.
Analisar como a história é contada por determinado grupo de estados (através de tais submissões, por exemplo) pode revelar o processo de criação intencional de narrativas “para persuadir o público com uma leitura específica do direito internacional” (Otten, 2016, tradução dos autores).
Isso é especialmente percebido no caso dos estados do sul global, pois a sua história e as raízes das mudanças climáticas se conectam e podem ser vistas como produtos dos processos políticos de colonização e desenvolvimento econômico capitalista (Murcott e Tigre, 2024).
O termo “colonially-driven environmental change” ilustra que o legado do colonialismo é vinculado ao surgimento da expressão “sul global” e se relaciona intimamente com os impactos diferenciados das mudanças climáticas (Whyte, 2017). Por meio de submissões escritas, o sul global demonstrou uma abordagem abrangente da questão climática e sua interseção com o direito do mar.
A análise desses documentos revelou nuances nas narrativas e a existência de diferentes interesses políticos por trás delas (Miskimmon et al. 2012). Essas narrativas foram investigadas por meio do método de “análise de conteúdo categorial” (Sampaio et al., 2021), que possibilitou a identificação de semelhanças e diferenças. A forma como os argumentos jurídicos foram escolhidos e o peso atribuído a cada um deles fizeram emergir enredos múltiplos em torno do tema das mudanças climáticas.
Considerando que o direito internacional e a política internacional compartilham o mesmo espaço teórico (Slaughter, 2015), a análise das narrativas presentes nas submissões dos estados do Sul global ao Tribunal do Mar no âmbito dos procedimento consultivo sobre mudanças climáticas foi combinada com a investigação da trajetória de seus posicionamentos em fóruns políticos, como as Conferências das Partes (COPs) da Convenção-Quadro das Nações Unidas sobre Mudança do Clima.
Assim, por meio da articulação de discursos políticos e jurídicos, foi possível perceber duas narrativas principais apresentadas pelos estados do Sul Global. Isso reflete a crescente divisão Sul-Sul (Ferreira, 2018) com suas disparidades em termos de desenvolvimento e vulnerabilidades, principalmente no que diz respeito à urgência climática.
Narrativas que revelam interesses econômicos
Quando se envolvem em procedimentos consultivos, os estados articulam narrativas alinhadas aos seus interesses. Desse modo, é relevante perceber a motivação subjacente e os fatores que influenciam as posições jurídicas dos estados. Os resultados da análise de conteúdo categorial mostraram que, em suas submissões ao Tribunal do Mar, alguns países deram grande importância a discussão sobre o princípio das responsabilidades comuns mas diferenciadas (CBDR-RC), bem como sobre deveres de cooperação e assistência.
Brasil, Vietnã, Egito e Índia foram os países cujas submissões mais destacaram a importância de responsabilidades diferenciadas de acordo com o nível de desenvolvimento. Igualmente, os documentos de Brasil, Índia, Egito e Chile dedicaram muito espaço à necessidade de apoio financeiro e técnico dos países desenvolvidos para enfrentar os desafios climáticos e, ao mesmo tempo, garantir suas necessidades de desenvolvimento.
Essa escolha demonstra como tais países instrumentalizaram a estrutura legal existente, a fim de destacar o impacto econômico que as medidas de combate às mudanças climáticas podem ter em suas economias nacionais.
As contribuições significativas dessas economias emergentes para as mudanças climáticas e suas maiores capacidades financeiras e tecnológicas diferenciam-nas de outros países do sul global (Ferreira, 2018). Nas COPs, alguns de tais Estados deram ênfase à relevância de uma agenda política que engloba demandas por relações econômicas mais justas e oportunidades de desenvolvimento.
O Egito (COPs 27 e 28), a China (COP 28) e o Brasil (COP 28) fizeram referência direta ao princípio das responsabilidades comuns mas diferenciadas como um elemento-chave do Direito Internacional. Assim, as narrativas apresentadas em CTIs devem ser lidas em conjunto com a política internacional, pois podem emergir de um contexto mais amplo em que estratégias políticas são elaboradas e estão em jogo; já que o direito pode ser retratado como uma “luta entre diferentes interesses políticos” (Orakhelashvili, 2005, tradução dos autores).
Narrativas que revelam vulnerabilidades
O poder das narrativas no direito internacional é visto como um relato contra-hegemônico e uma ferramenta transformadora devido à proposição de outras perspectivas (Delgado, 1989). A exposição de experiências individuais relacionadas à crise climática demonstra visões geopolíticas que confrontam a ideia de um enquadramento único da questão (Sultana, 2024).
Vários estados descreveram especificamente suas vulnerabilidades nas narrativas presentes nas submissões ao Tribunal do Mar. Tal fato reflete o argumento segundo o qual as mudanças climáticas geram ameaças existenciais desiguais em várias regiões, sendo que os indivíduos negros e as comunidades vulneráveis as vivenciam mais profundamente (Valayden, 2024).
Os resultados da análise de conteúdo categorial demonstraram que os estados mais vulneráveis do Sul Global articularam suas narrativas em torno de preocupações com os direitos humanos, reforçando o impacto direto infligido à dignidade de sua população. Apesar da singularidade de narrativas distintas moldadas por experiências subjetivas (Otten, 2016), Nauru, Micronésia, Ilhas Maurício e Congo demonstraram maior preocupação com as implicações das mudanças climáticas sobre os direitos humanos e defenderam uma proteção reforçada com base no direito internacional.
O termo “apartheid climático” tem sido usado para enfatizar as diferenças nas causas e nos impactos da urgência climática. Argumenta-se que alguns estados poderiam usar o poder econômico para evitar tais impactos, enquanto outros estariam condenados a suportar e sofrer suas consequências (Long, 2024).
O conceito de urgência contém em si um vocabulário temporal que não é percebido igualmente por todos os atores. A necessidade de uma resposta rápida se faz sentir, sobretudo, por Estados que já sofrem com a gravidade das consequências resultantes das mudanças climáticas.
Nesse contexto, Micronésia, Congo, Egito, Ilhas Maurício e Ruanda foram os únicos estados cujas submissões abordaram a questão da responsabilidade dos Estados, enfatizando a obrigação de reparar os danos causados pelas mudanças climáticas. Esses países, que figuram entre os mais vulneráveis aos efeitos das mudanças climáticas, priorizaram a sobrevivência de sua população e cobraram a responsabilização daqueles que mais contribuíram para tanto.
Estados altamente vulneráveis à urgência do clima também mobilizaram seus argumentos em fóruns internacionais para defender uma governança climática mais equitativa e justa. Os discursos dos Pequenos Estados Insulares (Small Island States) nas COPs expressam assimetrias dentro do Sul Global e uma maior vulnerabilidade que afeta países menos desenvolvidos.
Por exemplo, Belize, nas COPs 26, 27 e 28, destacou sua condição de pequeno Estado insular em desenvolvimento [“Small Island Developing State”], que o torna particularmente vulnerável às mudanças climáticas devido às suas características geográficas e econômicas. Tais condições também foram enfatizadas por Nauru e Maurício na COP 26, e pela Micronésia nas COPs 27 e 28.
A conexão identificada entre as posições adotadas por esses países nas COPs e no procedimento consultivo do Tribunal do Mar sobre mudanças climáticas reforça o argumento de que o direito internacional pode representar uma plataforma para que os pequenos Estados expressem seus interesses e sejam ouvidos (Guilfoyle, 2023). É precisamente por meio de narrativas que “a perspectiva do subalterno, do Estado colonizado ou das relações colonializadas” pode atrair a atenção do direito internacional (Otten, 2016).
Conclusão
O papel do direito internacional no que concerne as desigualdades socioeconômicas e políticas deve ser investigado considerando as crescentes disparidades de interesses e valores entre os países do Sul Global (Ferreira, 2018).
Portanto, a análise das submissões escritas ao Tribunal do Mar no âmbito do procedimento consultivo sobre mudanças climáticas retrata a maneira pela qual os diferentes interesses dos estados do sul global podem ser transformados em narrativas apresentadas ao Tribunal.
A apresentação de narrativas perante CTIs contam uma história específica, carregada de contexto e interesses políticos, que podem, em última análise, afetar o resultado das decisões.
—
O post Narrativas do Sul Global sobre mudanças climáticas no Tribunal do Mar apareceu primeiro em Consultor Jurídico.