Direito fundamental à segurança jurídica na Constituição

O princípio da segurança jurídica constitui elemento essencial e princípio estruturante da noção de Estado de Direito, visto que a segurança jurídica coincide com uma das mais profundas aspirações do ser humano [1], viabilizando, mediante a garantia de uma certa estabilidade das relações jurídicas e da própria ordem jurídica como tal, tanto a elaboração de projetos de vida, bem como a sua realização [2].

No caso da ordem jurídica brasileira, a Constituição da República Federativa do Brasil de 1988 (CF), após mencionar a segurança como valor fundamental no seu Preâmbulo, a incluiu no seleto elenco dos direitos “invioláveis” arrolados no caput do artigo 5º, ao lado dos direitos à vida, liberdade, igualdade e propriedade.

Muito embora em nenhum momento tenha o nosso constituinte referido expressamente um direito à segurança jurídica, este (em algumas de suas manifestações mais relevantes) acabou sendo contemplado em diversos dispositivos da Constituição, como é o caso, dentre outros (e limitamo-nos aqui a exemplos extraídos do artigo 5º, da CF, do princípio da legalidade e do correspondente direito a não ser obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de lei (artigo 5º, inciso II), da expressa proteção do direito adquirido, da coisa julgada e do ato jurídico perfeito (artigo 5º, inciso XXXVI), da irretroatividade da lei penal desfavorável (artigo 5º, inciso XL [3].

Igualmente, é possível reconhecer o princípio da segurança jurídica como implicitamente consagrado no artigo 37 da CF, ao dispor sobre os princípios regentes da administração pública, como é o caso da legalidade. Da mesma forma, existem manifestações importantes da segurança jurídica no campo das limitações constitucionais ao poder de tributar, em especial no artigo 150, inciso I (é vedado aos entes federativos exigir ou aumentar tributo sem lei que o estabeleça), inciso II (vedação de tratamento desigual entre os contribuintes), inciso III, letras “a”, “b” e “c” (todos relativos à irretroatividade em matéria tributária).

Além disso, de há muito resulta incontroverso, em sede doutrinária e jurisprudencial (destaque para a prática decisória do STF e do STJ) que a CF consagra um princípio geral e fundamental da segurança jurídica e um correspondente direito fundamental, ambos implicitamente positivados no texto constitucional, cujos conteúdos e alcance serão devidamente desenvolvidos logo a seguir.

Quanto ao conteúdo do princípio da segurança jurídica, como bem destaca Gomes Canotilho, em lição que recolhemos como pressuposto da nossa análise, o princípio da segurança jurídica (aqui também tomado em sentido amplo como abrangendo a proteção da confiança) exige tanto a confiabilidade, clareza, racionalidade e transparência dos atos do poder público, quanto a segurança do cidadão no que diz com as suas disposições pessoais e efeitos jurídicos de seus próprios atos, de tal sorte que tanto a segurança jurídica quanto a proteção da confiança incidem em face de qualquer ato de qualquer órgão estatal [4].

A segurança jurídica, na sua dimensão objetiva, exige um patamar mínimo de continuidade do (e, no nosso sentir, também no) Direito, ao passo que, na perspectiva subjetiva, significa a proteção da confiança do cidadão nesta continuidade da ordem jurídica no sentido de uma segurança individual das suas próprias posições jurídicas [5].

De acordo com a lição de Hartmut Maurer, a segurança jurídica pode ser compreendida em sentido dúplice, pois, se por um lado, ela se refere à função do direito, visando assegurar segurança por meio do direito, no sentido de que o direito deve criar uma ordem consistente e segura, por outro, ela forma um princípio estruturante, que diz com a clareza e determinação do próprio conteúdo das normas, de modo a assegurar a segurança do direito [6].

De modo complementar, Virgílio Afonso da Silva assinala que os objetivos primordiais da segurança jurídica são “a garantia de certa estabilidade em relação a fatos jurídicos ocorridos no passado, de clareza em relação ao direito vigente no presente, e de alguma forma de previsibilidade para as relações jurídicas futuras” [7].

A segurança jurídica pode ser compreendida, em certa medida, como uma “ponte normativa intertemporal” a (inter)ligar o passado, o presente e o futuro, no tocante aos atos e fatos jurídicos (legislativos, administrativos e jurisprudenciais). Na feliz síntese de Gomes Canotilho, a segurança jurídica, na sua dimensão objetiva (do direito objetivo), aponta para a garantia da estabilidade de ordem jurídica, ao passo que, do ponto de vista subjetivo, exige que o cidadão (indivíduo) possa confiar nos atos do Poder Público, no sentido da calculabilidade e previsibilidade dos seus (dos atos do Poder Público) respectivos efeitos jurídicos [8], o que, por sua vez, remete à noção de proteção da confiança legítima como expressão essencial da segurança jurídica no Estado de Direito [9]. A proteção da confiança, como corolário do princípio da (e direito fundamental à) segurança jurídica, de há muito encontra guarida e aplicação na jurisprudência do STF [10] e do STJ [11].

Note-se, também nessa quadra, que a estabilidade e previsibilidade em termos institucionais (incluindo a estabilidade e previsibilidade jurídica) é fundamental para o exercício dos direitos fundamentais do cidadão, particularmente nas relações jurídicas travadas em face do Estado, na medida em que a dignidade humana não restará suficientemente respeitada e protegida onde as pessoas estejam expostas a tal nível de instabilidade jurídica que não estejam mais em condições de, com um mínimo de segurança e tranquilidade, confiar nas instituições sociais e estatais (incluindo o Direito) e numa certa estabilidade das suas próprias posições jurídicas [12].

Aspecto que há de ser repisado e enfatizado, é que a segurança jurídica, portanto, para além da sua conformação normativa como princípio da nossa ordem constitucional (com as funções, manifestações e exigências já sumariamente apresentadas), assume também o status de direito e garantia fundamental, o que reforça a sua dupla dimensão objetiva e subjetiva [13].

Todavia, aquilo que se pode designar de um direito fundamental à segurança jurídica, na condição de direito fundamental em sentido amplo, veiculado e garantido por uma norma de natureza principiológica, somente pode ser compreendido e concretizado mediante o reconhecimento de sua multidimensionalidade e das posições jurídicas nas quais se decodifica, incluindo direitos fundamentais especiais de segurança jurídica, mas também a sua articulação com outros princípios e direitos fundamentais.

O princípio (e direito fundamental) da segurança jurídica, nesse cenário, opera, em primeira linha, como uma garantia de proteção dos direitos fundamentais em face da atuação do legislador e do administrador, tanto no âmbito constitucional quanto — e de modo especial — infraconstitucional, frente a medidas legislativas e administrativas que impliquem supressão ou restrição nos níveis ou patamares de proteção dos direitos já existentes, muito embora tal proteção também se dê relativamente em face do Estado-Juiz.

Os atos legislativos e administrativos — mas também as decisões judiciais —, por meio dos efeitos e consequências jurídicas concretas que operacionalizam, para além de impactarem direitos e garantias desde a sua vigência, igualmente criam expectativas legítimas para os titulares de posições jurídicas asseguradas por tais atos estatais, notadamente em vista da confiança (no Estado) de que o seu exercício será respeitado e assegurado hoje e no futuro [14].

Nesse sentido, é exemplar decisão do STF, da relatoria do ministro Luís Roberto Barroso, reconhecendo as perspectivas objetiva e subjetiva derivadas do regime jurídico-constitucional de proteção da segurança jurídica:

“O princípio da segurança jurídica, em um enfoque objetivo, veda a retroação da lei, tutelando o direito adquirido, o ato jurídico perfeito e a coisa julgada. Em sua perspectiva subjetiva, a segurança jurídica protege a confiança legítima, procurando preservar fatos pretéritos de eventuais modificações na interpretação jurídica, bem como resguardando efeitos jurídicos de atos considerados inválidos por qualquer razão. Em última análise, o princípio da confiança legítima destina-se precipuamente a proteger expectativas legitimamente criadas em indivíduos por atos estatais.” [15]

É pertinente, nesse contexto, sublinhar que a tese de que restrições de direitos — para além da observância das exigências da reserva legal, da proporcionalidade e da proteção do núcleo essencial — não devem ser retroativas implica a vedação de intervenções restritivas arbitrárias e excessivas por parte dos poderes estatais no âmbito de proteção de direitos e garantias fundamentais, inclusive pelo fato de que a retroatividade de medidas restritivas representa ofensa ao direito fundamental à e princípio da segurança jurídica. Nesse sentido, a segurança jurídica, dotada de status e regime jurídico de direito fundamental, implica posições jurídicas subjetivas de natureza defensiva ou negativa, que blindam restrições retroativas, a fim de assegurar a integridade, estabilidade, certeza e previsibilidade na aplicação do direito a fatos jurídicos pretéritos e que já produziram efeitos (tanto no mundo jurídico quanto no mundo fático).

No que diz respeito à dimensão objetiva do princípio e do direito fundamental da segurança jurídica, todos os atores estatais encontram-se vinculados (a exemplo do que ocorre com os direitos fundamentais em geral) por deveres de proteção que implicam a adoção de medidas positivas e eficazes para assegurar níveis satisfatórios de segurança jurídica [16]. Note-se, nesse contexto, que eventual omissão ou mesmo ação que não assegure níveis satisfatórios de eficácia aos deveres de proteção, representa uma violação da assim chamada proibição de proteção insuficiente e, portanto, consiste em violação do(s) direito(s) fundamental(ais) em causa [17].

Tendo aqui apresentando, em linhas gerais e numa perspectiva introdutória, o conteúdo e o significado do princípio da segurança jurídica e do correlato direito fundamental à segurança jurídica na CF, remetemos o leitor à próxima coluna, onde teremos a ocasião de desenvolver um pouco mais o tema.


[1] Cf. bem lembra MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Curso de direito administrativo. 32 ed. São Paulo: Malheiros, 2015. p. 113.

[2] Na doutrina, v. SARLET, Ingo W. A eficácia dos direitos fundamentais: uma teoria geral dos direitos fundamentais na perspectiva constitucional. 13. ed., Porto Alegre: Editora Livraria do Advogado, 2018, pp. 451 e ss. No mesmo sentido, v. Cf. ÁVILA, Humberto. Segurança jurídica. São Paulo: Malheiros, 2011, p. 206 e ss.

[3] STF, RE 637485, Tribunal Pleno, relator ministro Gilmar Mendes, julgado em 01.08.2012.

[4] CANOTILHO, Joaquim José Gomes. Direito constitucional e teoria da constituição. 7 ed. Coimbra: Coimbra, 2003. p. 252.

[5] Este o ensinamento de SCHULZE-FIELITZ, Helmuth. Kernelemente des Rechtstaatsprinzips. In. DREIER, Horst (Org.). Grundgesetz Kommentar. v. II. Tübingen: Mohr Siebeck, 1998. p. 184.

[6] Cf. MAURER, Hartmut, Staatsrecht I, 5. ed., München: C.H. Beck, 2007, p. 220.

[7] SILVA, Virgílio Afonso da. Direito constitucional brasileiro. São Paulo: EDUSP, 2021, p. 240.

[8] Cf. a síntese de Canotilho, J. J. Gomes, Direito constitucional e teoria da Constituição, op. cit., p. 257.

[9] Sobre a proteção da confiança no direito público, v., na literatura brasileira e limitando-nos à produção monográfica, especialmente Maffini, Rafael. Princípio da proteção substancial da confiança no direito administrativo brasileiro, Porto Alegre, Verbo Jurídico, 2006, bem como Ávila, Humberto. Segurança Jurídica, op. cit., p. 360 e ss.

[10] Na jurisprudência do STF, vide, em caráter meramente exemplificativo, a ADI 4545/PR, relator ministro Rosa Weber, j. em 05.12.2019 e o RE 636553, relator ministro Gilmar Mendes, j. em 19.02.2020, leading case do Tema de Repercussão Geral 445.

[11] STJ, EREsp 1.517.492/PR, 1ª Seção, relator ministro Og Fernandes, julgado 08.11.2017; STJ, REsp. 1.813.684/SP, Corte Especial, relator para acórdão ministro Luis Felipe Salomão, julgado em 02.10.2019; e STJ, REsp 1.928.635/SP, 1ª Turma, relator ministro  Regina Helena Costa, julgado em 10.08.2021.

[12] SARLET, Ingo W. A eficácia dos direitos fundamentais…, pp. 451 e ss. No mesmo sentido, v. cf. ÁVILA, Humberto. Segurança jurídica…. p. 206 e ss.

[13] No sentido de reconhecer a dupla dimensão da segurança jurídica, como princípio e direito fundamental, v. SARLET, Ingo W. A eficácia do direito fundamental à segurança jurídica: dignidade da pessoa humana, direitos fundamentais e proibição de retrocesso social no direito constitucional brasileiro. Revista Trimestral de Direito Público, v. 39, São Paulo, Malheiros, 2002, p. 53-86.

[14] Na doutrina, sobre a expectativa legítima de direitos, v. BARROSO, Luís Roberto. Constitucionalidade e legitimidade da Reforma da Previdência: ascensão e queda de um regime de erros e privilégios. Revista de Direito da Procuradoria -Geral do Estado do Rio de Janeiro, vol. 58, 2004, p. 145.

[15] STF, ARE 861.595, 1ª Turma, relator ministro Roberto Barroso, julgado 27.04.2018.

[16] SARLET, A eficácia dos direitos fundamentais…, p. 148 e ss.

[17] Apenas para ilustrar com exemplos da jurisprudência do STF, v. ADI 861, Tribunal Pleno, relator ministro Rosa Weber, j. em 06.03.2020), ADI 5312, Tribunal Pleno, relator ministro Alexandre de Moraes, j. em 25.10.2018.

Fonte: Conjur

Sem padrão ou critérios, ANPP é vantajoso apenas para o MP

A falta de critérios e de orientações objetivas para a assinatura do acordo de não persecução penal (ANPP) vem causando problemas para os advogados e seus clientes. Criminalistas ouvidos pela revista eletrônica Consultor Jurídico apontam que cada membro do Ministério Público avalia e fecha tais acordos à sua própria maneira. Com isso, o ANPP se torna uma ferramenta interessante somente para a acusação.

Edward Rocha de Carvalho, do escritório Miranda Coutinho, Carvalho & Advogados, diz, por exemplo, que alguns promotores negociam o acordo exclusivamente por meio de petições escritas. Já outros permitem ajustes por telefone ou até marcam audiências. “Não tem procedimento padrão.”

Para além disso, as diretrizes sobre quando se deve fechar um ANPP não são interpretadas da mesma forma pelos membros do MP. Carvalho cita o caso de um promotor que justificou não ter oferecido um acordo porque isso “pega mal” na sua pequena comarca.

Matteus Macedo, por sua vez, conta que certos procuradores consideram possível a celebração do ANPP em qualquer momento processual, desde que o caso não tenha transitado em julgado. Já outros entendem que o acordo só pode ser oferecido até a denúncia.

Na prática, muitas vezes, o advogado precisa acionar a 2ª e a 5ª Câmaras de Coordenação e Revisão (CCRs) do Ministério Público Federal (responsáveis, respectivamente, por casos gerais e crimes contra a administração), que têm entendimento consolidado a favor da possibilidade de ANPP em qualquer momento antes do trânsito em julgado.

O ANPP está previsto no artigo 28-A do Código de Processo Penal, inserido em 2019 pela lei “anticrime”. De acordo com a norma, o acordo pode ser fechado em casos de infração penal sem violência ou grave ameaça e com pena mínima inferior a quatro anos. Também precisa ser “necessário e suficiente para reprovação e prevenção do crime”.

Para Macedo, essa cláusula é “muito aberta”. Ou seja, não há uma definição exata sobre o que é um acordo suficiente para a reprovação do crime. Ele narra duas situações pelas quais já passou: em um caso, o membro do MP fechou o ANPP porque o caso envolvia R$ 200 mil; já em outro, o valor era de R$ 200 milhões, mas o procurador negou o acordo.

Renato Stanziola Vieira, presidente do Instituto Brasileiro de Ciências Criminais (IBCCRIM), lembra que, pela lei, a possibilidade de ANPP não depende do montante envolvido. Ele defende que o acordo seja proposto sempre, independentemente do valor: “Se tivermos um critério do valor patrimonial, estaremos desconsiderando a pena do crime”.

Diretrizes variadas
Sócia do escritório Mattos Filho, a criminalista Paula Moreira Indalecio explica que cada membro do MP é independente para negociar o ANPP dentro dos parâmetros estabelecidos no CPP. Porém, existem algumas orientações.

As CCRs do MPF, por exemplo, têm uma orientação conjunta e um enunciado (98/2020) que fixam determinados critérios a serem observados para a assinatura dos acordos, além de uma orientação específica sobre ANPPs feitos de forma virtual.

E os MPs estaduais também têm suas regras. O MP-SP, por exemplo, publicou uma recente resolução que regulamenta os acordos, além de um “roteiro para o ANPP“. Já o MP-RJ tem duas resoluções sobre o tema (uma de 2021 e outra de 2022). O MP-PR possui um protocolo, o MP-SC tem um manual e o MP-MG dispõe de um guia.

Por fim, o Conselho Nacional do Ministério Público tem uma resolução de 2017, que foi alterada por outra no ano seguinte. Embora algumas de suas regras tenham sido reproduzidas na lei “anticrime”, tais atos são mais restritos do que as regras do CPP.

As normas do CNMP estabelecem, por exemplo, a impossibilidade de proposta de acordo quando o dano causado for superior a 20 salários mínimos (ou a outro parâmetro econômico definido pelo respectivo órgão de revisão, conforme a regulamentação local). Também impedem a celebração de ANPP quando o delito for hediondo ou equiparado e quando o aguardo para seu cumprimento possa causar a prescrição.

ConJur pediu explicações a vários MPs sobre os problemas relatados pelos advogados. Em resposta, o MPF, o MP-SP e o CNMP apenas informaram que têm suas regulamentações próprias.

Prejuízos
Segundo Paula Indalecio, para propor um acordo o representante do MP precisa verificar previamente se existem indícios de autoria e materialidade. Isso porque, conforme o CPP, o ANPP só pode ser oferecido em “não sendo caso de arquivamento”. Mas ela diz que “muitos acordos são oferecidos de maneira prematura, sem que haja profunda análise dos elementos investigados”.

Renato Vieira indica que, sem um regramento específico, o MP pode acabar oferecendo ANPP em casos nos quais a atitude correta seria “o arquivamento puro e simples”. Segundo ele, o acusado muitas vezes aceita o acordo para não correr o risco de ser processado — quando, na verdade, o caso deveria ser arquivado. Já Mateus Macedo diz que muitos acusados preferem fechar um acordo porque a definição é mais rápida e a solução é previsível. Assim, o ANPP se torna, nas palavras do presidente do IBCCRIM, uma “ameaça de processar alguém”.

A partir de tal pressão, o MP consegue convencer pessoas a aceitar o acordo e pagar prestações pecuniárias em casos que, de outra maneira, não iriam adiante. Ou seja, a acusação consegue o equivalente a uma sanção penal sem ter de discutir o mérito da causa. “O Ministério Público consegue um naco de carne na largada, porque não precisa passar o caso em contraditório. Ele resolve no ANPP”, assinala Vieira. “Existe um risco de o ANPP se substituir às hipóteses de arquivamento”.

As diferenças entre as regulamentações de cada MP são outro fator problemático destacado por Paula. A resolução do MP-RJ, por exemplo, traz diretrizes para a celebração de acordos já nas audiências de custódia — ou seja, antes de qualquer investigação quanto à real ocorrência do crime e às suas circunstâncias.

Diversos MPs, como o de SP, também têm regulamentações próprias sobre ANPP

Até o mês passado, o MP-SP já havia feito quase 46 mil ANPPs. O número expressivo leva a advogada a indagar: “Será que em todos esses casos o órgão acusatório realizou detidamente o devido exame de cada situação concreta, verificou a existência de indícios de autoria e materialidade e de dolo, para chegar à conclusão inequívoca de que não havia uma situação sequer que deveria ensejar uma promoção de arquivamento?”. À ConJur, o órgão disse que não houve oferecimento de denúncia em quase 35 mil dos acordos fechados.

Na visão de Paula, há mais um problema: as resoluções e os manuais dos MPs sugerem “modelos” de acordos, “que acabam por criar diretrizes estanques” e automatizar a análise dos requisitos. Com isso, o ANPP se torna similar a um “contrato de adesão”, em vez de “um instituto próprio de negociação efetiva entre as partes, em que haveria espaço para mudanças ou adaptações nos termos propostos”.

Com todos esses problemas, Vieira avalia que o ANPP se torna interessante somente para a acusação. A prova disso é o fato de que sua regulamentação é feita pelo próprio MP. Além disso, os acordos ficam sujeitos à “apreciação subjetiva deste ou daquele promotor” — o que não deveria ocorrer com uma lei processual válida em todo o país.

Possíveis melhorias
Paula espera “um amadurecimento da jurisprudência para sanar as lacunas e dúvidas de interpretação que a legislação deixou em aberto”, e, assim, evitar “uma atuação discricionária por parte do Ministério Público e garantir os direitos e garantias fundamentais aos indivíduos”.

O presidente do IBCCRIM também considera que “o caminho para tornar objetivos os critérios” do ANPP deve “continuar a ser trilhado”. Para isso, ele defende uma “regulamentação melhor”. Mas, segundo Vieira, enquanto não houver uma mínima “apreciação da constitucionalidade” do artigo 28-A do CPP, sequer é possível falar em melhor ou pior regulamentação.

No entanto, de acordo com o advogado, o primeiro passo para uma melhoria já está ocorrendo. As regras do ANPP trazidas pela lei “anticrime” vêm sendo discutidas no Supremo Tribunal Federal, dentro do bloco de ações diretas de inconstitucionalidade (ADIs) que também discutem a implementação do juiz das garantias. O julgamento deverá ser concluído no próximo mês de agosto.

Culpado desde o início
Outro ponto do artigo 28-A do CPP que preocupa os criminalistas é a exigência de confissão de culpa. Paula lembra que, quando assina um ANPP, o acusado não deixa de ser primário. Assim, a confissão, para ela, é apenas uma espécie de “moeda de troca” moral.

Na prática, tal exigência traz uma desvantagem para o acusado. Isso porque, caso o acordo seja descumprido, o MP pode oferecer denúncia. E, nessas situações, a acusação já conta desde o início com uma confissão da prática do crime.

Segundo a advogada, não há qualquer garantia de que, mais tarde, a confissão não será utilizada, mesmo que indiretamente, como argumento para defender a responsabilidade do acusado. Assim, a exigência dá margem “para uma atuação discricionária” do MP.

Paula ressalta que a confissão não é condição para outros acordos penais, como a suspensão condicional do processo e a transação penal. Ela também crê que tal exigência dificulta a assinatura do ANPP: “Ninguém vai se dispor a confessar algo que acredita não ter feito, especialmente diante da insegurança jurídica sobre o destino dessa confissão”.

Vieira é outro que considera a exigência abusiva, pois, mesmo com o descumprimento do acordo, a confissão permanece válida. Em uma hipótese tradicional, sem assinatura de acordo, o mérito seria discutido na ação penal sem a confissão. Ou seja, o MP consegue uma denúncia muito mais robusta contra alguém que tenha assinado e descumprido um ANPP do que teria contra qualquer outro acusado.

O presidente do IBCCRIM destaca que a confissão “não deve ser vista como uma prova de maior ou menor valia”, porque “não existe uma hierarquia de provas no processo penal”. Para ele, o ANPP “sobrevaloriza a confissão” como prova, “em vantagem da acusação”, pois sua ausência impede a própria negociação do acordo e sua concretização reforça uma eventual denúncia.

Na visão do advogado, os outros requisitos previstos no CPP — infração penal sem violência e pena mínima inferior a quatro anos — já são suficientes para se verificar a possibilidade de um acordo. “Se você está fazendo acordo, você não quer ser processado. E, se você não quer ser processado, você não tem de discutir culpa.”

Paula também defende a suficiência dos demais requisitos legais, “desde que proporcionais e adequados a cada caso concreto”. De acordo com ela, a confissão “não possui nenhuma utilidade do ponto de vista criminal”, pois, quando é feito um ANPP, o juiz não analisa o mérito do caso — apenas homologa o termo, a partir de um “exame da voluntariedade e formalidade legal”. Além disso, quando o acordo é cumprido, a punibilidade do réu é extinta.

Vieira defende que a exigência de confissão de culpa seja excluída da legislação. Essa também é a medida ideal na visão de Paula, mas ela ainda enxerga a possibilidade de “um amadurecimento da jurisprudência nesse sentido, especialmente para sanar as lacunas e dúvidas de interpretação da legislação quanto ao alcance, necessidade e possibilidades (ou impossibilidade) do uso dessa confissão”.

Fonte: Conjur

Comissão aprova proibição de guarda compartilhada quando há risco de violência doméstica

Vinicius Loures/Câmara dos Deputados
Apresentação dos planos e agenda estratégica. Dep. Laura Carneiro(PSD - RJ)
Laura Carneiro: medida vai ao encontro da proteção integral de crianças e adolescentes

A Comissão de Previdência, Assistência Social, Infância, Adolescência e Família da Câmara dos Deputados aprovou proposta (PL 2491/19) que impede a guarda compartilhada de filhos quando há risco de algum tipo de violência doméstica ou familiar praticado por um dos pais. Na guarda compartilhada, o tempo de convívio com os filhos deve ser dividido de forma equilibrada entre a mãe e o pai, considerando o interesse dos filhos. O texto altera o Código Civil e o Código de Processo Civil e já foi aprovado pelo Senado.

Conforme o projeto, nas ações de guarda, antes de iniciada a audiência de mediação e conciliação, o juiz deverá perguntar às partes e ao Ministério Público se há risco de violência doméstica ou familiar, fixando o prazo de cinco dias para a apresentação da prova ou de indícios pertinentes.

O texto também deixa claro que, havendo elementos que evidenciem a probabilidade de risco de violência doméstica ou familiar, a guarda será concedida apenas àquele que não seja o responsável pela situação de risco à criança.

A relatora, deputada Laura Carneiro (PSD-RJ), defendeu a aprovação da proposta. Ela lembrou que o Código Civil já prevê situações em que o juiz pode decidir, a bem dos filhos, pelo não compartilhamento da guarda. A parlamentar destacou ainda que o Estatuto da Criança e do Adolescente, por sua vez, estabelece que “nenhuma criança ou adolescente será objeto de qualquer forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão”.

“As medidas [previstas no PL 2491/19] vão ao encontro da proteção integral e do melhor interesse da criança e do adolescente, preconizados pela Carta Política de 1988 e previstos em legislação ordinária, reforçando-os, motivo pelo qual merecem prosperar”, disse a relatora.

Tramitação
O projeto ainda será analisado, em caráter conclusivo, pela Comissão de Constituição e Justiça e de Cidadania (CCJ).

Fonte: Câmara Notícias

Projeto altera legislação para aumentar pena de invasão de propriedade

Bruno Spada/Câmara dos Deputados
Deputado Coronel Chrisóstomo discursa na tribuna do Plenário
Para Chrisóstomo, pena atual “é um convite para se cometer esse tipo de crime”

O Projeto de Lei 1198/23, do deputado Coronel Chrisóstomo (PL-RO), aumenta a pena para o crime de esbulho possessório, que é a invasão de propriedade praticada com violência ou ameaça, ou aquela cometida por mais de duas pessoas. A proposta tramita na Câmara dos Deputados.

A pena atual para esbulho possessório, prevista no Código Penal, é de detenção, de um a seis meses e multa. O projeto eleva para detenção de 4 a 8 anos e multa. Chrisóstomo afirmou que o objetivo  da proposta é inibir as invasões de propriedade no Brasil.

“A atual punição para quem invade terras ou edificações é um verdadeiro convite para que se cometa esse tipo de crime. Os movimentos que adotam falsamente um viés social para destruir propriedades e todos os investimentos realizados só geram prejuízos aos proprietários e desemprego aos funcionários”, disse.

O texto também iguala ao crime de usurpação de águas (caracterizado pelo desvio ou represamento de águas alheias) os agravantes previstos no esbulho  possessório sem, no entanto, alterar a punição prevista, que permanece “detenção, de um a seis meses, e multa”.

Tramitação
O projeto será analisado pela Comissão de Constituição e Justiça e de Cidadania (CCJ). Se aprovado, seguirá para o Plenário da Câmara.

Fonte: Câmara Notícias

Projeto permite aplicação subsidiária do Código de Processo Civil no processo penal

Bruno Spada/Câmara dos Deputados
Deputado Marangoni discursa na tribuna do Plenário
O deputado Marangoni é o autor do projeto

O Projeto de Lei 49/23 autoriza a aplicação subsidiária do Código de Processo Civil (CPC) no âmbito do processo penal, de maneira semelhante ao que ocorre atualmente nos processos eleitorais, trabalhistas ou administrativos.

Em análise na Câmara dos Deputados, o projeto é de autoria do deputado Marangoni (União-SP). Segundo ele, a medida vai facilitar o “diálogo” entre as fontes normativas processuais diante de lacunas na lei penal “desde que a regra a ser aplicada seja compatível com o sistema processual penal”.

Tramitação
A proposta será analisada de forma conclusiva pela Comissão de Constituição e Justiça e de Cidadania.

 

Fonte: Câmara Notícias

Férias: pode haver convocação para prestar serviço no período?

Com a chegada do mês de julho, muitas pessoas se programam para usufruir das férias visando ao descanso, à desconexão com o trabalho, ao alívio da fadiga e à recuperação do estresse mental, assim como também para desfrutar do convívio familiar em razão do recesso escolar que acontece nessa mesma época.

Dito isso, por vezes há certa preocupação e sobretudo receio de o(a) trabalhador(a) deixar de atender aos chamados do seu empregador e de clientes durante esse período. Isto ocorre por medo de retaliação, de perder do emprego, de ser substituído(a) por outro(a) profissional, ou, ainda, simplesmente pelo fato de que, por não estar disponível em tal momento, poderia a conduta ser reputada displicente.

Nesse sentido, surgem algumas dúvidas e questionamentos: o(a) trabalhador(a) pode ser convocado(a) para prestar serviços nas férias? Quais seriam as consequências caso isso ocorra? E, mais, quais os cuidados que a empresa deve adotar para que tal direito do(a) trabalhador(a) não seja violado?

Por certo, o assunto é polêmico, tanto que a temática foi indicada por você, leitor(a), para o artigo da semana na coluna Prática Trabalhista, da revista eletrônica Consultor Jurídico [1], razão pela qual agradecemos o contato.

De início, impende destacar que, de acordo com um levantamento do Instituto Ipsos, 53% dos trabalhadores apresentaram piora em sua saúde mental nos últimos anos, sendo o Brasil recordista de pessoas com transtornos de ansiedade e depressão [2].

Aliás, segundo os dados da International Stress Management Association, 72% da população brasileira apresenta alguma sequela do estresse, sendo que 32% são acometidos da Síndrome de Burnout [3].

Do ponto de vista normativo, no Brasil, de um lado, a Constituição Federal (CF) em seu artigo 7º, inciso XVII [4], preceitua que as férias são um direito social garantido ao (à) trabalhador(a). Lado outro, a Consolidação das Leis do Trabalho (CLT) [5] assegura o direito às férias anuais após cada período de 12 meses de vigência do contrato de trabalho.

Nesse desiderato, oportunos são os ensinamentos do professor Homero Batista Mateus da Silva [6]:

“As férias têm a peculiaridade da natureza híbrida de direito e dever simultaneamente. Que elas correspondem a um direito do trabalhador não resta dúvida, conquistando-as o trabalhador em seu dia a dia de atividades prestadas ao empregador. Sua noção como dever certamente é a mais difícil de enxergar, num conceito que vem sendo esquecido pelas partes.

(…). O período deve compreender a mudança de hábitos e de rotina por parte do trabalhador, alteração de seu metabolismo e em seu ritmo devida, desligamento completo das atividades que acaso deixou pendentes e demais condições para um completo reequilíbrio mental e físico.

No dizer das ciências humanas voltadas ao estudo do equilíbrio do corpo e da mente, férias que mereçam esse nome são aquelas que o trabalhador consegue mudar não somente o ritmo cotidiano, mas também o sonho que povoa sua mente durante a noite”.

Sob essa perspectiva, uma pesquisa publicada no Journal of Nutrition, Health and Aging, em 2018, apontou que pessoas que tiram férias mais curtas apresentam 37% mais riscos de morrer, mesmo que possuam um estilo de vida saudável [7].

Portanto, nesse período de férias, em regra, é vedado à empresa convocar o(a) trabalhador(a) para o exercício de suas atividades, assim como importuná-lo(a) com e-mails, mensagens de aplicativos ou quaisquer outras formas de comunicação acerca de tarefas profissionais, haja vista que a finalidade do instituto é justamente o exercício da desconexão do trabalho e a recomposição da higidez física e mental.

À vista disso, a 3ª Turma do Tribunal Superior do Trabalho (TST) já foi provocada a emitir um juízo de valor sobre essa temática, de modo que o entendimento foi no sentido de condenar uma empresa a pagar, em dobro, as férias de um trabalhador que laborou no período destinado ao descanso [8].

Em seu voto, o ministro ponderou o seguinte:

“(…). As férias têm a finalidade de recuperação e implementação das energias do trabalhador e de sua inserção familiar, comunitária e política.

Partindo-se desse objetivo, tem fundamento o questionamento suscitado pelo Reclamante no sentido de que o trabalho realizado em parte das férias desvirtuaria sua própria finalidade, razão pela qual deveria haver o pagamento em dobro não apenas dos dias indevidamente laborados, mas de todo o período de férias correspondente.

Ora, tendo o empregado sido convocado ao trabalho, mesmo por somente três dias, durante o prazo de gozo das férias, o instituto tem frustrada sua regular fruição, ensejando o correspondente novo pagamento da verba, no montante do total das férias fruídas e não somente dos dias laborados irregularmente”.

De igual modo, idêntico foi o entendimento da 2ª Turma do TST ao condenar uma empresa ao pagamento, em dobro, do período integral das férias, e não apenas dos dias laborados, haja vista a frustração do instituto [9].

Frise-se, por oportuno, que conquanto o período laborado nas férias possa ser compensado posteriormente, poderá haver a condenação do pagamento em dobro de acordo com a jurisprudência da Corte Superior Trabalhista, a qual interpreta de forma sistemática dos dispositivos legais [10].

Noutro giro, vale destacar que o lapso de férias não se trata apenas de um direito trabalhista, mas sim de um instituto que visa proporcionar o equilíbrio da saúde física e mental do(a) trabalhador(a) e um meio ambiente laboral saudável. Bem por isso, é forçoso lembrar que a ausência desse descanso irá trazer reflexos negativos na produtividade no trabalho e, quiçá, afastamentos médicos em razão do estresse e doenças mentais.

Outrossim, existem estudos acerca da importância das férias e os seus reflexos para a saúde do(a) trabalhador(a), inclusive no sentido de redução dos casos de depressão daquelas pessoas que gozam das férias e se desconectam do ambiente laboral [11].

Neste contexto, uma empresa indiana optou por multar os funcionários que atrapalhem as férias de seus colegas, independentemente do nível hierárquico, para que tal direito possa ser usufruído plenamente. Ainda, no caso em análise, a empresa realizou o bloqueio do trabalhador junto ao sistema da empresa e vedou o acesso ao e-mail e telefone corporativos [12].

Não há dúvidas de que havendo o equilíbrio entre a vida pessoal e profissional, assim como um tempo destinado para a recomposição da saúde física e mental, os reflexos positivos no trabalho serão visíveis.

Em arremate, o trabalho excessivo, sem pausas e férias, ao invés de aumentar a produtividade, poderá acarretar num ambiente tóxico e, por conseguinte, improdutivo. É forçoso destacar que a desconexão completa nesse período trará benefícios não só ao(à) trabalhador(a), mas também à empresa e à sociedade, já que a sobrecarga de trabalho aumenta o adoecimento físico e mental, afrontando direitos e garantias fundamentais.

[1] Se você deseja que algum tema em especial seja objeto de análise pela coluna Prática Trabalhista, entre em contato diretamente com os colunistas e traga sua sugestão para a próxima semana.

[2] Disponível em https://exame.com/bussola/ferias-sao-mais-que-descanso-uma-pausa-para-recuperar-saude-mental/. Acesso em 4.7.2023.

[3] Disponível em https://www.segs.com.br/demais/366665-especialista-explica-a-importancia-do-recesso-e-das-ferias#:~:text=O%20per%C3%ADodo%20de%20f%C3%A9rias%20simboliza,sofre%20alguma%20sequela%20do%20estresse. Acesso em 4.7.2023.

[4] Art. 7º – São direitos dos trabalhadores urbanos e rurais, além de outros que visem à melhoria de sua condição social: (…). XVII – gozo de férias anuais remuneradas com, pelo menos, um terço a mais do que o salário normal;

[5] Disponível em https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto-lei/del5452.htm. Acesso em 7.7.2023.

[6] Direito do trabalho aplicado: Direito Individual do Trabalho – São Paulo: Thompson Reuters Brasil, 2021 – (Coleção Direito do Trabalho Aplicado; volume 2). Página 293 e 294.

[7] Disponível em https://www.uol.com.br/vivabem/noticias/redacao/2022/05/25/faz-mal-para-a-saude-nao-tirar-ferias.htm. Acesso em 4.7.2023.

[8]Disponível em https://consultaprocessual.tst.jus.br/consultaProcessual/consultaTstNumUnica.do?consulta=Consultar&conscsjt=&numeroTst=92500&digitoTst=93&anoTst=2006&orgaoTst=5&tribunalTst=01&varaTst=0011&submit=Consultar. Acesso em 4.7.2023.

[9] Disponível em https://consultaprocessual.tst.jus.br/consultaProcessual/consultaTstNumUnica.do?consulta=Consultar&conscsjt=&numeroTst=684&digitoTst=94&anoTst=2012&orgaoTst=5&tribunalTst=04&v.araTst=0024&submit=Consultar. Acesso em 4.7.2023.

[10] Disponível em https://consultaprocessual.tst.jus.br/consultaProcessual/consultaTstNumUnica.do?consulta=Consultar&conscsjt=&numeroTst=136740&digitoTst=23&anoTst=2009&orgaoTst=5&tribunalTst=03&varaTst=0007&submit=Consultar. Acesso em 7.7.2023

[11] Disponível em https://www.anamt.org.br/portal/2017/07/14/como-as-ferias-picadas-podem-afetar-o-seu-descanso/. Acesso em 4.7.2023.

[12] Disponível em https://rhpravoce.com.br/redacao/empresa-multara-funcionarios-que-atrapalharem-as-ferias-dos-colegas/. Acesso em 4.7.2023.

 

Fonte: Conjur

Consumação do delito do artigo 1º, caput da Lei 9.613/98

Em artigo anterior desta coluna [1]), foram feitas algumas considerações acerca do elemento subjetivo do caput do artigo 1º da Lei de Lavagem de Dinheiro (Lei nº 9.613/1998), concluindo-se pela impossibilidade de tipificação do delito em comento a título de dolo eventual e inaplicabilidade da Teoria de Cegueira Deliberada (Willfull Blindness Douctrine) no ordenamento jurídico pátrio. Isso porque quem oculta, quer esconder. Se quer esconder, é porque tem consciência da necessidade de fazê-lo. Esconde porque sabe que precisa esconder, e sabe que precisa esconder porque conhece a origem ilícita do que está escondendo. Assim, tal consciência da necessidade exige conhecimento inequívoco da origem ilícita do bem ocultado. Com efeito, só oculta quem quer esconder algo que sabe ser ilícito.

Nesta oportunidade, prossegue-se com a análise do tipo penal no tocante ao polo ativo, ou seja, quem poderá responder pela prática delitiva e algumas considerações sobre o momento consumativo.

O delito de ocultar ou dissimular a origem ilícita de bens, direitos ou valores provenientes de infração penal, por não exigir nenhuma qualidade especial do agente, trata-se de crime comum, no qual qualquer um pode figurar como sujeito ativo do delito em comento.

Segundo a doutrina, pode ser sujeito ativo desse crime o autor, coautor ou partícipe da infração penal antecedente [2], não constituindo a lavagem de dinheiro “post factum impunível”. Afasta-se, assim, a incidência do princípio da consunção. Deverá o agente, no caso, responder pelo concurso material de crimes, dado que, além de as condutas serem praticadas em momentos distintos, ofendem bens jurídicos diversos. Nesse sentido, para o STF [3] lavagem de dinheiro é crime autônomo, não se constituindo em mero exaurimento do crime antecedente”.

Todavia, tal entendimento não é isento de críticas. Parte da doutrina sustenta que o delito posterior, ou seja, a lavagem de dinheiro, constitui fato posterior não punível para o sujeito ativo do crime antecedente e a inexigibilidade de conduta diversa, por não ser exigível do infrator outra conduta que não a de esconder o produto ilícito obtido com a infração antecedente.

Entendemos que a lavagem de dinheiro pode configurar delito autônomo ou mero exaurimento, dependendo das circunstâncias do caso concreto. Se o fato subsequente (a lavagem) estiver na mesma linha de desdobramento causal do crime antecedente, isto é, se for praticada dentro do mesmo contexto fático, não haverá concurso de crimes. Este, portanto, o fator decisivo para a questão: similitude de contextos fáticos, sendo imprescindível a análise das circunstâncias de tempo e lugar.

Isso porque, para a incidência do princípio da consunção, é necessário que o fato seja considerado parte de um todo, ora como meio preparatório ou normal fase de execução do delito mais abrangente, ora como nova agressão ao mesmo bem jurídico sem configurar outro crime. Neste último caso, a continuidade da ação implica em mero exaurimento de uma infração penal já consumada.

Deste modo, caso fosse punida também como delito autônomo, a ação estaria sendo apenada duplamente, configurando bis in idem. Ao punir o todo, puniu-se a parte, sendo inadequado puni-la novamente. Para tanto, é imprescindível a similitude de contextos fáticos. Tratando-se de comportamentos destacados no tempo e no espaço, não há que se falar em consunção, mas, ao contrário, quando ambos os comportamentos estiverem na mesma linha de desdobramento causal, haverá consunção do fato antecedente, considerado meio preparatório, ou do consequente, como mero exaurimento. Como já ressaltado, a razão de ser desse princípio é evitar o bis in idem, ou seja, que o sujeito responda duas vezes pelo mesmo fato, como parte de um todo e como crime autônomo. Assim, por exemplo, se o autor de uma corrupção passiva recebe pagamento em dinheiro vivo ou mediante algum tipo de simulação, como por exemplo venda de imóvel por valor superior ao declarado, ou compra por valor inferior, incide a consunção, pois se trata de uma mesma ação. A forma de recebimento da vantagem ilícita não configura delito autônomo de lavagem, pois está ínsita no próprio delito antecedente de corrupção.

Ao contrário, se o sujeito, após realizar a ação delituosa (crime antecedente), prática outra conduta para simular ou ocultar o produto do crime, dificultando a localização do ativo, neste caso haverá concurso de crimes, não se podendo falar em uma única ação, pois os comportamentos foram distintos e destacados no tempo e no espaço. Após consumada a infração anterior, foram realizados outro conjunto de atos tendentes a efetivar ocultação ou dissimulação dos valores já incorporados ao patrimônio do autor, mas ainda sem aparência de licitude.

No tocante à consumação, trata-se de crime formal, isto é, perfaz-se com a ocultação ou dissimulação dos bens, direitos ou valores, independentemente de serem introduzidos no sistema econômico ou financeiro [4].

A doutrina majoritária entende tratar-se de crime permanente. “Assim, ainda que o agente consiga concluir uma operação, encobrindo a natureza, localização etc. de um bem ou valor, o fato é que nem a ocultação, nem a dissimulação, desaparecem com a concretização da mesma” [5], isso porque a jurisprudência tem interpretado tipos penais com o verbo ocultar como permanentes, como a ocultação de cadáver (CP, artigo 211): “O crime previsto no artigo 211 do Código Penal, na forma ocultar, é permanente. Logo, se encontrado o cadáver após atingida a maioridade, o agente deve ser considerado imputável para todos os efeitos penais, ainda, que a ação de ocultar tenha sido cometida quando era menor de 18 anos” [6] e de ocultação de documento (CP, artigo 305): “O delito do art. 305 do Código Penal, na forma ocultar, é permanente. Logo, sua consumação se protrai no tempo, o que impede, na espécie, que se reconheça a extinção da punibilidade em virtude da prescrição da pretensão punitiva” [7].

O STF corrobora com o mesmo entendimento: Assentado pelo Plenário desta Suprema Corte que o crime de lavagem de bens, direitos ou valores, quando praticado na modalidade ocultação, é de natureza permanente, protraindo-se sua execução até que os objetos materiais do branqueamento se tornem conhecidos” [8] e o crime de lavagem de bens, direitos ou valores, quando praticado na modalidade típica de ‘ocultar’, é permanente, protraindo-se sua execução até que os objetos materiais do branqueamento se tornem conhecidos, razão pela qual o início da contagem do prazo prescricional tem por termo inicial o dia da cessação da permanência, nos termos do art. 111, III, do Código Penal” [9].

A ocultação, de fato, configura delito permanente, uma vez que, enquanto os valores estiverem escondidos ou camuflados, eles permanecerão ocultos, protraindo-se no tempo a ação. No caso da dissimulação, porém, é possível que ocorra uma ação instantânea com efeitos permanentes, a depender da forma como o ardil for produzido. Por exemplo, compra subfaturada de imóvel, na qual o autor de corrupção passiva adquire o bem com valor bem inferior ao seu valor real. Neste caso, o crime se consumou no exato instante do negócio com valor simulado, mas seus efeitos permanecerão.

A diferença entre o crime permanente e o instantâneo de efeitos permanentes reside em que neste último (como a própria expressão sugere) a consumação se dá no momento exato da produção do resultado, de modo que somente seus efeitos perduram no tempo. No permanente, ao contrário, a ação não se esgota em um só instante, mas se renova a todo momento, assim como a produção do resultado. No caso da lavagem, se a ocultação fosse considerada delito instantâneo, ela estaria consumada no exato momento em que o agente realizasse a conduta. Não é isso o que ocorre, no entanto, pois, enquanto o agente mantiver escondido o produto da infração penal antecedente, a ação de ocultar estará sendo realizada. Não são os efeitos da ocultação que perduram no tempo, mas ela própria, a qual vai se estendendo enquanto não for interrompida. Por essa razão, enquanto os bens de origem ilícita estiverem sendo ocultados, o sujeito estará em situação de flagrância, além do que o lapso prescricional não se inicia até a cessação da permanência, nos termos do artigo 111, III, do CP.

Em entendimento parcialmente diverso, Pierpaolo Cruz Bottini [10] sustenta que ambas as formas configuram delito instantâneo de efeitos permanentes, destacando os efeitos da permanência delitiva na aplicação da lei penal no tempo: “Parece mais adequada do ponto de vista político criminal a caracterização da lavagem de dinheiro como crime instantâneo de efeitos permanentes. O injusto está consumado no ato da ocultação, e sobre ele incidem as normas vigentes à época dos fatos, da conduta e do dolo. As alterações legislativas posteriores não abarcam esse comportamento pretérito (a não ser as favoráveis ao réu) mesmo que os bens permaneçam ocultos”.

Destaca-se também que não é necessário que a ocultação seja sofisticada, perfeita e impossível de ser descoberta para que o delito se consume, segundo entendimento do STF [11], replicado em decisão de 2021 pelo STJ [12]“Conforme a célebre lição do Min. Sepúlveda Pertence, o tipo não reclama nem êxito definitivo da ocultação, visado pelo agente, nem o vulto e a complexidade dos exemplos de requintada ‘engenharia financeira’ transnacional, com os quais se ocupa a literatura“.

[1] Disponível em: ConJur – Lavagem de dinheiro, dolo e a teoria da cegueira deliberada

[2] Rodolfo Tigre Maia, Lavagem de dinheiro, cit., p. 92, e Marcia Monassi Mougenot Bonfim e Edilson Mougenot Bonfim, Lavagem de dinheiro, cit., p. 52.

[3] STF – HC: 92.279 RN, relator: JOAQUIM BARBOSA, data de julgamento: 24/6/2008, 2ª Turma, Data de Publicação: DJe 19/9/2008

[4] Rodolfo Tigre Maia, Lavagem de dinheiro, cit., p. 81; Marcia Monassi Mougenot Bonfim e Edilson Mougenot Bonfim, Lavagem de dinheiro, cit., p. 43-44; e Marco Antonio de Barros, Lavagem de dinheiro, cit., p. 46-47.

[5] Marcia Monassi Mougenot Bonfim e Edilson Mougenot Bonfim, Lavagem de dinheiro, cit., p. 44.

[6] STJ – REsp: 900509 PR 2006/0224593-1, Relator: Ministro FELIX FISCHER, Data de Julgamento: 26/06/2007, T5 – 5ª TURMA, Data de Publicação: DJ 27/08/2007 p. 287

[7] STJ – HC: 28837 PB 2003/0101067-4, Relator: Ministro FELIX FISCHER, Data de Julgamento: 16/03/2004, T5 – 5ª TURMA, Data de Publicação: DJ 10/05/2004, p. 312

[8] STF – HC: 160225 RJ 0075634-83.2018.1.00.0000, Relator: GILMAR MENDES, Data de Julgamento: 29/05/2020, 2ª Turma, Data de Publicação: 06/08/2020

[9] STF – AP: 863 SP – SÃO PAULO 0000732-48.2007.1.00.0000, Relator: Min. EDSON FACHIN, Data de Julgamento: 23/05/2017.

[10] Bottini, Pierpaolo Cruz e Badaro, Gustavo Henrique. Lavagem de Dinheiro. 5ª Ed. Editora Thompson Reuters, 2023.

[11] STF, 1ª Turma, RHC 80.816-6/SP, DJ de 18-06-2001

[12] STJ – AREsp: 293896 RS 2013/0038987-7, Relator: Ministro ANTONIO SALDANHA PALHEIRO, Data de Publicação: DJ 04/06/2021

 

 

Fonte: Conjur

Projeto estabelece que a revisão de decisão transitada em julgado não terá efeito retroativo

Zucco quer acabar com insegurança jurídica em relação a decisões transitadas em julgado

O Projeto de Lei 878/23, do deputado Zucco (Republicanos-RS), estabelece que a revisão de decisão transitada em julgado não pode ter efeito retroativo, ou seja, passa a valer a partir do momento que a nova decisão tor tomada. Em tramitação na Câmara dos Deputados, a proposta altera o Código de Processo Civil.

Zucco afirma que o projeto visa acabar com a insegurança jurídica ocasionada por uma decisão tomada por unanimidade pelos ministros do Supremo Tribunal Federal (STF) em fevereiro de 2023. Na ocasião, eles entenderam que decisão judicial definitiva envolvendo tributo é anulada quando o Supremo define em novo julgamento que o tributo é válido. Nesse caso, os tributos que deixaram de ser pagos durante os anos em que vigorou uma decisão considerada definitiva voltam a ser devidos pelo contribuinte.

Para o deputado, a nova jurisprudência do STF fragiliza a coisa julgada em matéria tributária. “Agora, mesmo tendo sido isentado por decisão transitada em julgado, pode um contribuinte ser compelido a pagar determinado tributo, o que, convenhamos, traz uma margem grande de insegurança jurídica”, disse Zucco.

Tramitação
O projeto será analisado em caráter conclusivo pela Comissão de Constituição e Justiça e de Cidadania (CCJ).

Fonte: Câmara Notícias

Projeto estabelece que coautor de infanticídio responde pelo crime de homicídio

Cleia Viana/Câmara dos Deputados
O autor do projeto é o deputado Alberto Fraga. Na foto, ele discursa no Plenário
Fraga considera que apenas a mãe pode receber pena reduzida

O Projeto de Lei 541/23 estabelece que o coautor do crime de infanticídio está sujeito à pena do crime de homicídio simples, que é de 6 a 20 anos de reclusão. Previsto no artigo 123 do Código Penal, o infanticídio é o assassinato do próprio filho pela mãe, durante o parto ou logo após, sob a influência do estado puerperal. A pena nesse caso é reduzida: detenção de 2 a 6 anos.

Em análise na Câmara dos Deputados, o projeto pretende evitar o enquadramento de terceiros no crime que é específico da mãe com estado psíquico alterado. “Somente a mãe deve receber o benefício da pena reduzida, pois se encontra com seu estado psíquico alterado. Aqueles que, alheios a essa condição peculiar da agente, a auxiliam a praticar o delito devem responder por homicídio”, argumentou o autor do projeto, deputado Alberto Fraga (PL-DF).

O projeto também criminaliza a indução ao infanticídio – o ato de induzir a mãe a matar o próprio filho.  A pena será de reclusão de 2 a 6 anos se o infanticídio se consumar; ou de reclusão, de 1 a 3 anos, se na tentativa de infanticídio provocar lesão corporal grave.

Tramitação
A proposta está sujeita à apreciação do Plenário e será analisada pela Comissão de Constituição e Justiça e de Cidadania.

 

Fonte: Câmara Notícias

Como protege direitos, juiz das garantias não cabe só ao Judiciário

Para manter a autonomia, o Judiciário tem competência privativa para propor alterações em sua estrutura e funcionamento. Porém, esse argumento não serve para barrar leis de iniciativa do Legislativo ou do Executivo que, com o fim de proteger direitos fundamentais, promovem mudanças na Justiça — como o juiz das garantias.

Ao criar o mecanismo, a Lei “anticrime” (Lei 13.964/2019) buscou reduzir o risco de parcialidade nos julgamentos. Com a medida, o juiz das garantias fica responsável pela fase investigatória e o juiz da instrução fica a cargo do andamento do processo e da sentença. Entre as atribuições do juiz das garantias está decidir sobre o requerimento de prisão provisória ou outra medida cautelar e sobre a homologação de acordo de colaboração premiada. A competência do julgador acaba com o recebimento da denúncia ou queixa.

A partir desse momento, o juiz da instrução assume o caso e, em até dez dias, deve reexaminar a necessidade das medidas cautelares impostas pelo juiz das garantias. E o julgador que, na fase de investigação, praticar atos privativos da autoridade policial ou do Ministério Público, ficará impedido de atuar no processo.

Em 22 de janeiro de 2020, um dia antes de a lei “anticrime” (que havia sido adiada por 180 dias pelo ministro Dias Toffoli) entrar em vigor, o ministro do Supremo Tribunal Federal Luiz Fux suspendeu a implementação do juiz das garantias. Três anos depois, Fux apresentou voto pela inconstitucionalidade, por diversos aspectos, do juiz das garantias.

Um dos principais argumentos do ministro e dos autores das ações, como a Associação dos Magistrados Brasileiros e a Associação dos Juízes Federais do Brasil, é que a norma desrespeitou a reserva de iniciativa do Judiciário para dispor sobre a competência e funcionamento dos órgãos jurisdicionais e a criação de novas varas (artigo 96, I, “a” e “d”, da Constituição).

O pacote “anticrime” foi apresentado por Sergio Moro, então ministro da Justiça e Segurança Pública do governo Jair Bolsonaro (PL), em fevereiro de 2019. Na Câmara dos Deputados, a proposta foi apensada ao Projeto de Lei 10.372/2018, que reunia sugestões de alteração da legislação penal e processual penal feitas por comissão de juristas presidida pelo ministro do STF Alexandre de Moraes. Ou seja: a Lei “anticrime” teve origem no Executivo e no Legislativo, não no Judiciário.

O texto de Moro foi significativamente alterado no Congresso, de forma a atenuar seu teor punitivista. Em setembro de 2019, o grupo de trabalho que analisava o pacote “anticrime” na Câmara aprovou emenda que incluía a criação do juiz das garantias no projeto. A proposta foi dos deputados Margarete Coelho (PP-PI) e Paulo Teixeira (PT-SP). Em dezembro daquele ano, o projeto foi aprovado pelo parlamento e sancionado pelo presidente Jair Bolsonaro (PL).

O Judiciário tem algumas competências legislativas e regulamentares exclusivas, listadas nos artigos 93 e 96 da Constituição. Por exemplo, cabe ao Supremo Tribunal Federal, aos tribunais superiores e aos Tribunais de Justiça propor ao poder Legislativo respectivo reajustes salarias, criação e extinção de cargos e cortes inferiores e alteração da organização e da divisão judiciárias. Também compete aos tribunais dispor sobre a competência e o funcionamento de seus órgãos jurisdicionais e administrativos. E o Supremo é o responsável por regulamentar o Estatuto da Magistratura.

Dos três poderes, o Judiciário é o único que não tem legitimidade popular. Afinal, seus membros não são eleitos pelo povo. Eles ingressam na carreira por meio de concurso público ou escolha do chefe do Executivo — nos postos de magistrados eleitorais ou selecionados pelo quinto constitucional ou ministros de tribunais superiores.

Ainda assim, a competência do Judiciário para dispor sobre sua estrutura, funcionamento e orçamento não é antidemocrática, avalia Pedro Serrano, professor de Direito Constitucional da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo.

“O Judiciário é um poder de Estado, não é um órgão qualquer. Como poder de Estado, deve ter o mínimo de autonomia financeira e estrutural”, afirma Serrano.

As hipóteses de iniciativa legislativa reservada ao Judiciário são concretizações do princípio da separação de poderes. Portanto, não violam o princípio democrático, desde que adequadamente interpretadas, opina Rodrigo Brandão, professor de Direito Constitucional da Universidade do Estado do Rio de Janeiro.

“A Constituição forma um sistema harmônico que equilibra os princípios da separação de poderes e democrático, do que resulta que as hipóteses de iniciativa privativa são apenas aquelas previstas expressamente na Constituição, de modo que as demais matérias podem ter a sua iniciativa em parlamentares ou na chefia do poder Executivo. Apenas a interpretação excessivamente abrangente das hipóteses de iniciativa privativa poderiam ser antidemocráticas ou estimular o corporativismo, e não a sua previsão em si pelo constituinte”.

Direitos fundamentais
A questão é que o juiz das garantias, embora interfira na organização e funcionamento do Judiciário, é matéria processual penal, que visa garantir direitos fundamentais. E a Justiça não tem competência privativa nessa matéria, afirma o jurista Lenio Streck, professor de Direito Constitucional da Universidade do Vale do Rio dos Sinos e da Universidade Estácio de Sá.

“Não entendo essa objeção de ordem formal. O que o STF deve é fazer uma leitura constitucionalmente adequada do juiz das garantias, uma leitura substancial, e não meramente procedimental, do dispositivo que atribui competência privativa ao Judiciário. O juiz das garantias altera a estrutura do Judiciário, é verdade. Mas, antes disso, proporciona alterações no Código de Processo Penal. Um ponto importante: garantias processuais são matéria que diz respeito a direitos fundamentais”.

“Não se pode deixar que o Judiciário — só ele — tenha iniciativa. Quer dizer: pode o sistema de garantias esperar pela boa vontade do judiciário? O poder Legislativo é competente de forma mais ampla”, diz Lenio. Ele ressalta que a alteração na estrutura do Judiciário é um efeito colateral da criação de um instrumento fundamental, que existe em diversos outros países.

A criação do juiz das garantias não é uma mera questão de estrutura do Judiciário, diz Pedro Serrano. “O mecanismo diz respeito ao exercício de um direito fundamental. Ter juízes diferentes para conduzir a investigação e o processo é algo essencial para a garantia de imparcialidade do juízo e do devido processo legal”.

Rodrigo Brandão também entende que a instituição do mecanismo não é de iniciativa privativa do Judiciário. Isso porque “a matéria é tipicamente de processo penal, não se relacionando com o regime jurídico da magistratura (artigo 93 da Constituição), nem com a autonomia dos tribunais (artigo 96)”. “A bem da verdade, traduz uma relevante evolução na proteção dos direitos fundamentais dos réus nos processos penais”, opina.

Entendimento do STF
O Supremo Tribunal Federal já declarou a constitucionalidade de alterações na estrutura e funcionamento do Judiciário que não foram propostas por tal poder.

A Corte validou os juizados de violência doméstica, estabelecidos pela Lei Maria da Penha (Lei 11.340/2006), que teve origem no Executivo (ADC 19). O relator do caso, ministro Marco Aurélio, apontou que a União tem competência privativa para legislar sobre processo penal. Também afirmou que o tema é de caráter nacional e que a lei não criou varas judiciais nem estabeleceu o número de magistrados a serem alocados nos juizados, o que seria de competência dos estados.

Em sustentação oral a favor do juiz das garantias em nome do Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil, o criminalista Alberto Zacharias Toron mencionou a validação dos juizados de violência doméstica. E citou a Lei 9.099/1995, que criou os juizados especiais cíveis e criminais. A norma, originada de projeto do então deputado federal Michel Temer (MDB-SP), não teve sua iniciativa questionada. Porém, o Supremo a analisou em diversas ocasiões e nunca contestou o fato de ela não ter sido proposta pelo Judiciário.

 

Fonte: Conjur