Responsabilidade penal da pessoa jurídica e seu eterno atrito com institutos penais

A responsabilidade penal da pessoa jurídica foi introduzida no direito penal brasileiro recente pela Lei dos Crimes Ambientais (Lei nº 9.605/98), com fundamento constitucional na previsão do artigo 225, § 3º, da Constituição [1], e, desde então, tem gerado uma série de problemas de aplicação.

Logo após a previsão constitucional, e antes mesmo do estabelecimento de dispositivo legal, a doutrina brasileira já criticara de forma bastante contundente o instituto [2], apontando que a pessoa jurídica não teria capacidade de praticar conduta no sentido penal; não seria possível aplicar a ideia de culpabilidade às pessoas jurídicas; e, no que se refere às penas, haveria dificuldades para a individualização da pena e superação do princípio da pessoalidade das penas.

Com o advento da lei, passou-se a discutir também o modelo de responsabilidade adotado, bem como as dificuldades concretas de aplicação dos institutos penais e processuais penais às pessoas jurídicas.

O cenário, hoje, passados mais de 27 anos da previsão legal, ainda é de incontáveis atritos com institutos penais fundamentais.

O primeiro ponto que, surpreendentemente, precisa ser ressaltado é que a responsabilidade penal da pessoa jurídica apenas pode ser aplicada aos crimes previstos na Lei nº 9.605/98, cujo artigo 3º deixa claro que o sistema de responsabilidade estabelecido vale para os crimes ali previstos.

Crimes ambientais previstos em outros dispositivos, tais como a Lei nº 6.453/77 (Lei de Atividades Nucleares), a Lei nº 11.105/2006 (Lei de Biossegurança) e a Lei 14.785/23 (Lei de Agrotóxicos) não admitem a aplicação da responsabilidade penal da pessoa jurídica por completa ausência de previsão legal. A exceção seria a Lei nº 12.305/2010 (Lei dos Resíduos Sólidos), que fez expressas remissões à Lei nº 9.605/98.

Aqui, é preciso rememorar a importância do princípio da legalidade no direito penal e o fato de que as previsões constitucionais incriminadoras não têm aplicabilidade direta, demandando previsão legal expressa [3].

Apesar disso, denúncias têm sido oferecidas contra pessoas jurídicas com imputação de crimes previstos em legislações outras que a Lei dos Crimes Ambientais, sem o amparo legal devido [4].

Um segundo ponto relevante é a necessidade de observância do modelo legal de responsabilidade estabelecido. Nossa lei adotou o modelo de heterorresponsabilidade [5], segundo o qual a responsabilidade da pessoa jurídica é construída por atribuição ou transferência de pessoas físicas que atuaram em seu nome.

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O artigo 3º, caput, da Lei n. 9.605/98, não deixa dúvidas ao prever que a aplicação da responsabilidade penal da pessoa jurídica ocorre nos casos “em que a infração seja cometida por decisão de seu representante legal ou contratual, ou de seu órgão colegiado, no interesse ou benefício da sua entidade”.

Assim, nosso direito não acolheu a responsabilização por fato “próprio” da pessoa jurídica (conhecido como modelo da autorresponsabilidade), exigindo que os requisitos constantes no artigo 3º da lei sejam estritamente cumpridos quando se pretende realizar a imputação do fato à pessoa jurídica.

A jurisprudência, após intensa discussão a respeito da necessidade de imputação concomitante da pessoa jurídica e da pessoa física que praticou o comportamento em questão, entendeu que o processamento da pessoa jurídica não precisa ser realizado em conjunto com o da pessoa física, conforme a decisão paradigmática proferida pelo Supremo Tribunal Federal no RE nº 548.181/PR, de relatoria da ministra Rosa Weber.

Porém, a decisão manteve expressamente a exigência — que decorre de lei, frise-se novamente — de descrição de ato concreto do representante legal, praticado no interesse ou em benefício da pessoa jurídica, para que se possa iniciar o processo penal em face de uma empresa, mesmo nos casos em que ela seja processada isoladamente:

“A identificação o mais aproximada possível dos setores e agentes internos da empresa determinantes na produção do fato ilícito, porque envolvidos no processo de deliberação ou execução do ato que veio a se revelar lesivo de bens jurídicos tutelados pela legislação penal ambiental, tem relevância e deve ser buscada no caso concreto como forma de esclarecer se esses indivíduos ou órgãos atuaram ou deliberaram no exercício regular de suas atribuições internas à sociedade, e ainda para verificar se a atuação se deu no interesse ou em benefício da entidade coletiva. Mas esse esclarecimento, relevante para fins de imputar determinado delito à pessoa jurídica, não se confunde com subordinar a responsabilização da pessoa jurídica à responsabilização conjunta e cumulativa das pessoas físicas envolvidas.” [6]

Diante disso, a imputação à pessoa jurídica deve obedecer às exigências mencionadas, devendo a denúncia descrever, de forma pormenorizada, o seu preenchimento no caso concreto. Caso não seja demonstrada a conduta, descrito quem a realizou ou determinou a sua realização (devendo-se tratar de representante legal), assim como que esta foi praticada em benefício ou interesse da empresa, a denúncia deverá ser considerada inepta, por não permitir o exercício do contraditório e ampla defesa.

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Entretanto, diversos têm sido os casos de atribuição automática de prática de crime a pessoas jurídicas, sem o atendimento dos requisitos legais [7].

Por fim, deve-se trazer um terceiro ponto que se tem apresentado concretamente e foi, inclusive, objeto de análise pelo Superior Tribunal de Justiça: o que fazer diante do encerramento de uma pessoa jurídica? Ou de sua incorporação por outra empresa? É possível equiparar esses atos à morte da pessoa física, que levaria ao reconhecimento da extinção da punibilidade? A resposta do STJ, ao julgar o REsp 1.977.172, foi que sim, já que a incorporação não transferiria a responsabilidade penal, sob pena de violação do princípio da intranscendência da pena. [8]

Contudo, outros atos societários continuam gerando grandes dúvidas, como alterações relevantes do controle societário e alterações em seu corpo diretivo — para além de situações como a recuperação judicial e a falência.

Muitos outros problemas que a prática tem trazido poderiam ser descritos aqui: a contagem dos prazos prescricionais, a falta de regra de conversão das penas privativas de liberdade para as penas aplicáveis à pessoa jurídica, a impossibilidade de a pessoa jurídica celebrar colaboração premiada, a forma de citação da pessoa jurídica, sua representação no processo penal, a impossibilidade de se valer de habeas corpus em sua defesa, dentre tantos outros.

Todavia, os três exemplos acima já são suficientes para demonstrar que a responsabilidade penal da pessoa jurídica tem gerado um elevado custo às categorias mais essenciais do direito penal e do processo penal. Adequá-la à lógica e à racionalidade penal não tem sido simples, conforme demonstram esses 27 anos de prática.

Se considerarmos que, em nosso sistema, as sanções penalmente aplicáveis às pessoas jurídicas são substancialmente as mesmas que podem ser aplicadas pelo direito administrativo sancionador — que conta com um arcabouço muito mais adequado à aplicação de responsabilidade às pessoas jurídicas —, devemos refletir seriamente se insistir na responsabilidade penal da pessoa jurídica faz sentido ou se estamos diante de um instituto que traz, estruturalmente, mais problemas do que soluções efetivas.

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[1] § 3º As condutas e atividades consideradas lesivas ao meio ambiente sujeitarão os infratores, pessoas físicas ou jurídicas, a sanções penais e administrativas, independentemente da obrigação de reparar os danos causados.

[2] Um panorama das críticas pode ser conferido em: COSTA, Helena Regina Lobo da. Responsabilidade penal da pessoa jurídica: um panorama sobre sua aplicação no direito brasileiro. In: IBCCRIM. (Org.). IBCCRIM 25 anos. 1ed. Belo Horizonte: D’Plácido, 2017. p. 91-108.

[3] Cf., por exemplo, a decisão proferida pelo STF: RHC 130738. AgR, Segunda Turma, Rel. Min. Celso de Mello, DJe-232 divulg. 09-10-2017, publ. 10-10-2017.

[4] Vide artigo sobre o tema publicado neste Conjur: RIBEIRO, Marcelo; BENTO, Bruna Passarelli. Impossibilidade de responsabilização penal da PJ fora da Lei 9.605/98. In: Conjur. Disponível aqui.

[5] Sobre os modelos de responsabilidade da pessoa jurídica, vide: SALVADOR NETO, Alamiro Velludo. Responsabilidade penal da pessoa jurídica. São Paulo, Revista dos Tribunais, 2023. Cap. 2.

[6] STF. RE n. 548.181/PR, Relatora Ministra Rosa Weber, Primeira Turma, julgado em 06/08/2013, DJe 30/10/2024, grifei. Essa nova orientação, que embora tenha afastado a necessidade de imputação concomitante, manteve a exigência de preenchimento dos critérios do art. 3º, da Lei n. 9.605/98. Nesse sentido, a título de exemplo, cf. TRF3. Processo n. 5008866-57.2018.4.03.0000, relator Desembargador Federal Maurício Kato, 5ª Turma, julgado em 14/12/2021. Também a doutrina tem ressaltado essa posição. Cf. NOVAES, Maria Tereza Grassi. A responsabilidade penal da pessoa jurídica…cit., p. 34.

[7] Vide, por exemplo, matéria sobre o tema veiculada neste Conjur: aqui

[8] REsp 1.977.172, Terceira Seção, Rel. Min. Ribeiro Dantas, julgado em 24/8/2022, DJe de 20/9/2022.

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