Ele canta, ele dança, ele pula [1]. Se olharmos para o Luciano de hoje, com 41 anos, talvez não imaginemos as dificuldades que enfrentou primeiro para sobreviver e depois para florescer. Seus primeiros passos sozinhos tardaram a acontecer, e sua fala nunca completamente se desenvolveu, se bem que para todos aqueles que estejam dispostos é possível muito bem compreender seus desejos e estabelecer com ele uma comunicação.
Sua altura miúda, seu obstinado tamanho infantil de roupa, o rosto extraordinariamente moço, de um sorriso inocentemente largo a escancarar uns dentes caídos e outros ainda de leite, contrastam com a idade que aos poucos dá sinais em seu corpo. Uns fios brancos na barba, os cabelos rareando, algumas dores que assomam com mais frequência e uma indisposição para sair de casa, tudo isso nos leva a suspeitar de que Luciano, um rapaz com síndrome de down, esteja chegando à sua velhice.
A vida de Luciano é fecunda e humanamente abastada. Ele tem seus próprios temperamentos e predileções. Cultiva amizades. Gosta de ouvir o rádio, balançar na rede e rezar bem alto. Luciano se preocupa com as outras pessoas. Pergunta a elas se estão bem e diz que sente saudades. Luciano é muito querido. Não é que sua vida seja fácil, tampouco que não esbarre com dificuldades.
O intestino de Luciano contém uma má-formação que o levou diversas ocasiões a hospitalizações duradouras e a cirurgias delicadas. Seu banho tem de ser acompanhado e até mesmo o seu prato tem de ser supervisionado para que coma na quantidade certa os alimentos apropriados. Luciano nunca encontrou uma escola pública que atendesse às suas necessidades. Embora consiga segurar o lápis, ainda não consegue escrever o próprio nome.
Isso não é um problema para ele, que descobriu por si mesmo que há outras tantas formas de ser feliz. Se Luciano é feliz? Tenho certeza de que muito mais do que os que discutem o conceito de felicidade. Sua existência, fadada a não medrar dentro de certas estruturas sociais, prosperou e enriqueceu o mundo. Como isso foi possível?
Para o seu longo e árduo desenvolvimento, Luciano precisou de receber muitos cuidados. Imaginemo-lo bebê. Certamente, um bebê como os outros; ao mesmo tempo, porém, um bebê muito diferente dos outros, com precisões extremamente especiais. Como lidar, entre tantas outras coisas, com a língua saltando para fora, com a propensão para cardiopatias, com as anormalidades gastrointestinais, com os olhinhos enxergando pouco e com o intelecto para sempre comprometido? Como ele se relacionará com outras crianças? Os médicos estarão preparados para tratar da sua saúde? Ele será um dia “normal”? Como cuidar enfim de alguém como Luciano? Luciano teve a sorte de encontrar uma família que o amasse e que o acolhesse. Sua mãe era professora. Dividia o dia entre o trabalho fora de casa e o trabalho dentro de casa. Seu pai compartilhava com ela as obrigações domésticas, repartindo a responsabilidade da criação do filho. E se Luciano, no entanto, tivesse sido abandonado? Ele teria condições de subsistir e crescer? Mais ainda: ao contrário do que aconteceu, seria justo que a divisão do trabalho de cuidar de Luciano fosse reservada exclusivamente à mãe de Luciano? E quem cuida afinal daqueles que cuidam de Luciano?
O exemplo de Luciano é um dentre milhares. Elejo-o porque se trata do meu irmão e porque penso que sirva de mote para discussão a seguir. Em 23 de dezembro de 2024, foi editada no Brasil a Lei nº 15.069, que instituiu a Política Nacional dos Cuidados. Essa lei recebeu recentemente regulamentação por meio do Decreto nº 12.562, de 23 de julho de 2025. Os impactos profundos que tais normas geram no ordenamento jurídico brasileiro parecem depender ainda, no entanto, de uma compreensão dos fundamentos que a embasam. Por que, afinal, reivindicar, reconhecer e assegurar um direito ao cuidado? E o que se quer dizer realmente com ele?
Um direito revolucionário
Do caso exemplar narrado acima, extraímos a lição a respeito da essencialidade do cuidado para a vida humana. Com efeito, sem o cuidado prestado pelo seu entorno, nenhuma criança resiste, aperfeiçoa-se e chega a uma idade tal como a de Luciano. Causa espécie que tenhamos descobertos mais e mais direitos humanos, mas ainda tenhamos dificuldade em reconhecer o cuidado como um deles. Se cada nascimento traz consigo o possível milagre de algo novo, esta natalidade da condição humana de que fala Hannah Arendt não existe sem um cuidado que a geste. Noutras palavras, o novum há sempre que ser concebido, preparado e cultivado. O que existe de mais espontâneo em cada um não desabrocha espontaneamente, mas depende de um caudal de conjunções que a ideia de cuidado materializa.
Se analisados rigorosamente, todos os direitos humanos reconhecidos nos documentos internacionais e nas constituições nacionais não parecem fazer sentido sem pressupor algo de tão fundamental como o cuidado. No que concerne aos direitos liberais, o indivíduo que não recebeu cuidados não poderá circular livremente pelas ruas, expressar suas opiniões nos debates públicos, eleger seus representantes etc., se não tiver sido suficientemente cuidado. Por outro lado, relativamente aos direitos sociais, que noção expressam os direitos à saúde, à alimentação e à moradia, p. ex., senão a de que há um rol mínimo de cuidados materiais que asseguram a própria dignidade de uma vida?
Embora o “cuidado” ainda não conste expressamente do elenco de direitos fundamentais da Constituição de 1988, é fácil concluir que decorre dos princípios por ela adotados. O que a Lei nº 15.069/2024 e o Decreto nº 12.562/2025 fazem é apenas escancarar e minudenciar aquilo que era para ser óbvio: temos um direito fundamental (ou humano) ao cuidado, pois só assim conservamos a nossa existência, recuperamo-nos de danos, ofensas e doenças que sofremos e progredimos de algum modo em direção a um objetivo último que eventualmente escolhemos para nós próprios.
O direito ao cuidado é um direito revolucionário. Ele tem o condão de alterar a percepção de nós mesmos enquanto sujeitos de direitos. Com efeito, enquanto a subjetividade jurídica moderna foi forjada em torno de uma entidade artificial que ostenta atributos dificilmente alcançáveis na realidade (pois, afinal, pressupõe um sujeito hiperracional, desencarnado, fora do tempo e do espaço etc.), o direito ao cuidado só faz sentido se admitirmos que o sujeito que precisa de tal direito é um sujeito de carne e osso, situado e inserido na história, dependente e suscetível a feridas. Para dizer de modo simples, o direito ao cuidado quebra a ficção jurídica do sujeito autônomo e autossuficiente, desde sempre disposto a assumir direitos e contrair obrigações, substituindo-o pela figura mais realista de um sujeito vulnerável. O que está em causa, pois, é uma mudança antropológica radical em torno do homo juris.
Para um tal sujeito vulnerável, o cuidado não é qualquer coisa de prescindível na reprodução das vidas individuais ou dos corpos sociais. Conquanto essa devesse ser uma constatação banal, tem demandado muito trabalho teórico e empenho prático para ser admitido por aqueles que lucram com o seu desmentido ou com a sua ocultação. Joan Tronto foi uma das filósofas que sem dúvida melhor escancarou a centralidade do cuidado não só para pessoas como Luciano (i.e., para aqueles que são usualmente considerados mais frágeis ou menos independentes), mas para todas as pessoas. Mesmo um grande empresário, no auge dos seus 35 anos, gozando da mais excelente saúde, a ponto de se considerar atleta nos finais de semana, precisa de cuidados e os recebe diuturnamente, embora apenas não o perceba ou não o queira abertamente reconhecer.
Basta pensar na sua agenda diária sempre organizada, na sua casa imperceptivelmente limpa e ordenada para receber convidados, nas suas roupas até mesmo as íntimas impecavelmente lavadas e disponíveis para uso. Temos de nos perguntar, portanto: quem realiza todo esse trabalho invisível para que ele possa se sentir e ser glorificado como um self made man? O fato é que, enquanto a consciência social não desanuvia e o ordenamento jurídico por meio de suas normas e dos seus intérpretes-aplicadores não consagra a juridicidade do cuidado, este pode muito bem continuar a ser despejado nas costas de uma parcela desfavorecida da população, ao passo que uma minoria privilegiada continua a usufruir sem culpa sua desigual percepção.
Olhemos para os lares, para os hospitais, para os asilos, enfim: para todos os lugares onde cuidados são dispensados, e reflitamos – quem costuma estar ali não na condição de quem os recebe, mas de quem os presta? Pesquisas diversas confluem no sentido de que o trabalho de cuidado é majoritariamente realizado por mulheres, sobretudo mulheres subalternizadas: mulheres negras, mulheres indígenas, mulheres migrantes etc., fadadas a cuidar não só dos homens, mas também de si mesmas. Uma tal compreensão entreabre uma nova perspectiva para o direito ao cuidado. Este não se contenta com a extensão do sistema de cuidados, de tal modo que seu recebimento não mais seja o apanágio de uns poucos, mas uma prerrogativa universal, alcançável aos mais marginalizados e esquecidos da sociedade, sobre estes ainda com maior incidência.
Com efeito, para além do direito de ser cuidado, o direito ao cuidado conota o direito de cuidar sob condições justas. Concretamente, isso significa que quem já cuida tem o direito de cuidar menos e até mesmo o direito de não cuidar quando este cuidado, v.g., é excessivo, sufocante ou desproporcional, sobretudo em razão de processos históricos ou atuais de exploração e violência. Por outro lado, quem não cuida, porque foi “poupado”, porque “tem outras ocupações”, porque “acha que não é sua função” etc., tem o dever de cuidar, até mesmo de cuidar mais. Ora, não reconhecer essa dimensão do direito ao cuidado seria autorizar que a tarefa de cuidar continuasse a recair naqueles que já cuidam, sem que nenhuma modificação social de fato ocorresse. Noutras palavras, o direito ao cuidado tem uma faceta crítica e emancipatória fundamental, obrando para desfazer a distribuição desigual do trabalho do cuidado que continua a reinar dentro e fora do Brasil.
O labor de cuidar
Por óbvio, o cuidado dentro da expressão “direito ao cuidado” não é entendido de maneira romântica ou idealizada. O cuidado mantém e perpetua o nosso mundo ordinário. Enquanto tal, não se trata de uma atividade sem fadiga, que se faz apenas por amor. Por mais prazeroso que possa ser, o cuidado é um trabalho. É preciso então pensar naqueles que cuidam, i.e., naqueles que realizam o labor de cuidar. O cuidado tem sido associado nas nossas sociedades a uma tarefa eminentemente doméstica, realizada predominantemente pelas mulheres da casa, sobretudo as mães e as empregadas. Esse trabalho não costuma ser remunerado nem considerado uma atividade econômica, ao menos não prestigiada.
Se o cuidado é tão central para a existência humana e social, nada mais justo que cuidemos daqueles que cuidam. Uma tal ideia recebeu em Eva Kittay a denominação de “princípio de doulia”. Talqualmente a doula que cuida da mãe após o parto enquanto esta cuida do seu filho, todos que cuidam deveriam contar com alguém que lhes proporcione cuidados. Com isso, endossa-se um ideal de reciprocidade, de modo que aqueles que cuidam não se percebam desamparados em suas carestias. O “princípio de doulia”, se posto em execução, concorreria para desmontar o operante quadro iníquo dos cuidados: precisamente aquele em que os que mais precisam de cuidados são os que menos o recebem e mais o prestam.
Retomemos a Luciano. Proclamar o direito ao cuidado implica conceder que outras crianças com síndrome de down (e tantas outras crianças, independentemente dessa qualidade) possam ter o direito de sobreviver e florescer, e mesmo chegar aos seus 41 anos, como Luciano, sem contar com o acaso do destino de nascer numa família dotada de provisões para acolhê-lo. Dizer que se trata de um direito significa que o Estado deve garanti-lo e que qualquer um pode reivindicá-lo quando negado ou não ministrado a contento.
Proclamar o direito ao cuidado implica também que o cuidado que alguém como Luciano ou diferente do Luciano receberá não será prestado exclusiva ou prevalentemente por mulheres mães, avós, irmãs, entrecortadas por critérios de raça, classe e origem. Proclamar o direito ao cuidado implica que quem cuida de crianças, de idosos, de enfermos, de pessoas com deficiência, de todas e quaisquer pessoas (já que não há ninguém que não dependa dos cuidados de outrem) será reconhecido e bem remunerado, tendo ainda suas necessidades adequadamente atendidas. Proclamar o direito ao cuidado não é conferir tal direito apenas a pessoas como Luciano, embora pessoas como Luciano mereçam gozá-lo de modo acentuado, em razão de sua situação pessoal ou social.
Por certo, há um hiato entre a proclamação formal de um direito e o seu usufruto particular na realidade. Esse é um problema que nenhuma legislação resolve, embora ao menos o suscite. Nesse sentido, tanto a Lei nº 15.069/2024 quanto o Decreto nº 12.562/2025, ao apregoarem o direito ao cuidado, desencadeiam um processo amplo de transformação do estado de coisas, cuja efetividade está a depender, contudo, de um esforço político enérgico e duradouro. Se alterações profundas ainda estão por ser implementadas, o direito ao cuidado, em todo caso, pelo mero fato da sua sagração jurídica, provoca uma ruptura no modo como concebemos a nós próprios e os nossos direitos, permitindo-nos escapar ligeiramente dos simulacros que arquitetam nossas representações e impedem que seres humanos parecidos com Luciano ou distintos dele possam encontrar determinações propícias não só para existir com dignidade, mas também para ser feliz.
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