Dedutibilidade das perdas em operações de derivativos de hedge

Em um cenário cada vez mais globalizado, as empresas têm se sujeitado cada vez mais a variáveis de mercado, cuja oscilação está fora de seus controles, tais como taxas de juros, câmbio e preços de commodities.

Tendo em vista tal cenário, é comum que as empresas se utilizem de instrumentos derivativos com o intuito de neutralizar ou mitigar a exposição aos riscos decorrentes de algumas variáveis de mercado [1].

O instrumento derivativo pode ser definido como um contrato cujo valor de mercado deriva ou resulta do preço de outro contrato ou título [2].

Os derivativos podem ser utilizados com diferentes objetivos. A título de ilustração, Rachel Sztajn classifica os participantes de tal mercado em três grupos: (i) os hedgers, que realizam operações com derivativos visando se proteger contra a exposição de riscos; (ii) os especuladores, que enxergam nas operações com derivativos forma de obter ganhos com a volatilidade dos preços e assumem os riscos de tais posições; e (iii) os arbitradores, que se aproveitam de uma eventual assimetria de preços em diferentes mercados de um mesmo ativo [3].

Como decorrência do uso de instrumentos derivativos, as pessoas jurídicas podem obter resultados positivos ou negativos, de forma que o artigo 17 da Lei n. 9.430/96 dispõe que irão compor o lucro real os resultados líquidos (positivos ou negativos) obtidos em operações de cobertura (hedge) realizadas em mercados de liquidação futura, diretamente pela empresa brasileira, em bolsas no exterior [4].

O disposto no referido artigo é integralmente transcrito no caput do artigo 466 do Decreto n. 9.580/18 (Regulamento do Imposto de Renda de 2018 — RIR/18).

Vale notar que no âmbito do referido decreto [5], consta que para fins do lucro real os lucros serão computados e as perdas não serão dedutíveis na hipótese de operações que não se caracterizem como de cobertura. O artigo 25, §5º, da Lei nº 9.249/95[6] é apontado como base legal para tal dispositivo normativo, no entanto, verifica-se que o texto da lei é distinto daquele do RIR/18 e se refere à disposição específica de tributação de lucros, rendimentos e ganhos de capital auferidos no exterior.

Em que pese tal incongruência, fato é que o artigo 17 da Lei nº 9.430/96 estabelece que as perdas em operações de cobertura são dedutíveis.

A definição legal das operações de cobertura se encontra no §1º do artigo 77 da Lei n. 8.981/95 [7], que estabelece que elas são aquelas operações destinadas, exclusivamente, à proteção contra riscos inerentes às oscilações de preço ou de taxas, quando o objeto do contrato negociado: (i) estiver relacionado com as atividades operacionais da pessoa jurídica; e (ii) destinar-se à proteção de direitos ou obrigações da pessoa jurídica.

O artigo 108 da Instrução Normativa RFB nº 1.700/17[8] prevê critérios adicionais que devem ser cumpridos cumulativamente pelo contribuinte para que haja dedutibilidade das perdas com hedge: (i) comprovação da necessidade do hedge por meio de controles que mostrem os valores de exposição ao risco relativo aos bens, direitos, obrigações e outros itens objeto de hedge, destacados o processo de gerenciamento de risco e a metodologia utilizada na apuração desses valores; e (ii) demonstração da adequação do hedge por meio de controles que comprovem a existência de correlação, na data da contratação da operação, entre as variações de preço do instrumento de hedge e os retornos esperados pelos bens, direitos, obrigações e outros itens objeto de hedge.

No que tange à comprovação da necessidade e da adequação do hedge exigida pela Instrução Normativa RFB nº 1.700/17, cumpre notar a importância da escrituração contábil do hedge. Nessa linha, Eduardo Flores e Nelson Carvalho assinalam que “a formalização da contabilidade de hedge cria uma salvaguarda de históricos documentais úteis para comprovações, sobretudo de âmbito fiscal, da necessidade da contratação de tais produtos com o intuito de se resguardar a higidez patrimonial das entidades”[9].

Feitas as considerações gerais sobre o tema, passaremos a analisar os precedentes do Carf em que a dedutibilidade das perdas com hedge foi analisada.

No Acórdão 1401-001.396 (de 04/03/15), a turma julgou, por maioria de votos, pela dedutibilidade de perdas decorrentes de contratos de swap feitos com o intuito de proteção de exposição associada a empréstimo e, posteriormente, vinculada a investimento no exterior.

Nesse caso, os recursos foram captados por meio de empréstimo em moeda estrangeira, tendo sido inicialmente aplicados no mercado financeiro e, posteriormente, destinados à aquisição do investimento no exterior.

A turma entendeu que sendo reconhecida a regularidade do empréstimo e do investimento adquirido por meio dos recursos captados, deveria ser reconhecida a finalidade de hedge na contratação dos contratos de swap, visto que eles se prestariam a neutralizar a exposição associada a uma obrigação (empréstimo) e, posteriormente, um direito (investimento no exterior).

É interessante notar que a turma entendeu que os requisitos previstos no §1º do artigo 77 da Lei nº 8.981/95 (o objeto do contrato negociado estar relacionado com as atividades operacionais da pessoa jurídica; e o contrato se destinar à proteção de direitos ou obrigações da pessoa jurídica) seriam alternativos e não cumulativos.

No Acórdão nº 1402-002.181 (de 03/05/16), a turma julgou, por unanimidade, pela indedutibilidade das perdas auferidas com instrumentos derivativos.

No caso em tela, a contribuinte atuava no setor têxtil e contratou derivativos relacionados à taxa de câmbio no âmbito de um financiamento estruturado, alegando que haveria a finalidade de hedge, dado que por meio de tais contratos, a empresa teria substituído a exposição à taxa de juros por exposição à taxa de câmbio, com o objetivo de reduzir o custo de capital, o que faria parte da atividade operacional de qualquer companhia.

Todavia, a turma entendeu que a operação financeira não estaria protegendo direitos ou obrigações em moeda estrangeira e tampouco estaria relacionada à atividade operacional da pessoa jurídica, na medida em que “a assunção de riscos no mercado financeiro, ou mesmo a troca de um risco por outro (por exemplo, troca de exposição ao CDI por exposição à variação cambial), ainda que com o fim de reduzir o custo de capital de terceiros, não pode ser compreendida como operação relacionada com as atividades operacionais da pessoa jurídica”.

No Acórdão 1402-002.415 (de 21/03/17), a turma julgou, por unanimidade, pela indedutibilidade das perdas com operações financeiras quando houve liquidação antecipada de contratos “non-deliverable forward”, uma vez que tal liquidação descaracterizaria a finalidade de hedge, que poderia eventualmente ser comprovada se tais contratos fossem mantidos até o vencimento.

No Acórdão 1401-002.352 (de 10/04/18), a turma decidiu de forma unânime pela dedutibilidade das perdas incorridas com derivativos no ano de 2009. Para tanto, a turma considerou que as operações de hedge tinham o objetivo de conferir cobertura cambial até a liquidação do financiamento para exportação dos produtos fabricados pela recorrente.

No Acórdão 1302-004.262 (de 21/01/20), a turma decidiu, por unanimidade, pela dedutibilidade das perdas em  operações de hedge. No referido caso, havia uma sociedade do mesmo grupo econômico localizada no exterior que centralizava a contratação das operações de hedge, sendo que no voto do relator constou que inexistia vedação nas normas regulatórias acerca da utilização de intermediários (ex.: hedge center) para a realização de operações de cobertura.

Ademais, entendeu-se que a documentação trazida pela contribuinte após conversão em diligência seria suficiente para demonstrar o caráter protetivo e a estratégia de gestão de riscos da entidade.

No Acórdão 1302-004.263 (de 21/01/20), a turma decidiu, por unanimidade, pela dedutibilidade das perdas em operações com derivativos na base da CSLL, visto que não haveria norma dispondo sobre a indedutibilidade para fins de CSLL das perdas incorridas com instrumentos financeiros, ainda que eles tivessem caráter especulativo, sendo inclusive citado que o Anexo I da Instrução Normativa RFB nº 1.700/17 corrobora que não há tal ajuste para a CSLL.

No Acórdão 1201-003.609 (de 10/03/20), a turma decidiu, por maioria de votos, por dar provimento ao recurso voluntário, garantindo a dedutibilidade de perdas em operações de hedge relacionadas ao fluxo de caixa futuro.

Assim, foi entendido que as operações de hedge com a finalidade de proteção de fluxos de caixa futuros estariam abrangidas na definição de operação de cobertura do artigo 77, §1º, da Lei nº 8.981/95, ou seja, alcançam as operações contratadas para proteção de itens ainda não registrados como ativos ou passivos no balanço patrimonial da companhia.

Vale notar que a relatora esclareceu que as operações com finalidade de hedge são também objeto de regras contábeis específicas, regras essas que reconhecem expressamente a figura do hedge de fluxo de caixa, o que reforçaria a validade dessa categoria de hedge para fins fiscais.

Outro ponto interessante foi a menção de que a gestão de exposições não seria uma liberalidade do administrador, mas uma obrigação imposta pela legislação societária, a teor do disposto nos artigos 153 e 154 da Lei nº 6.404/76.

No Acórdão 1301-006.301 (de 14/03/23), a turma decidiu, por maioria de votos, pela indedutibilidade das perdas com instrumentos financeiros, uma vez que não houve a comprovação da necessidade da despesa com hedge, tampouco houve a identificação do bem que foi protegido com o hedge.

No referido acórdão foi entendido que as operações financeiras praticadas (que envolviam taxas de câmbio, índices de preços, taxas de juros) não teriam relação com a atividade da empresa, uma vez que seu objeto social era de holding, de modo que não poderiam ser enquadradas como operações de cobertura (hedge).

Diante do exposto, nota-se que é fundamental que o contribuinte possua documentação comprobatória para demonstrar o caráter protetivo de suas operações com derivativos, sendo a contabilidade importante instrumento para a evidenciação da necessidade e adequação dos contratos.

*Este texto não reflete a posição institucional do Carf, mas, sim, uma análise dos seus precedentes publicados no site do órgão, em estudo descritivo, de caráter informativo, promovido pelos seus colunistas.

[1] PINTO, Alexandre Evaristo; OYAMADA, Bruno; MOSQUERA, Roberto Quiroga. Instrumentos Derivativos Contratados com Finalidade de Cobertura (Hedge) e o Tratamento Fiscal das Perdas na Apuração do IRPJ e da CSLL. In: VETTORI, Gustavo; PINTO, Alexandre Evaristo; SILVA, Fabio Pereira da; MURCIA, Fernando. Controvérsias Jurídico-Contábeis. Volume 4. São Paulo: Atlas, 2023.

[2] SANVICENTE, Antônio Zoratto. Derivativos. São Paulo: Publifolha, 2003. p. 9.

[3] SZTAJN, Rachel. Futuros e Swaps: uma visão jurídica. São Paulo: Cultural Paulista, 1999. p. 200-203.

[4] Lei n. 9.430/96: “Art. 17. Serão computados na determinação do lucro real os resultados líquidos, positivos ou negativos, obtidos em operações de cobertura (hedge) realizadas em mercados de liquidação futura, diretamente pela empresa brasileira, em bolsas no exterior.

Parágrafo único. A Secretaria da Receita Federal e o Banco Central do Brasil expedirão instruções para a apuração do resultado líquido, sobre a movimentação de divisas relacionadas com essas operações, e outras que se fizerem necessárias à execução do disposto neste artigo”.

[5] RIR/18: “Art. 466 (…) § 2º Na hipótese de operações que não se caracterizem como de cobertura, para fins de apuração do lucro real, os lucros obtidos serão computados e os prejuízos não serão dedutíveis ( Lei nº 9.249, de 1995, art. 25, § 5º )”.

[6] Lei n. 9.249/95: “Art. 25. Os lucros, rendimentos e ganhos de capital auferidos no exterior serão computados na determinação do lucro real das pessoas jurídicas correspondente ao balanço levantado em 31 de dezembro de cada ano. (…)

  • 5º Os prejuízos e perdas decorrentes das operações referidas neste artigo não serão compensados com lucros auferidos no Brasil”.

[7] Lei n. 8.981/95: “Art. 77. O regime de tributação previsto neste Capítulo não se aplica aos rendimentos ou ganhos líquidos: (…)

V – em operações de cobertura (hedge) realizadas em bolsa de valores, de mercadoria e de futuros ou no mercado de balcão.

  • 1º Para efeito do disposto no inciso V, consideram-se de cobertura (hedge) as operações destinadas, exclusivamente, à proteção contra riscos inerentes às oscilações de preço ou de taxas, quando o objeto do contrato negociado:
  1. a) estiver relacionado com as atividades operacionais da pessoa jurídica;
  2. b) destinar-se à proteção de direitos ou obrigações da pessoa jurídica.
  • 2º O Poder Executivo poderá definir requisitos adicionais para a caracterização das operações de que trata o parágrafo anterior, bem como estabelecer procedimentos para registro e apuração dos ajustes diários incorridos nessas operações”.

[8] Instrução Normativa RFB n. 1.700/17: “Art. 108. Sem prejuízo do disposto no art. 107, as operações com instrumentos financeiros derivativos destinadas a hedge devem atender, cumulativamente, às seguintes condições:

I – ter comprovada a necessidade do hedge por meio de controles que mostrem os valores de exposição ao risco relativo aos bens, direitos, obrigações e outros itens objeto de hedge, destacados o processo de gerenciamento de risco e a metodologia utilizada na apuração desses valores; e

II – ter demonstrada a adequação do hedge por meio de controles que comprovem a existência de correlação, na data da contratação da operação, entre as variações de preço do instrumento de hedge e os retornos esperados pelos bens, direitos, obrigações e outros itens objeto de hedge”.

[9] FLORES, Eduardo; CARVALHO, Nelson. A Implementação do Hedge Accounting como Mecanismo de Governança Corporativa e suas Virtuosas Consequências para fins de Tributação sobre o Lucro. In: PINTO, Alexandre Evaristo; SILVA, Fabio Pereira da; MURCIA, Fernando; VETTORI, Gustavo. Controvérsias Jurídico-Contábeis. São Paulo: Atlas, 2019.

Fonte: Conjur

Vítimas deverão ser ouvidas antes do prosseguimento de ação contra réu denunciado por estelionato

Em respeito às alterações promovidas no Código Penal pelo Pacote Anticrime (Lei 13.964/2019), o vice-presidente do Superior Tribunal de Justiça (STJ), ministro Og Fernandes, no exercício da presidência, determinou que as supostas vítimas de um homem denunciado pela prática de sete estelionatos sejam ouvidas em juízo antes do prosseguimento da ação penal.

No habeas corpus com pedido de liminar, a defesa alegou que o processo não observou a necessidade de representação como condição de procedibilidade da ação penal por estelionato e solicitou a suspensão da audiência de instrução e julgamento, marcada para o próximo dia 8 de agosto.

O argumento já havia sido rejeitado na primeira instância e, posteriormente, em habeas corpus submetido ao Tribunal de Justiça de São Paulo (TJSP).

STF entende que nova regra deve ser aplicada de forma retroativa

O ministro Og Fernandes afirmou que a Lei 13.964/2019 modificou a legislação penal para exigir a representação da vítima como condição para a ação penal no crime de estelionato (artigo 171, parágrafo 5º, do Código Penal). Ele lembrou também que o Supremo Tribunal Federal (STF) considerou que essa exigência deve ser aplicada retroativamente, mesmo nos processos em que a denúncia já tenha sido recebida.

“Defiro o pedido de liminar para determinar que o juízo de primeiro grau proceda à intimação das vítimas para que se manifestem até a audiência virtual designada para 8/8/2023, podendo ser inclusive neste ato processual”, concluiu o ministro.

mérito do habeas corpus ainda será analisado pela Sexta Turma do STJ, sob a relatoria do desembargador convocado Jesuíno Rissato.

Fonte: STJ

Supremo valida estatuto dos guardas municipais

O Supremo Tribunal Federal (STF) decidiu validar a lei que criou o Estatuto Geral das Guardas Municipais. A norma entrou em vigor em 2014 e foi sancionada pela então presidente Dilma Rousseff para estabelecer normas gerais para as guardas municipais de todo o país.

A lei foi questionada no Supremo pela Associação Nacional dos Agentes de Trânsito no Brasil (AGTBrasil). Entre os pontos questionados, a associação pediu a suspensão do trecho que concedeu aos guardas a competência de fiscalização de trânsito.

A unanimidade na votação foi formada a partir do voto do relator, ministro Gilmar Mendes. Para o ministro, os guardas podem fazer a fiscalização de trânsito nos municípios.

“A Lei Federal 13.022/2014, ao dispor sobre o Estatuto das Guardas Municipais, constitui norma geral, de competência da União, sendo legítimo o exercício, pelas guardas municipais, do poder de polícia de trânsito, se assim prever a legislação municipal’, escreveu o ministro.

O julgamento ocorreu no plenário virtual, modalidade na qual os ministros inserem os votos no sistema e não há deliberação presencial. O julgamento foi finalizado no dia 30 de junho, e o resultado foi divulgado hoje (11).

Fonte: Logo Agência Brasil

STF reconhece constitucionalidade de norma que reestruturou Gaeco

Por compreender que a norma estabeleceu a estruturação de órgão administrativo interno de cooperação com os promotores naturais, o Supremo Tribunal Federal reconheceu a constitucionalidade da resolução que reorganizou o Grupo de Atuação Especializada de Combate ao Crime Organizado (Gaeco) do Ministério Público do Rio de Janeiro (MP-RJ).

Divulgação/MP-RJMP é o destinatário das apurações de ilícitos criminais, disse a relatora do caso

A ação direta de inconstitucionalidade 7.170 foi apresentada pela Associação dos Delegados de Polícia do Brasil (Adepol). A entidade alegava que a resolução, assinada pelo procurador-geral de Justiça, Luciano Mattos, usurpava a competência da União para legislar sobre Direito Penal e Processual.

Em seu voto, a ministra relatora, Cármen Lúcia, destacou que a resolução não dispõe especificamente sobre a tramitação de inquéritos policiais, de procedimentos administrativos de investigação ou de ações penais, e que, nos dispositivos impugnados, apenas se estabeleceu a estruturação de órgão administrativo interno de cooperação com os promotores naturais.

Além disso, ela também ressaltou que a estruturação interna, por ato do PGJ, de grupos de atuação especializada fundamenta-se nos artigos 10, incisos V, VIII eIX, alínea “a”, e 24 da Lei Orgânica Nacional do Ministério Público (Lei 8.625/1993).

E, ainda que no mesmo sentido, a Lei Orgânica do MPRJ – Lei Complementar n. 106/2003, estabelece, em seu artigo 11, que compete ao PGJ expedir atos de regulamentação interna, designar, com a concordância do titular do órgão de execução, outro membro do Ministério Público para funcionar em feito determinado de atribuição daquele, e praticar atos e decidir questões relativas à administração geral.

“Na espécie, não houve usurpação de competência legislativa privativa da União ou da iniciativa do Presidente da República, por não haver incompatibilidade entre as Resoluções questionadas, a Lei Orgânica Nacional do Ministério Público e a Lei Orgânica do MPRJ. Tampouco é necessária a edição de lei formal, pois as normas impugnadas não inovam nem alteram, menos ainda usurpam atribuições do promotor natural. Tratam apenas da organização interna de órgão facultativo de apoio do MPRJ, estando na esfera de autonomia administrativa do órgão”, diz  trecho do voto da ministra relatora.

Por fim, ainda em seu voto, a ministra pontuou que, como titular da ação penal, o Ministério Público é o destinatário das atividades de investigação para apuração de ilícitos criminais.

“Assim, a ele cabe intervir diretamente nas investigações, requisitando diligências e podendo investigar diretamente, de forma supletiva à atividade policial. Não foi apresentada pela autora alguma circunstância apta a superar o precedente firmado no Recurso Extraordinário 593.727, devendo ser privilegiada a segurança jurídica e o respeito à tese firmada em repercussão geral, devidamente fundamentada.”

O entendimento de Cármen Lúcia foi seguido integralmente pelos ministros Alexandre de Moraes, Edson Fachin, Dias Toffoli, Luiz Fux, Rosa Weber e Luís Roberto Barroso. Ficaram vencidos os ministros Gilmar Mendes, André Mendonça e Kassio Nunes Marques. Com informações da assessoria de imprensa do MP-RJ.

Fonte: Conjur

Direito fundamental à segurança jurídica na Constituição

O princípio da segurança jurídica constitui elemento essencial e princípio estruturante da noção de Estado de Direito, visto que a segurança jurídica coincide com uma das mais profundas aspirações do ser humano [1], viabilizando, mediante a garantia de uma certa estabilidade das relações jurídicas e da própria ordem jurídica como tal, tanto a elaboração de projetos de vida, bem como a sua realização [2].

No caso da ordem jurídica brasileira, a Constituição da República Federativa do Brasil de 1988 (CF), após mencionar a segurança como valor fundamental no seu Preâmbulo, a incluiu no seleto elenco dos direitos “invioláveis” arrolados no caput do artigo 5º, ao lado dos direitos à vida, liberdade, igualdade e propriedade.

Muito embora em nenhum momento tenha o nosso constituinte referido expressamente um direito à segurança jurídica, este (em algumas de suas manifestações mais relevantes) acabou sendo contemplado em diversos dispositivos da Constituição, como é o caso, dentre outros (e limitamo-nos aqui a exemplos extraídos do artigo 5º, da CF, do princípio da legalidade e do correspondente direito a não ser obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de lei (artigo 5º, inciso II), da expressa proteção do direito adquirido, da coisa julgada e do ato jurídico perfeito (artigo 5º, inciso XXXVI), da irretroatividade da lei penal desfavorável (artigo 5º, inciso XL [3].

Igualmente, é possível reconhecer o princípio da segurança jurídica como implicitamente consagrado no artigo 37 da CF, ao dispor sobre os princípios regentes da administração pública, como é o caso da legalidade. Da mesma forma, existem manifestações importantes da segurança jurídica no campo das limitações constitucionais ao poder de tributar, em especial no artigo 150, inciso I (é vedado aos entes federativos exigir ou aumentar tributo sem lei que o estabeleça), inciso II (vedação de tratamento desigual entre os contribuintes), inciso III, letras “a”, “b” e “c” (todos relativos à irretroatividade em matéria tributária).

Além disso, de há muito resulta incontroverso, em sede doutrinária e jurisprudencial (destaque para a prática decisória do STF e do STJ) que a CF consagra um princípio geral e fundamental da segurança jurídica e um correspondente direito fundamental, ambos implicitamente positivados no texto constitucional, cujos conteúdos e alcance serão devidamente desenvolvidos logo a seguir.

Quanto ao conteúdo do princípio da segurança jurídica, como bem destaca Gomes Canotilho, em lição que recolhemos como pressuposto da nossa análise, o princípio da segurança jurídica (aqui também tomado em sentido amplo como abrangendo a proteção da confiança) exige tanto a confiabilidade, clareza, racionalidade e transparência dos atos do poder público, quanto a segurança do cidadão no que diz com as suas disposições pessoais e efeitos jurídicos de seus próprios atos, de tal sorte que tanto a segurança jurídica quanto a proteção da confiança incidem em face de qualquer ato de qualquer órgão estatal [4].

A segurança jurídica, na sua dimensão objetiva, exige um patamar mínimo de continuidade do (e, no nosso sentir, também no) Direito, ao passo que, na perspectiva subjetiva, significa a proteção da confiança do cidadão nesta continuidade da ordem jurídica no sentido de uma segurança individual das suas próprias posições jurídicas [5].

De acordo com a lição de Hartmut Maurer, a segurança jurídica pode ser compreendida em sentido dúplice, pois, se por um lado, ela se refere à função do direito, visando assegurar segurança por meio do direito, no sentido de que o direito deve criar uma ordem consistente e segura, por outro, ela forma um princípio estruturante, que diz com a clareza e determinação do próprio conteúdo das normas, de modo a assegurar a segurança do direito [6].

De modo complementar, Virgílio Afonso da Silva assinala que os objetivos primordiais da segurança jurídica são “a garantia de certa estabilidade em relação a fatos jurídicos ocorridos no passado, de clareza em relação ao direito vigente no presente, e de alguma forma de previsibilidade para as relações jurídicas futuras” [7].

A segurança jurídica pode ser compreendida, em certa medida, como uma “ponte normativa intertemporal” a (inter)ligar o passado, o presente e o futuro, no tocante aos atos e fatos jurídicos (legislativos, administrativos e jurisprudenciais). Na feliz síntese de Gomes Canotilho, a segurança jurídica, na sua dimensão objetiva (do direito objetivo), aponta para a garantia da estabilidade de ordem jurídica, ao passo que, do ponto de vista subjetivo, exige que o cidadão (indivíduo) possa confiar nos atos do Poder Público, no sentido da calculabilidade e previsibilidade dos seus (dos atos do Poder Público) respectivos efeitos jurídicos [8], o que, por sua vez, remete à noção de proteção da confiança legítima como expressão essencial da segurança jurídica no Estado de Direito [9]. A proteção da confiança, como corolário do princípio da (e direito fundamental à) segurança jurídica, de há muito encontra guarida e aplicação na jurisprudência do STF [10] e do STJ [11].

Note-se, também nessa quadra, que a estabilidade e previsibilidade em termos institucionais (incluindo a estabilidade e previsibilidade jurídica) é fundamental para o exercício dos direitos fundamentais do cidadão, particularmente nas relações jurídicas travadas em face do Estado, na medida em que a dignidade humana não restará suficientemente respeitada e protegida onde as pessoas estejam expostas a tal nível de instabilidade jurídica que não estejam mais em condições de, com um mínimo de segurança e tranquilidade, confiar nas instituições sociais e estatais (incluindo o Direito) e numa certa estabilidade das suas próprias posições jurídicas [12].

Aspecto que há de ser repisado e enfatizado, é que a segurança jurídica, portanto, para além da sua conformação normativa como princípio da nossa ordem constitucional (com as funções, manifestações e exigências já sumariamente apresentadas), assume também o status de direito e garantia fundamental, o que reforça a sua dupla dimensão objetiva e subjetiva [13].

Todavia, aquilo que se pode designar de um direito fundamental à segurança jurídica, na condição de direito fundamental em sentido amplo, veiculado e garantido por uma norma de natureza principiológica, somente pode ser compreendido e concretizado mediante o reconhecimento de sua multidimensionalidade e das posições jurídicas nas quais se decodifica, incluindo direitos fundamentais especiais de segurança jurídica, mas também a sua articulação com outros princípios e direitos fundamentais.

O princípio (e direito fundamental) da segurança jurídica, nesse cenário, opera, em primeira linha, como uma garantia de proteção dos direitos fundamentais em face da atuação do legislador e do administrador, tanto no âmbito constitucional quanto — e de modo especial — infraconstitucional, frente a medidas legislativas e administrativas que impliquem supressão ou restrição nos níveis ou patamares de proteção dos direitos já existentes, muito embora tal proteção também se dê relativamente em face do Estado-Juiz.

Os atos legislativos e administrativos — mas também as decisões judiciais —, por meio dos efeitos e consequências jurídicas concretas que operacionalizam, para além de impactarem direitos e garantias desde a sua vigência, igualmente criam expectativas legítimas para os titulares de posições jurídicas asseguradas por tais atos estatais, notadamente em vista da confiança (no Estado) de que o seu exercício será respeitado e assegurado hoje e no futuro [14].

Nesse sentido, é exemplar decisão do STF, da relatoria do ministro Luís Roberto Barroso, reconhecendo as perspectivas objetiva e subjetiva derivadas do regime jurídico-constitucional de proteção da segurança jurídica:

“O princípio da segurança jurídica, em um enfoque objetivo, veda a retroação da lei, tutelando o direito adquirido, o ato jurídico perfeito e a coisa julgada. Em sua perspectiva subjetiva, a segurança jurídica protege a confiança legítima, procurando preservar fatos pretéritos de eventuais modificações na interpretação jurídica, bem como resguardando efeitos jurídicos de atos considerados inválidos por qualquer razão. Em última análise, o princípio da confiança legítima destina-se precipuamente a proteger expectativas legitimamente criadas em indivíduos por atos estatais.” [15]

É pertinente, nesse contexto, sublinhar que a tese de que restrições de direitos — para além da observância das exigências da reserva legal, da proporcionalidade e da proteção do núcleo essencial — não devem ser retroativas implica a vedação de intervenções restritivas arbitrárias e excessivas por parte dos poderes estatais no âmbito de proteção de direitos e garantias fundamentais, inclusive pelo fato de que a retroatividade de medidas restritivas representa ofensa ao direito fundamental à e princípio da segurança jurídica. Nesse sentido, a segurança jurídica, dotada de status e regime jurídico de direito fundamental, implica posições jurídicas subjetivas de natureza defensiva ou negativa, que blindam restrições retroativas, a fim de assegurar a integridade, estabilidade, certeza e previsibilidade na aplicação do direito a fatos jurídicos pretéritos e que já produziram efeitos (tanto no mundo jurídico quanto no mundo fático).

No que diz respeito à dimensão objetiva do princípio e do direito fundamental da segurança jurídica, todos os atores estatais encontram-se vinculados (a exemplo do que ocorre com os direitos fundamentais em geral) por deveres de proteção que implicam a adoção de medidas positivas e eficazes para assegurar níveis satisfatórios de segurança jurídica [16]. Note-se, nesse contexto, que eventual omissão ou mesmo ação que não assegure níveis satisfatórios de eficácia aos deveres de proteção, representa uma violação da assim chamada proibição de proteção insuficiente e, portanto, consiste em violação do(s) direito(s) fundamental(ais) em causa [17].

Tendo aqui apresentando, em linhas gerais e numa perspectiva introdutória, o conteúdo e o significado do princípio da segurança jurídica e do correlato direito fundamental à segurança jurídica na CF, remetemos o leitor à próxima coluna, onde teremos a ocasião de desenvolver um pouco mais o tema.


[1] Cf. bem lembra MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Curso de direito administrativo. 32 ed. São Paulo: Malheiros, 2015. p. 113.

[2] Na doutrina, v. SARLET, Ingo W. A eficácia dos direitos fundamentais: uma teoria geral dos direitos fundamentais na perspectiva constitucional. 13. ed., Porto Alegre: Editora Livraria do Advogado, 2018, pp. 451 e ss. No mesmo sentido, v. Cf. ÁVILA, Humberto. Segurança jurídica. São Paulo: Malheiros, 2011, p. 206 e ss.

[3] STF, RE 637485, Tribunal Pleno, relator ministro Gilmar Mendes, julgado em 01.08.2012.

[4] CANOTILHO, Joaquim José Gomes. Direito constitucional e teoria da constituição. 7 ed. Coimbra: Coimbra, 2003. p. 252.

[5] Este o ensinamento de SCHULZE-FIELITZ, Helmuth. Kernelemente des Rechtstaatsprinzips. In. DREIER, Horst (Org.). Grundgesetz Kommentar. v. II. Tübingen: Mohr Siebeck, 1998. p. 184.

[6] Cf. MAURER, Hartmut, Staatsrecht I, 5. ed., München: C.H. Beck, 2007, p. 220.

[7] SILVA, Virgílio Afonso da. Direito constitucional brasileiro. São Paulo: EDUSP, 2021, p. 240.

[8] Cf. a síntese de Canotilho, J. J. Gomes, Direito constitucional e teoria da Constituição, op. cit., p. 257.

[9] Sobre a proteção da confiança no direito público, v., na literatura brasileira e limitando-nos à produção monográfica, especialmente Maffini, Rafael. Princípio da proteção substancial da confiança no direito administrativo brasileiro, Porto Alegre, Verbo Jurídico, 2006, bem como Ávila, Humberto. Segurança Jurídica, op. cit., p. 360 e ss.

[10] Na jurisprudência do STF, vide, em caráter meramente exemplificativo, a ADI 4545/PR, relator ministro Rosa Weber, j. em 05.12.2019 e o RE 636553, relator ministro Gilmar Mendes, j. em 19.02.2020, leading case do Tema de Repercussão Geral 445.

[11] STJ, EREsp 1.517.492/PR, 1ª Seção, relator ministro Og Fernandes, julgado 08.11.2017; STJ, REsp. 1.813.684/SP, Corte Especial, relator para acórdão ministro Luis Felipe Salomão, julgado em 02.10.2019; e STJ, REsp 1.928.635/SP, 1ª Turma, relator ministro  Regina Helena Costa, julgado em 10.08.2021.

[12] SARLET, Ingo W. A eficácia dos direitos fundamentais…, pp. 451 e ss. No mesmo sentido, v. cf. ÁVILA, Humberto. Segurança jurídica…. p. 206 e ss.

[13] No sentido de reconhecer a dupla dimensão da segurança jurídica, como princípio e direito fundamental, v. SARLET, Ingo W. A eficácia do direito fundamental à segurança jurídica: dignidade da pessoa humana, direitos fundamentais e proibição de retrocesso social no direito constitucional brasileiro. Revista Trimestral de Direito Público, v. 39, São Paulo, Malheiros, 2002, p. 53-86.

[14] Na doutrina, sobre a expectativa legítima de direitos, v. BARROSO, Luís Roberto. Constitucionalidade e legitimidade da Reforma da Previdência: ascensão e queda de um regime de erros e privilégios. Revista de Direito da Procuradoria -Geral do Estado do Rio de Janeiro, vol. 58, 2004, p. 145.

[15] STF, ARE 861.595, 1ª Turma, relator ministro Roberto Barroso, julgado 27.04.2018.

[16] SARLET, A eficácia dos direitos fundamentais…, p. 148 e ss.

[17] Apenas para ilustrar com exemplos da jurisprudência do STF, v. ADI 861, Tribunal Pleno, relator ministro Rosa Weber, j. em 06.03.2020), ADI 5312, Tribunal Pleno, relator ministro Alexandre de Moraes, j. em 25.10.2018.

Fonte: Conjur

Ciência da seguradora impõe sua submissão à cláusula arbitral prevista em contrato garantido pela apólice

O caso discutido pela Quarta Turma envolvia ação regressiva de uma seguradora para se ressarcir do prejuízo causado por danos à carga segurada durante o transporte marítimo.

A Quarta Turma do Superior Tribunal de Justiça (STJ), por unanimidade, entendeu que a ciência prévia da seguradora quanto à existência de cláusula arbitral no contrato objeto de seguro-garantia impõe sua submissão à arbitragem. Segundo o colegiado, em tais casos, a arbitragem constitui elemento a ser considerado na avaliação de risco pela seguradora, nos termos do artigo 757 do Código Civil.

De acordo com os autos, a Mapfre Seguros foi contratada pela sociedade colombiana Empresas Públicas de Medelín para cobrir os riscos do transporte marítimo internacional, entre os portos de Santos e Barranquilla, de peças para a construção de uma usina hidroelétrica. Durante o trajeto, houve danos na carga segurada. A Mapfre, então, indenizou a empresa colombiana e ajuizou ação regressiva contra as empresas responsáveis pelo transporte.

O juízo de primeiro grau condenou as rés, solidariamente, a ressarcir à seguradora o valor da indenização. Na apelação, as empresas sustentaram a incompetência da Justiça brasileira para o caso, pois a cláusula arbitral existente no conhecimento de transporte marítimo se estenderia à seguradora quando ela se sub-rogou no crédito de sua segurada. O Tribunal de Justiça de São Paulo (TJSP) acolheu o argumento e reformou a sentença.

Em regra, submissão à arbitragem deve ser afastada como efeito da sub-rogação legal

A relatora no STJ, ministra Isabel Gallotti, observou que a sub-rogação legal não implica titularização da posição contratual do segurado pelo segurador, pois, apesar de relacionados, o contrato de seguro e o contrato coberto pela apólice são autônomos e se referem a obrigações distintas.

Segundo a magistrada, enquanto no contrato objeto de seguro-garantia há a obrigação principal não cumprida e demais pactos acessórios decorrentes da avença, no contrato de seguro há apenas um interesse protegido: o risco de descumprimento do contrato assegurado, que o segurador assume em troca dos prêmios pagos e do poder de buscar o ressarcimento na ação de regresso.

Dessa forma, explicou Gallotti, deve ser afastada, normalmente, a submissão à cláusula arbitral como efeito direto e automático da sub-rogação legal, pois é possível a existência de sub-rogação convencional ou, ao menos, a consideração daquela cláusula no risco a ser garantido nos casos de seguro-garantia, ainda que de forma implícita.

“A diferenciação proposta mostra-se essencial em razão da necessidade de a submissão de determinado conflito à jurisdição arbitral ser fruto da autonomia das partes, nos termos do artigo 3° da Lei 9.307/1996, bem como da ineficácia de qualquer ato do segurado que diminua ou extinga, em prejuízo do segurador, os direitos a que se refere esse artigo. Entendimento diverso possibilitaria obrigar a seguradora a se submeter ao compromisso arbitral decorrente de cláusula compromissória celebrada posteriormente à contratação da apólice securitária, não considerada no cálculo do risco predeterminado”, comentou.

Ciência prévia da seguradora impõe submissão à jurisdição arbitral

A relatora ressaltou que, nos casos de seguro-garantia, não há como afastar o conhecimento prévio da seguradora quanto à existência de cláusula compromissória no contrato de transporte marítimo de cargas objeto da apólice.

De acordo com a magistrada, tendo sido submetido o contrato previamente à seguradora, a fim de que analisasse os riscos – entre os quais foi ou deveria ter sido considerada a cláusula compromissória –, não pode ser afastado o entendimento de que tal cláusula se inclui entre os elementos essenciais do interesse garantido e do risco predeterminado (artigos 757, caput, e 759 do CC).

Assim, explicou Gallotti, como consequência da sub-rogação legal, há a transferência total de direitos, ações, privilégios e garantias do contrato primitivo, em relação à dívida, contra o devedor principal e os fiadores, conforme disposto no artigo 349 do Código Civil (CC). A ministra comentou ainda que, se a seguradora concordou em garantir o contrato com cláusula compromissória, não se pode falar em violação da voluntariedade prevista na Lei de Arbitragem.

“Afastar a sub-rogação na cláusula arbitral, previamente exposta à aprovação da seguradora e de conhecimento de todos, implicaria submeter as partes do contrato de transporte marítimo ao arbítrio da contraparte na livre escolha da jurisdição aplicável à avença, pois dependente única e exclusivamente da seguradora escolhida pelo consignatário da carga”, afirmou.

Fonte: STJ

Sem padrão ou critérios, ANPP é vantajoso apenas para o MP

A falta de critérios e de orientações objetivas para a assinatura do acordo de não persecução penal (ANPP) vem causando problemas para os advogados e seus clientes. Criminalistas ouvidos pela revista eletrônica Consultor Jurídico apontam que cada membro do Ministério Público avalia e fecha tais acordos à sua própria maneira. Com isso, o ANPP se torna uma ferramenta interessante somente para a acusação.

Edward Rocha de Carvalho, do escritório Miranda Coutinho, Carvalho & Advogados, diz, por exemplo, que alguns promotores negociam o acordo exclusivamente por meio de petições escritas. Já outros permitem ajustes por telefone ou até marcam audiências. “Não tem procedimento padrão.”

Para além disso, as diretrizes sobre quando se deve fechar um ANPP não são interpretadas da mesma forma pelos membros do MP. Carvalho cita o caso de um promotor que justificou não ter oferecido um acordo porque isso “pega mal” na sua pequena comarca.

Matteus Macedo, por sua vez, conta que certos procuradores consideram possível a celebração do ANPP em qualquer momento processual, desde que o caso não tenha transitado em julgado. Já outros entendem que o acordo só pode ser oferecido até a denúncia.

Na prática, muitas vezes, o advogado precisa acionar a 2ª e a 5ª Câmaras de Coordenação e Revisão (CCRs) do Ministério Público Federal (responsáveis, respectivamente, por casos gerais e crimes contra a administração), que têm entendimento consolidado a favor da possibilidade de ANPP em qualquer momento antes do trânsito em julgado.

O ANPP está previsto no artigo 28-A do Código de Processo Penal, inserido em 2019 pela lei “anticrime”. De acordo com a norma, o acordo pode ser fechado em casos de infração penal sem violência ou grave ameaça e com pena mínima inferior a quatro anos. Também precisa ser “necessário e suficiente para reprovação e prevenção do crime”.

Para Macedo, essa cláusula é “muito aberta”. Ou seja, não há uma definição exata sobre o que é um acordo suficiente para a reprovação do crime. Ele narra duas situações pelas quais já passou: em um caso, o membro do MP fechou o ANPP porque o caso envolvia R$ 200 mil; já em outro, o valor era de R$ 200 milhões, mas o procurador negou o acordo.

Renato Stanziola Vieira, presidente do Instituto Brasileiro de Ciências Criminais (IBCCRIM), lembra que, pela lei, a possibilidade de ANPP não depende do montante envolvido. Ele defende que o acordo seja proposto sempre, independentemente do valor: “Se tivermos um critério do valor patrimonial, estaremos desconsiderando a pena do crime”.

Diretrizes variadas
Sócia do escritório Mattos Filho, a criminalista Paula Moreira Indalecio explica que cada membro do MP é independente para negociar o ANPP dentro dos parâmetros estabelecidos no CPP. Porém, existem algumas orientações.

As CCRs do MPF, por exemplo, têm uma orientação conjunta e um enunciado (98/2020) que fixam determinados critérios a serem observados para a assinatura dos acordos, além de uma orientação específica sobre ANPPs feitos de forma virtual.

E os MPs estaduais também têm suas regras. O MP-SP, por exemplo, publicou uma recente resolução que regulamenta os acordos, além de um “roteiro para o ANPP“. Já o MP-RJ tem duas resoluções sobre o tema (uma de 2021 e outra de 2022). O MP-PR possui um protocolo, o MP-SC tem um manual e o MP-MG dispõe de um guia.

Por fim, o Conselho Nacional do Ministério Público tem uma resolução de 2017, que foi alterada por outra no ano seguinte. Embora algumas de suas regras tenham sido reproduzidas na lei “anticrime”, tais atos são mais restritos do que as regras do CPP.

As normas do CNMP estabelecem, por exemplo, a impossibilidade de proposta de acordo quando o dano causado for superior a 20 salários mínimos (ou a outro parâmetro econômico definido pelo respectivo órgão de revisão, conforme a regulamentação local). Também impedem a celebração de ANPP quando o delito for hediondo ou equiparado e quando o aguardo para seu cumprimento possa causar a prescrição.

ConJur pediu explicações a vários MPs sobre os problemas relatados pelos advogados. Em resposta, o MPF, o MP-SP e o CNMP apenas informaram que têm suas regulamentações próprias.

Prejuízos
Segundo Paula Indalecio, para propor um acordo o representante do MP precisa verificar previamente se existem indícios de autoria e materialidade. Isso porque, conforme o CPP, o ANPP só pode ser oferecido em “não sendo caso de arquivamento”. Mas ela diz que “muitos acordos são oferecidos de maneira prematura, sem que haja profunda análise dos elementos investigados”.

Renato Vieira indica que, sem um regramento específico, o MP pode acabar oferecendo ANPP em casos nos quais a atitude correta seria “o arquivamento puro e simples”. Segundo ele, o acusado muitas vezes aceita o acordo para não correr o risco de ser processado — quando, na verdade, o caso deveria ser arquivado. Já Mateus Macedo diz que muitos acusados preferem fechar um acordo porque a definição é mais rápida e a solução é previsível. Assim, o ANPP se torna, nas palavras do presidente do IBCCRIM, uma “ameaça de processar alguém”.

A partir de tal pressão, o MP consegue convencer pessoas a aceitar o acordo e pagar prestações pecuniárias em casos que, de outra maneira, não iriam adiante. Ou seja, a acusação consegue o equivalente a uma sanção penal sem ter de discutir o mérito da causa. “O Ministério Público consegue um naco de carne na largada, porque não precisa passar o caso em contraditório. Ele resolve no ANPP”, assinala Vieira. “Existe um risco de o ANPP se substituir às hipóteses de arquivamento”.

As diferenças entre as regulamentações de cada MP são outro fator problemático destacado por Paula. A resolução do MP-RJ, por exemplo, traz diretrizes para a celebração de acordos já nas audiências de custódia — ou seja, antes de qualquer investigação quanto à real ocorrência do crime e às suas circunstâncias.

Diversos MPs, como o de SP, também têm regulamentações próprias sobre ANPP

Até o mês passado, o MP-SP já havia feito quase 46 mil ANPPs. O número expressivo leva a advogada a indagar: “Será que em todos esses casos o órgão acusatório realizou detidamente o devido exame de cada situação concreta, verificou a existência de indícios de autoria e materialidade e de dolo, para chegar à conclusão inequívoca de que não havia uma situação sequer que deveria ensejar uma promoção de arquivamento?”. À ConJur, o órgão disse que não houve oferecimento de denúncia em quase 35 mil dos acordos fechados.

Na visão de Paula, há mais um problema: as resoluções e os manuais dos MPs sugerem “modelos” de acordos, “que acabam por criar diretrizes estanques” e automatizar a análise dos requisitos. Com isso, o ANPP se torna similar a um “contrato de adesão”, em vez de “um instituto próprio de negociação efetiva entre as partes, em que haveria espaço para mudanças ou adaptações nos termos propostos”.

Com todos esses problemas, Vieira avalia que o ANPP se torna interessante somente para a acusação. A prova disso é o fato de que sua regulamentação é feita pelo próprio MP. Além disso, os acordos ficam sujeitos à “apreciação subjetiva deste ou daquele promotor” — o que não deveria ocorrer com uma lei processual válida em todo o país.

Possíveis melhorias
Paula espera “um amadurecimento da jurisprudência para sanar as lacunas e dúvidas de interpretação que a legislação deixou em aberto”, e, assim, evitar “uma atuação discricionária por parte do Ministério Público e garantir os direitos e garantias fundamentais aos indivíduos”.

O presidente do IBCCRIM também considera que “o caminho para tornar objetivos os critérios” do ANPP deve “continuar a ser trilhado”. Para isso, ele defende uma “regulamentação melhor”. Mas, segundo Vieira, enquanto não houver uma mínima “apreciação da constitucionalidade” do artigo 28-A do CPP, sequer é possível falar em melhor ou pior regulamentação.

No entanto, de acordo com o advogado, o primeiro passo para uma melhoria já está ocorrendo. As regras do ANPP trazidas pela lei “anticrime” vêm sendo discutidas no Supremo Tribunal Federal, dentro do bloco de ações diretas de inconstitucionalidade (ADIs) que também discutem a implementação do juiz das garantias. O julgamento deverá ser concluído no próximo mês de agosto.

Culpado desde o início
Outro ponto do artigo 28-A do CPP que preocupa os criminalistas é a exigência de confissão de culpa. Paula lembra que, quando assina um ANPP, o acusado não deixa de ser primário. Assim, a confissão, para ela, é apenas uma espécie de “moeda de troca” moral.

Na prática, tal exigência traz uma desvantagem para o acusado. Isso porque, caso o acordo seja descumprido, o MP pode oferecer denúncia. E, nessas situações, a acusação já conta desde o início com uma confissão da prática do crime.

Segundo a advogada, não há qualquer garantia de que, mais tarde, a confissão não será utilizada, mesmo que indiretamente, como argumento para defender a responsabilidade do acusado. Assim, a exigência dá margem “para uma atuação discricionária” do MP.

Paula ressalta que a confissão não é condição para outros acordos penais, como a suspensão condicional do processo e a transação penal. Ela também crê que tal exigência dificulta a assinatura do ANPP: “Ninguém vai se dispor a confessar algo que acredita não ter feito, especialmente diante da insegurança jurídica sobre o destino dessa confissão”.

Vieira é outro que considera a exigência abusiva, pois, mesmo com o descumprimento do acordo, a confissão permanece válida. Em uma hipótese tradicional, sem assinatura de acordo, o mérito seria discutido na ação penal sem a confissão. Ou seja, o MP consegue uma denúncia muito mais robusta contra alguém que tenha assinado e descumprido um ANPP do que teria contra qualquer outro acusado.

O presidente do IBCCRIM destaca que a confissão “não deve ser vista como uma prova de maior ou menor valia”, porque “não existe uma hierarquia de provas no processo penal”. Para ele, o ANPP “sobrevaloriza a confissão” como prova, “em vantagem da acusação”, pois sua ausência impede a própria negociação do acordo e sua concretização reforça uma eventual denúncia.

Na visão do advogado, os outros requisitos previstos no CPP — infração penal sem violência e pena mínima inferior a quatro anos — já são suficientes para se verificar a possibilidade de um acordo. “Se você está fazendo acordo, você não quer ser processado. E, se você não quer ser processado, você não tem de discutir culpa.”

Paula também defende a suficiência dos demais requisitos legais, “desde que proporcionais e adequados a cada caso concreto”. De acordo com ela, a confissão “não possui nenhuma utilidade do ponto de vista criminal”, pois, quando é feito um ANPP, o juiz não analisa o mérito do caso — apenas homologa o termo, a partir de um “exame da voluntariedade e formalidade legal”. Além disso, quando o acordo é cumprido, a punibilidade do réu é extinta.

Vieira defende que a exigência de confissão de culpa seja excluída da legislação. Essa também é a medida ideal na visão de Paula, mas ela ainda enxerga a possibilidade de “um amadurecimento da jurisprudência nesse sentido, especialmente para sanar as lacunas e dúvidas de interpretação da legislação quanto ao alcance, necessidade e possibilidades (ou impossibilidade) do uso dessa confissão”.

Fonte: Conjur

Comissão aprova proibição de guarda compartilhada quando há risco de violência doméstica

Vinicius Loures/Câmara dos Deputados
Apresentação dos planos e agenda estratégica. Dep. Laura Carneiro(PSD - RJ)
Laura Carneiro: medida vai ao encontro da proteção integral de crianças e adolescentes

A Comissão de Previdência, Assistência Social, Infância, Adolescência e Família da Câmara dos Deputados aprovou proposta (PL 2491/19) que impede a guarda compartilhada de filhos quando há risco de algum tipo de violência doméstica ou familiar praticado por um dos pais. Na guarda compartilhada, o tempo de convívio com os filhos deve ser dividido de forma equilibrada entre a mãe e o pai, considerando o interesse dos filhos. O texto altera o Código Civil e o Código de Processo Civil e já foi aprovado pelo Senado.

Conforme o projeto, nas ações de guarda, antes de iniciada a audiência de mediação e conciliação, o juiz deverá perguntar às partes e ao Ministério Público se há risco de violência doméstica ou familiar, fixando o prazo de cinco dias para a apresentação da prova ou de indícios pertinentes.

O texto também deixa claro que, havendo elementos que evidenciem a probabilidade de risco de violência doméstica ou familiar, a guarda será concedida apenas àquele que não seja o responsável pela situação de risco à criança.

A relatora, deputada Laura Carneiro (PSD-RJ), defendeu a aprovação da proposta. Ela lembrou que o Código Civil já prevê situações em que o juiz pode decidir, a bem dos filhos, pelo não compartilhamento da guarda. A parlamentar destacou ainda que o Estatuto da Criança e do Adolescente, por sua vez, estabelece que “nenhuma criança ou adolescente será objeto de qualquer forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão”.

“As medidas [previstas no PL 2491/19] vão ao encontro da proteção integral e do melhor interesse da criança e do adolescente, preconizados pela Carta Política de 1988 e previstos em legislação ordinária, reforçando-os, motivo pelo qual merecem prosperar”, disse a relatora.

Tramitação
O projeto ainda será analisado, em caráter conclusivo, pela Comissão de Constituição e Justiça e de Cidadania (CCJ).

Fonte: Câmara Notícias

Projeto altera legislação para aumentar pena de invasão de propriedade

Bruno Spada/Câmara dos Deputados
Deputado Coronel Chrisóstomo discursa na tribuna do Plenário
Para Chrisóstomo, pena atual “é um convite para se cometer esse tipo de crime”

O Projeto de Lei 1198/23, do deputado Coronel Chrisóstomo (PL-RO), aumenta a pena para o crime de esbulho possessório, que é a invasão de propriedade praticada com violência ou ameaça, ou aquela cometida por mais de duas pessoas. A proposta tramita na Câmara dos Deputados.

A pena atual para esbulho possessório, prevista no Código Penal, é de detenção, de um a seis meses e multa. O projeto eleva para detenção de 4 a 8 anos e multa. Chrisóstomo afirmou que o objetivo  da proposta é inibir as invasões de propriedade no Brasil.

“A atual punição para quem invade terras ou edificações é um verdadeiro convite para que se cometa esse tipo de crime. Os movimentos que adotam falsamente um viés social para destruir propriedades e todos os investimentos realizados só geram prejuízos aos proprietários e desemprego aos funcionários”, disse.

O texto também iguala ao crime de usurpação de águas (caracterizado pelo desvio ou represamento de águas alheias) os agravantes previstos no esbulho  possessório sem, no entanto, alterar a punição prevista, que permanece “detenção, de um a seis meses, e multa”.

Tramitação
O projeto será analisado pela Comissão de Constituição e Justiça e de Cidadania (CCJ). Se aprovado, seguirá para o Plenário da Câmara.

Fonte: Câmara Notícias

Retorno do voto de qualidade no Carf: um grave erro de prioridades

Por Willer Tomaz 
08/07/2023 | 07h00
5 min de leitura

Voto de minerva viola a segurança jurídica, os princípios administrativos, o devido processo legal e o próprio DNA do órgão

Alvo de críticas ostensivas, o voto duplo, de qualidade, ou de minerva no Conselho de Administração de Recursos Fiscais (Carf), que dá à Fazenda o poder de desempatar os julgamentos de processos administrativos envolvendo a apuração e a cobrança de tributos, teve a sua aplicação afastada pelo art. 19-E da Lei n. 10.522/2002, incluído pela Lei n. 13.988/2020.

A nova lei prevê que em empates no julgamento de processos administrativos de determinação e exigência de crédito tributário não se aplica o voto de qualidade a que se refere o § 9º do art. 25 do Decreto nº 70.235, de 6 de março de 1972, resolvendo-se favoravelmente ao contribuinte.

Mesmo com os esforços dos legisladores que conduziram à nova sistemática, o Governo Federal publicou em 13/1/2023 a Medida Provisória n. 1.160/2023, a qual restabeleceu o instituto ao prever no art. 1º que na hipótese de empate na votação no âmbito do Conselho Administrativo de Recursos Fiscais, o resultado do julgamento será proclamado na forma do disposto no § 9º do art. 25 do Decreto nº 70.235, de 6 de março de 1972.

Isto é, de cambulhada, ressuscitou-se o voto de qualidade no Carf, o que levou a Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) e dois partidos políticos a ajuizarem as ações diretas de inconstitucionalidade n. 7.347/DF e 7.353/DF no Supremo Tribunal Federal (STF), distribuídas ao ministro Dias Toffoli.

Em 4/5/2023, a previsível caducidade da MP n. 1.160/2023 em 1º/6/2023 levou o Governo Federal a apresentar na Câmara dos Deputados o PL 2.384/2023 para, dentre outros, restabelecer o voto de qualidade. A proposta tramita em regime de urgência.

Na última segunda-feira (3), o relator da proposta na Câmara apresentou parecer preliminar pela aprovação da reintrodução do voto de desempate com uma nova roupagem costurada em negociações entre a OAB e o Ministério da Fazenda, iniciadas após a propositura da ADI n. 7.347/DF no STF. Na linha do acordo, o voto de desempate seria então acompanhado da exclusão de multas e juros de mora em caso de julgamento favorável à Fazenda, bem como do cancelamento da representação fiscal para fins penais.

A despeito das renúncias recíprocas para se atingir uma solução intermediária, o fato objetivo é que o voto de minerva no Carf viola a segurança jurídica, os princípios administrativos republicanos, o devido processo legal e o próprio DNA do órgão, forjado na ideia de paridade entre a Fazenda e o contribuinte.

Nota-se que o PL n. 2.384/2023 tem por principal justificativa a alegação de que o modelo paritário provocou a reversão do entendimento do tribunal em grandes temas tributários e favoreceu indevidamente o contribuinte, fazendo com que cerca de R$ 59 bilhões (cinquenta e nove bilhões de reais), por ano, deixarão de ser recolhidos.

Ocorre que inexiste – por isso não foi apontada na justificativa – a alegada reversão, nem a efetiva perda de receita. Muito pelo contrário, as estatísticas do próprio Carf revelam que a regra não favoreceu os contribuintes, pois houve desempate automaticamente favorável àqueles em apenas 1,3% dos julgamentos entre 2020 e 2022.

Os mesmos dados mostram que no período de aplicação (2020 a 2022) do art. 19-E da Lei n. 10.522/2002, a média de julgamentos unânimes subiu de 76,4 (2017 a 2019) para 81,2% (2020 a 2022) ao mesmo tempo em que os julgamentos majoritários caíram de 17,2% (2017 a 2019) para 14,9% (2020 a 2022) e os votos de minerva caíram de 6,4% (2017 a 2019 para 2,6% (2020 a 2022), sugerindo o surgimento de uma postura jurisprudencial que evitava empates que poderiam favorecer automaticamente o contribuinte.

Aliás, muito se discute sobre a finalidade meramente arrecadatória do voto de desempate no Carf, sendo que dados oficiais atualizados até 27 de junho deste ano mostram que desde a vigência da MP n. 1.160/2023, 4,8% dos casos foram resolvidos com o voto duplo da Fazenda8, sendo que desses, 94,7% foram desempatados em favor do Fisco.

Tais fatos, per si, refutam a justificativa dada para o retorno do voto de minerva no Carf, mas a questão central é outra: é necessário racionalizar o sistema tributário.

Como se sabe, como sintoma de um ambiente jurídico, fiscal e burocrático truncado, o Brasil possui o maior contencioso tributário judicial e administrativo do planeta, não havendo paralelo em nenhum outro lugar do mundo: em 2018, o contencioso pendente de resolução correspondia a 50,4% do PIB nacional, equivalente a mais de R$3,4 trilhões; em 2019, correspondia a 75%, equivalente a R$5,44 trilhões. Piorando as perspectivas, o desfecho desses litígios demora em média 18 anos e 11 meses, segundo dados de 2017.

No ranking mundial dos sistemas tributários mais complexos, segundo o Global MNC Tax Complexity Project, integrante do Deutsche Forschungsgemeinschaft (DFG, German Research Foundation), entre os 100 países pesquisados, em 2016 o Brasil ocupava a 100ª posição, ou seja, era o país com o sistema tributário mais complexo do mundo. Em 2018, dos 58 países pesquisados, o Brasil estava na 55ª posição. E em 2020, entre os 69 países observados, ocupava a 60ª posição, estando assim sempre no pântano da mais alta complexidade tributária.

Em 2019, o Tribunal de Contas da União (TCU) apontou que há graves disfunções estruturais inerentes ao sistema tributário e disfunções burocráticas relativas às administrações tributárias no Brasil, com riscos atrelados aos procedimentos necessários ao cumprimento das obrigações tributárias, com impacto negativo no ambiente de negócios e na competitividade das organizações produtivas, gerando potencial de prejudicar o desenvolvimento nacional14.

No mesmo ato, o TCU reconheceu que a Receita Federal está sempre a editar grande quantitativo de normas tributárias e a atualizá-las com frequência, o que sabidamente cria riscos afetos aos procedimentos necessários para preparar, declarar e pagar tributos federais, necessitando-se adotar-se medidas para orientar os contribuintes acerca das inovações obrigacionais trazidas por essas normas – o que na prática não acontece. Inerente à complexidade do sistema e à natural dúvida sobre a correção da exigência ou do montante de tantos tributos a recolher, o peso da carga tributária é um fator de estímulo ao litígio, pois força o contribuinte a buscar alívios contra a expropriação excessiva do seu patrimônio.

Ou seja, o alto grau de litígio não é a causa, mas, sim, o sintoma de uma realidade causada pela legislação e pela própria administração tributária e fiscal, criadoras de um ambiente hostil para o contribuinte e para o setor produtivo.

Eis que as justificativas do PL n. 2.384/2023, assim como da MP n. 1.160/2023, são genéricas, rasas e ignoram a necessidade premente de uma profunda reforma do sistema, que pressupõe, por sua vez, uma transformação de mentalidade sobre a solidariedade tributária, sobre a burocracia, sobre as dinâmicas comerciais, sobre a geração de riqueza e sobre o peso da carga fiscal.

Com efeito, a discussão sobre o voto de desempate é infrutífera e míope, uma vez que erra gravemente na avaliação das prioridades e trata (e muito mal) tão somente o sintoma (litígio), ignorando-se completamente a necessidade de racionalização do sistema tributário, deixando assim de sanar os reais entraves para o crescimento econômico do país e para o cumprimento dos objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil, inscritos no artigo 3º da Constituição Federal.

*Willer Tomaz, sócio do escritório Aragão & Tomaz Advogados Associados

Artigo publicado no Estadão: ACESSE AQUI